Oitava Fileira escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 29
Nunca mais deixo o Xavier liderar


Notas iniciais do capítulo

Música desse capítulo: https://www.youtube.com/watch?v=c-qhJy1U3vE (Pedaço de mim, Chico Buarque e Zizi Possi.)



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A louca! Não é que funcionou? Não nego que foi ótimo arrebentar a cara do Cascaboy depois dele quase matar o Xavier, mas a única coisa que ele parecia notar exigia muito poder. Não dava pra ficar nisso pra sempre, então arrisquei. Agora estava zonza e vendo tudo dobrado. Bom, não é como se eu planejasse sobreviver a esse babado mesmo. 

Nosso professor querido apareceu mesmo, e juro que não sei se isso era bom ou não. Ele caminhou até mim, nem um pouco incomodado com a bagunça ou com o detalhe que não havia Maria pra conversar. 

As coisas entraram em foco novamente, e eu tinha 65% de certeza que não iria desmaiar ou entrar em combustão espontânea nos próximos minutos. Encontrei o Licurgo me encarando e o sorriso mais e mais largo, até o sujeito parecer um Coringa meio alto nas drogas. 

— Resolveu aquela questãozinha com os duplos, não foi? — E por um triz eu não dei um tapa na cara dele. Respira, Denise. Você precisa ajudar o Xavier.

— O... senhor pode conversar uns minutinhos com o Cássio ali? Se possível, convencê-lo a não matar todo mundo?

— Mas por que eu faria isso?

Meu Pai amado, me dai paciência — Hum, porque eu estou pedindo?

— Ah, assim tudo bem.

O Licurgo caminhou aos saltinhos até Cássio, que ainda estava torrado o suficiente pra não se mover, e ficou esperando. Quando ele voltou ao normal, notou o cara a uns dois palmos do seu rosto, se muito. Foi meio engraçado ver o Cascaboy Monstro inclinando a cabeça, tentando entender o que diabos fazia aquela criatura parada na sua frente, sem atacar, nem correr, nem nada.

Enquanto eu escapulia pra alcançar o Xavier, parte de mim se perguntava como o Cas percebia o Licurgo. Quero dizer, se ele fosse apenas humano o pirado de lata teria atacado na hora, não é?

Licurgo chegou a uns dois centímetros do rosto do Cas, totalmente fascinado.

— Por que você não se entrega?

Hã? — Licurgo, acho que esse não é o-

Ele continuou sem prestar atenção em mim, ainda tão perto que pensei que ele acabaria beijando o Cas. — Entregue-se. Abra mão dessa forma, devaste o mundo inteiro. Reduza a história humana a pó. É isso que você quer, não é? Faça.

Isso é o EXATO OPOSTO do que eu te pedi pra fazer, seu pirado suicida!

— Não importa o quanto você negue, e se esconda, e afunde tudo que te causa dor, ainda vai estar lá. Não vai mudar o que você é. Então pare de lutar contra sua natureza, Guardião, e faça o que realmente quer.

Não sei que diabos o Licurgo tá fazendo, ou como, mas sinto o efeito. Tenho o impulso súbito de levantar e transformar o Cássio em picadinho pelo que ele fez ao Xav, e faço força pra continuar no lugar. 

Pai do Céu, o que é isso? Se eu tô me sentindo assim… o pirado quer acabar com o mundo, é isso, produção?

 (E pra quem tá dizendo que sabia que era uma má ideia: Era isso ou uma morte bem perturbadora, tipo... uns cinco minutos atrás. E não morrer sempre é uma das minhas atividades favoritas, obrigada.)

Além disso, tinha que arrumar o que pudesse do coitado do Xav, derrubado num canto. Ele estava horrível, sujo de sangue, respirando como o Darti Vesgo e do jeito que encarava o vazio, não entrou em choque por pura teimosia. Recito o encantamento que sei, e comecei a ver estrelas. Senti a mão dele na minha. — Não precisa, linda. 

Tô sabendo, morte iminente, estou quase sem magia, muito arriscado e blá-blá-blá. Ainda assim, continuei recitando, e logo o Xavier estava mais alerta, respirando direito e os olhos sem (muita) dor. Agora está melhor, não é porque estamos morrendo que ele tem que sofrer até lá, e meu instinto me diz que precisamos assistir isso até o final.

Por um minuto pareceu que eu tinha mesmo ultrapassado o limite, mas o mundo entrou em foco outra vez e a queimação no peito diminuiu o suficiente pra voltar a acompanhar o babado. 

Cássio recuava, com uma expressão de pavor. Licurgo o acompanhou, tenso de expectativa. — Isso! Faça!

De onde eu estava podia ver Mauro se forçando a prosseguir, a testa brilhante de suor. Licurgo virou-se pra ele, severo, e respondeu a algo que Mauro pensou:

— Deixe de bobagem. Não é tão fácil enlouquecer, ou eu já teria conseguido.

As mãos do lobo continuaram a se mover, mas ele encarava o antigo professor como se quisesse rasgá-lo com os dentes. Enquanto o Cascaboy continuava aterrorizado, tremendo como liquidificador com defeito, Licurgo virou pro Mauro, abrindo os braços como um apresentador de circo, quase pulando de empolgação.

