Oitava Fileira escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 25
É por isso que eu confio nessa garota louca




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Às vezes, a única vantagem de ter uma namorada muito curiosa é que você sabe exatamente quando uma conversa acabou. Quando a Dê se afastou, passei por ela e bati na porta. Esbarrei em notícias boas, muito boas, mas também numa tarefa. E quando um anjo passa essa tarefa, você faz depressa.

— Pessoal? Posso entrar? — Diante do silêncio, entrei. Ninguém olhou pra mim. —  É… é rápido. Estou com uma coisa sua, Mauro, e o Ângelo disse que era hora de devolver. Então... toma.

Puxei a sacolinha de tecido do pescoço e deixei na mão de Mauro. Consegui esconder na prisão (no meio do cabelo, não imaginem coisas), e tanto Ângelo quanto Cybermaster me disseram coisas esquisitas sobre ele. Eu já percebi que seria algo como uma “Chave de emergência” pro Cas, mas por que continuavam a fazer referências a xadrez? Não falavam nada pro Mauro, e sim pra mim, o cara mais incompetente em magia?

Todo o tempo que fiquei naquela cela pequena fiquei pensando nisso. Peão na sétima fileira, o que diabos isso queria dizer? Que aquilo era uma ameaça? Um trunfo? Que podia nos dar a vitória? Era uma peça minha, ou do oponente? Porra, odeio magia, é subjetiva demais. Armas de fogo são simples; aqui é o gatilho, ali a alça de mira, aperte o gatilho e não vire o cano pra algo que você não queira matar. Preto no branco.

Mauro olhou indecifrável pra droga de sacolinha, e quem diria que uma coisa menor que um saquinho de chá fosse tão importante.

Sabe, não tem nada pra fazer numa solitária. Um fiapo de sol, talvez um maluco cantando no final do corredor, e só. Já contei como todas as celas eram limpas e brancas. Não podem me culpar por olhar o que tinha dentro daquele negócio que perturbava tanto o sujeito mais assustador que conheço. Ela parecia vazia na verdade. Puxei o cordão, sem imaginar se encontraria ouro, talvez um pedaço de pergaminho, ou… sei lá.

Encontrei sementes. Bem pequenas, parecia que uma respirada mais forte poderia levá-las embora. Meio decepcionante, sem brilho, nem voz do além, nada. Guardei com cuidado de volta e prendi de novo o cabelo. Depois que Denise me soltou, amarrei num cadarço no pescoço e aparentemente essa merda vinha com um GPS acoplado, porque todo mundo parecia saber que eu estava com ela.

Mas porque diabos isso era um peão? Como sementes e uma pecinha de madeira podem estar relacionados?

Luca só suspirou como um velho e enrolou-se. O sujeito foi transformado numa serpente enorme, e apesar de eu não ter medo, espero que ele não esteja, sabe... com fome.

Fome? Caralho, eu quase esqueci! Todo mundo deve estar faminto! — Vou trazer comida pra vocês mais tarde. Dê, vem comigo?

***

— Mas pra onde você tá guiando essa carroça, estrupício? Os dois estão pra aquele lado! E pra que tanta comida? Certo que o Luca é uma droga de cobra gigante, mas isso daria pra alimentar um batalhão.

— Só vem comigo. Vou precisar de ajuda e quero te mostrar uma coisa. — Estranho, ela não respondeu. — O que foi, linda?

— Às vezes sou um pé no útero. Mandona, reclamona, te metendo em roubada. Ok, um pouco mais que às vezes. Como você me aguenta?

Olhei pra ela, e minha namorada parecia melancólica enquanto os cavalos seguiam pra um dos portões laterais. — Ah, mesmo com as roubadas, as fugas, o risco iminente de morte, você irritando toda e qualquer coisa que pode nos matar a cada cinco minutos...

— Também não precisa avacalhar, né, lindo?

— Sei lá, eu gosto do seu jeito. Não tem um dia monótono com você, é como morar num parque de diversões. — Ela me olhou de olhos arregalados, merda eu não devia ter dito isso. A outra Denise vivia num parque de diversões. — Desculpa.

— Você também sentiu, né?

— Aham. Xavecão está morto.

— A outra Denise também. Nunca pensei que sentiria tanta falta dela. A gente quase não se via mais.

