Oitava Fileira escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 30
O alcance da promessa




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Não sabia há quanto tempo estava ali, sem sentir coisa alguma num lugar vazio. Era tudo tão silencioso e calmo, e tinha aquele bem-estar vago, como se tivesse acabado de acordar.

Quem era? O que fazia ali?  Depois de pensar um pouco, decidiu que não se importava realmente com as respostas. Podia aproveitar a paz do lugar e ficar flutuando por aí. Mesmo que não soubesse nada de si, podia sentir que tranquilidade não era uma coisa comum.

Muito tempo depois (ou talvez nenhum; quem poderia dizer?) compreendeu o que tinha lhe acontecido, e mesmo pensar lhe pareceu muito alto naquele lugar em que mais nada acontecia.

“Então isso é estar morto.”

Então tudo voltou pra mim: Eu sou Mauro Takeda, mago e mágico, pertenço a duas famílias, e acabei de fazer um feitiço que uniu meus piores pesadelos e anseios mais profundos. Destruí o Cássio, Denise, Xavier e a mim de um jeito tão sério que se a segunda parte, aquela coisa insanamente improvisada, não funcionar, vou flutuar aqui pra sempre.

Rio baixinho. Morto aos vinte e cinco anos, Luca me mataria novamente se pudesse. Meu filho estúpido, era como ele me chamava, com o coração partido por não poder nos proteger mais essa vez.

Penso naquele outro mundo, onde vive o restante da minha família: Será que Luca chegou bem? Eles já sabem tudo que eu permiti que acontecesse? Que no fim, de nada adiantou minhas manobras e disfarces, toda minha magia ou qualquer um dos meus esforços. Cássio está morto. Pelas minhas mãos, exatamente como Ângelo previu. E não sobrevivi a isso, o que é um alívio. Estou tão cansado, e talvez...

O pensamento me enche de uma alegria irracional. Também estou morto. Como meu amigo, como meus pais e meu irmão. Começo a procurar, chamar por eles, e a qualquer momento...

Esfrego os olhos, sinto que falta pouco, é quase como se eles já estivessem vindo. Finalmente vou reencontrá-los.

Batian? Pai? Mãe?

Cas?

DC...?

O silêncio me esmaga além de qualquer esperança. Eles não vêm. Ninguém virá.

Estranho. Pensei que o desespero fosse me destruir dessa vez. Que fosse aniquilar qualquer resto de Mauro, de uma vez por todas, o que teria sido ótimo; Mas acho que sobrou tão pouco de mim que quando perdi a esperança, também não restou medo. Pra alguém preso eternamente numa versão particular do Inferno, estou bastante... bem.

Há tanto tempo eu não fico assim, sozinho com meus pensamentos. Faria uma década em cinco meses. É tão estranho, sinto como se estivesse aqui pela metade.

Ele tem uma alma, repito até acreditar. Cássio, por menos humano que estivesse quando o matei, tinha uma alma. Não posso tê-lo destruído por inteiro. Uma parte dele restou, e está por aí em algum lugar. Tem que estar.

— Cas?

Sinto uma certeza absurda. Ele está aqui, mesmo que eu não possa senti-lo de forma nenhuma, ele nunca fica muito longe. Mas não tenho resposta. Repito seu nome, e nada no mundo se move. Em lugar nenhum.

Exceto… É uma sensação diferente, como o calor, e é tão sutil que se houvesse qualquer outra coisa acontecendo eu jamais notaria. Mas percebi, e agora estou correndo pra ela com as pernas que nem sabia que tinha até agora. O conforto some, e no seu lugar a dor retorna, tão intensa que quase me arrependo de voltar. Porque é isso que eu estou fazendo. De alguma forma funcionou, e eu estou voltando.

É quando algo pior que a dor aparece, angustiante e urgente demais, e eu tenho que fazer alguma coisa, mas o q…

O ar frio alivia a angústia imediatamente, e escuto um barulho zombeteiro, enquanto eu me atrapalho ao coordenar a inspiração e a expiração, igualzinho a uma criança andando de bicicleta pela primeira vez.

O calor ainda está lá, e não consigo imaginar o que seja. Abro os olhos inseguro. É uma mão. Uma coberta de cicatrizes, uma delas semicircular, muito branca no antebraço queimado de sol. Arquejo de novo, incapaz de falar. Damas da Luz e das Trevas, é ele.

— E esse com certeza é o melhor ruído do mundo. Bem-vindo de volta, Mau.

***  

A calma durou bem pouco. Escuto a respiração dele se alterar, e um ganido involuntário. Sei que o Mauro está com dor, e sei também que esse não é o problema. Procuro e seguro a mão dele, e espero o cachorro absorver a notícia.

Sei que o Mau teve esperança de que dessa vez eu voltasse mais... inteiro, mas não tenho tanta sorte assim: voltei exatamente igual ao que era da última vez que fui humano. Ele solta minha mão e toca a teia de cicatrizes que é o lado direito do meu rosto, ainda sem acreditar.

— Mas eu tinha... Puta merda, como...?

— Estou bem, Mau. Voltar a enxergar de repente é que seria estranho pra cacete, eu iria precisar de uma bengala de novo — acrescento, num tom de piada.

Ele não relaxa. — Você não consegue... Droga, óbvio que não. Se você pudesse refazer as próteses como da última vez, é claro que não estaria assim. Desculpa, Cas, nem sei o que deu errado dessa vez.