— Venha! Rasgue a minha garganta. Se lambuze de sangue até os olhos. Vai ser divertido!

Esperou um tempo, mas Mauro não respondeu. O lobo começou a perder a cor, parecendo uma folha de papel. Aguenta as pontas, Lobo Mau, você tá proibido de apagar agora! Licurgo se aproximou, até ficar no nível dos olhos do mago.

— E em troca — prometeu com um brilho cruel nos olhos. — despedaço CADA UMA das mentiras e ilusões atrás das quais você se esconde, inclusive o limite dessa coisinha de olhos amarelos. Só a verdade, nada mais que a verdade, Kuronin, que tal?

Mano do céu, agora eu entendo por que o Ceboludo tinha medo desse cara. Certeza que ele pode cumprir tudo que disse. Eu estou de cabelo em pé, e o pirado nem está olhando pra mim.

— Depois que que você encara a Verdade, lobo bobinho, com todo o seu esplendor terrível, não tem mais volta. Nenhum disfarce, nenhuma mentira, NADA o esconde dela. Você a aceita ou se despedaça. E então? Vamos brincar?

Mauro hesitou e baixou a cabeça.

— Não, não quero. Me desculpe. Por favor, pare de atormentar o Cas. — suplicou baixinho. Amores, ainda não existe uma palavra pra expressar o quanto eu tô chocada.

Licurgo pareceu desapontado, como se Mauro tivesse recusado a oferta do ano. — Atormentar? Por que eu faria uma coisa tão sem graça? Eu o estou libertando dessa fantasia fajuta que ele fez pra si mesmo. Hoje ele vai aprender o que todos os loucos sabem.

E antes que ele pudesse dizer o que era, Cássio urrou. Foi um som de pura agonia, enquanto tentava arrancar o que quer que houvesse na sua cabeça na marra, mas é claro que tudo se transformava em poeira e voltava pro lugar.

Um minuto atrás, eu o teria incinerado; agora queria socorrê-lo. Não sabia o que o Licurgo tinha feito, mas era doloroso de assistir. Mauro saiu correndo até o Cas, enquanto o Louco olhava pra mim satisfeito. Então sua imagem tremulou no ar, como uma miragem ou um sonho, e desapareceu. O Mau se sentou ao lado do Cássio, que ainda gritava como se algo o estivesse partindo ao meio, caído no chão.

“Denise, está pronto. Você e Xavier podem se afastar?”

“E vai adiantar alguma coisa, bofe mágico?”

“Não sei”

“Vamos ficar. Não vou mover o Xav sem um bom motivo”

Obrigado não é suficiente”

“Não, não é, mas vai servir. Se joga na pista, Mau.”

Xavier se sentou com esforço, me abraçando. Eu já estava toda suja mesmo, e foi bom ele me segurar, porque eu estava ficando tonta e com muito frio... Ah. O sangue não era só dele. Para sorte do meu restinho de dignidade, ele só chegou perto e falou como um segredo: 

— Que bom que eu tô com você. — Como se eu já soubesse do resto, e eu sabia. Tantas e tantas vezes que eu o tinha ouvido expressar o que sentia. Eu e meu orgulho besta, devia ter dito também, muito mais vezes, o quanto ele é importante pra mim, o quanto ele é amado. A única coisa que consegui fazer sem afogar o mundo inteiro foi dizer que sim com a cabeça. Ouvi uma risada suave, e um “essa é minha garota”. 

Quando terminou de recitar o feitiço, Mauro curvou-se um pouco mais sobre o ciborgue no chão, que finalmente estava se aquietando, com o braço do lobo ao redor dele. — Shh… Se acalma, Cas. Isso, quietinho. Está tudo bem, a luta acabou. Podemos descansar agora. Isso mesmo, durma. Eu estou aqui.

Os dois estavam longe, dez metros ou mais; não deveria ser possível escutar o que o lobo dizia. Pra meu azar, o mundo inteiro parecia ter feito silêncio. Cássio relaxou, e parecia estar mesmo dormindo quando começou a se desfazer e sumir. 

Quando já não restava nada do ciborgue, Mauro tombou de lado, sangrando por todos os ferimentos, e nós dois soubemos que estava acabado. Poderia funcionar ou não, nós jamais saberíamos. Segurei o Xavier mais perto, tentando, como todas as vezes nos últimos anos guardar a lembrança dele comigo.

Caramba, umas horas atrás isso teria me aterrorizado. Ver o Xavier morrendo. O fato que ninguém lembraria de nós, ou sentiria nossa falta. Mas agora eu só queria dormir. Choque por hemorragia tem suas vantagens, se eu estivesse normal acho que estaria correndo apavorada.

O Xav também parecia horrivelmente satisfeito consigo mesmo. Fazer a maldita coisa certa tinha nos custado tudo, e eu ainda não conseguia ver como isso era tão legal se todo mundo acabaria morto, mas Xavier tinha fé. Eu tinha o Xavier, e isso bastava. Ele foi escorregando pro chão, e não consegui manter os olhos abertos. Quem diria que seria tão simples, pensei, enquanto deslizava pra escuridão.


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Notas finais do capítulo

A todos que acompanharam até aqui, muito obrigada. Espero encontrá-los capítulo que vem, quando saberemos o alcance de uma promessa feita muito, muito tempo atrás.



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