Como se eu já não soubesse que nenhuma das magias desse picareta sai exatamente como ele planejava. — Sossega, seu neurótico. Para de choramingar um minuto e presta atenção em mim.

Ele para de fungar e faz silêncio. Posso sentir a confusão, pelo visto o lobo imbecil continua imbecil. Cuidadoso, lembro da primeira vez que brinquei com a Mônica e a Magá, no jardim de infância.

Um xingamento perplexo me faz sorrir de satisfação. Meu Deus, como eu senti falta desse animal na minha cabeça. — Sim, seu Mandrako de quinta. Eu lembro. Agora preciso respirar, comer, mijar, igualzinho a todo humano desse planeta. Seu feitiço funcionou perfeitamente.

Fui um rei, e agora sou... isso. É ruim ser separado da Natureza assim, e voltar a limitar-se por um pedacinho de carne que não consegue nem andar sozinho, mas não tô triste. Teria dado muito mais pra ter toda essa merda de volta.

“Agora deixa de drama e tenta descansar, você ainda está todo fodido. Luca não faz milagre”

Fiquei surpreso com a tristeza na voz quando ele voltou a falar:

— Você lembra de tudo que aconteceu? Denise ou Xavier te contaram?

— Essa semana ainda está meio confusa. Lembrei da maior parte até a nossa discussão. Depois...Tá bem ruim. A Dê e o Xavier não estão aqui, Mau. Só tinha o Luca, e ele não explicou merda nenhuma, só me mandou manter os dois... Caralho, os dois corpos no meu quarto são eles? Eu matei aqueles dois? Por que eu fiz isso?

A mão do lobo cobre a minha, coisa que ele faz quando acha que precisa me consolar. Puta que pariu, eu fiz merda. — Você perdeu o controle, Cas. As travas se desfizeram de repente, eu estava morrendo e você... Você...

— Eu o quê, Mauro?

— Las Vegas.

Puta. Que. Pariu. Chega, não quero mais saber, mas o Mauro completa a minha miséria — Todo mundo que não estava com o Ângelo virou pó.

Eu não tinha saudade disso. Da náusea e do suor frio. — Todo o mundo? — repito incrédulo. Meu Deus do céu, o mundo. Matei gente na porra. Do. Mundo. Inteiro. Sinto Mauro segurar minha mão com mais força.

— Não, Cas. Eu não disse o mundo inteiro. Quis dizer todo mundo que estava  na cidade. Pelo que o Xavier falou, bem mais da metade das pessoas se salvaram, tinha muita gente numa festa lá fora. Havia outros anjos pelo caminho, acho que perderam algumas centenas de pessoas.— Ele se interrompeu, se perguntando como me falar. — E a Carmem. Ela, a Maria Cebolácia, Eduardo. Perna de Pau e Absinto também. Não foi culpa sua.

Como não foi culpa minha? Tinha mais alguém desintegrando pessoas no meu lugar? Eu fiz aquilo de novo, caralho!

“Eu sei. Nós prometemos que Las Vegas não aconteceria outra vez.” 

Não importam minhas boas intenções, sempre acabo com pilhas de cadáveres ao meu redor. Estou feliz de um jeito tosco, foram centenas e não milhões, mas isso não muda muita coisa. Grande parte deles eram gente que não me fez mal. 

— Cas, você tava fora de si. Aquilo não era você.

Que diferença isso faz pra quem morreu, porra? Eu não devia ter voltado, sou sempre um desastre esperando pra acontecer. Presto atenção no Mauro, o idiota parece atropelado por um trem. A compreensão faz meu estômago piorar.

“Fui eu quem fez isso com você, não foi? Eu matei você, aqueles dois e outra cidade inteira?”

“Aquilo não era você, Cas. ” Mauro repete com gentileza. Claro que foi, sempre  é. Toda vez é assim, ele aliviando minha barra, consertando as barbaridades que faço com os outros. 

— E quanto a nós quatro... — ele complementa, arrasado. — Isso fui eu, Cas. E se eu tivesse sido menos arrogante e cego, nada disso teria acontecido. A culpa foi mais minha que sua, eu... Esses meses, Luca tem razão, eu deveria ter feito tanta coisa de outra forma. Admitido que não fazia ideia do que estava fazendo há tanto tempo. Merda, se eu passar o resto da minha vida acertando, ainda...

E ele não consegue falar mais, soluçando. E eu não sei se é a presença dele na minha cabeça, essa humanidade que parece aumentar a intensidade de tudo, ou só o fato de que estou infeliz pra caralho e ele também, mas me encolho abraçado ao Mauro e não consigo não chorar dessa vez.

Ser humano é uma merda.


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Notas finais do capítulo

"Batian" é um jeito carinhoso de dizer "avó" em japonês.

A "morte" de Harry em Relíquias da Morte me inspirou bastante para criar o começo desse capítulo. Aquele capítulo sempre me impressionou, e é um dos meus favoritos;

Sobre o que aconteceu nos dias entre o final da batalha e esse capítulo, será contada numa das histórias curtas que virão a seguir;

Eu queria poder dizer quantas vezes eles se encolheram em algum lugar, lidando com o peso de tantas vidas perdidas. Não me espantou eles terem escolhido viver longe de humanos.

A todos que leram até aqui, meu muito obrigada, e espero vê-los semana que vem.

A seguir: O que acontece depois dos créditos.



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