Eu sabia como era, mais que qualquer outra pessoa. — Mas como eu dizia, não tem dois dias iguais com você. E já comentei que beija bem pra caralho?

Ela encostou de leve a cabeça em mim, o braço em torno dos meus ombros. — É, eu beijo sim. Mas tenho um motivo muito bom, sabe?

É tão raro ela me elogiar que até me sentei direito no banco. — E qual é?

— Se você não sabe, meu estrupício favorito, é uma pena. Não vou te contar. Pra onde estamos indo, afinal?

Desci, abri o portão e quando fizemos a curva, vi o queixo dela cair de assombro.

— É... é...

Bem em frente ao portão principal, havia algo como uma tempestade de areia tentando invadir um domo invisível. Dentro do domo, pessoas. Muitas, encarando assustadas a poeira tentando entrar. Pelo tamanho da coisa, devia ter umas duas mil pessoas ali, quase 80% do total que vivia na capital.

Ela começou a procurar com os olhos, precisaria ser um mago excepcional pra proteger tanta gente, ou ter algum item realmente poderoso, ou...

— Ele tá ali em cima, ó.

Ela não conseguiu evitar o sorriso. Acima da cúpula de força, estava o Ângelo.

— É lindo, não é? Seu plano funcionou mesmo.

***

Senti tantas coisas opostas ao mesmo tempo que pensei que fosse ter um troço. Tantas pessoas inteiras, depois da passagem de Nero e do bofe do Armagedon era um milagre. Por outro lado, não podia evitar a sensação de perda.

Poxa, ele estava tão perto. Podia se mover mais uns quarteirões e salvo a Carmem, né? Ou algumas das dezenas de pessoas da mansão.

(A Doida não, nem o Capeta Jr., ou as gêmeas; deixa os quatro virarem lanche de urubu, ninguém vai sentir falta)

Deixa de ser besta, Denise, se ele estivesse lá não estaria aqui. Todo aquele pessoal também é importante pra alguém. Têm parentes, história, não mereciam morrer daquele jeito gratuito. Mas, droga, nenhum deles era minha amiga. Era egoísta pra cacete, mas era verdade. Havia tão pouco da minha vida antiga naquele lugar, e droga, eu amava minha vida antiga. A dança, a maquiagem, quando o mais importante era atualizar as redes sociais e ficar sem fazer nada no quarto, atualizando os babados e dando um up nas unhas.

Eu sentia falta daquilo, às vezes tão forte que chegava a doer. Mas que graça teria lembrar agora? Claro, tinha o Xavier, mas era diferente. Ele era desajeitado numa vida comum, como uma foca acima da água. Mas foca não é feita pra viver na terra, e sim nadando. Ele... pertence a isso aqui. Aqui, ele é o melhor, mais valente, e o mais... Ah, vocês entenderam.

Claro, a maior parte do tempo eu também era absoluta e maravilhosa, mas olhá-lo animado, passando no meio da poeira sem medo e entregando comida pro pessoal lá dentro me dava um aperto no peito. Eu não sei se ainda tenho um lado correto e legal.

Quando ele se tocar disso, acho que vai me deixar.

Dúvidas?

Aaaah! Pelos saltos da Lady Gagá, que ideia é essa de me dar susto, ô desgraça? Quer me matar do coração?

Eu sei que vocês já perceberam que não era o Xaveco. Olho pra trás, tem um anjo em armadura completa e um escudo quase do meu tamanho. Ai, minha Nossa Senhora do CRTL+Z, me acuda.

Olá, Denise.

Era o Ângelo, e ao mesmo tempo não era. Os cachos e os olhos muito azuis estavam como eu lembrava, mas a expressão... Envelheceu uns duzentos anos. Não me espantava, anjo da guarda não devia ser a profissão mais cobiçada com o Cas à solta, mas era como ver um filhote com medo, ou uma criança espancada. Era antinatural, errado um anjo que perdeu a inocência. Tive vontade de abraçá-lo, mas me segurei.

Hesitava, procurando as palavras. O cérebro travou, procurando um jeito de sair da confusão. Me senti meio Xaveco. Caramba, chamei o anjo de desgraça?

Está tudo bem.

Xavier veio, suado do esforço, e acenou de longe. — Oi, Ângelo. Terminei de entregar, volto com mais assim que puder. Talvez umas tendas, e água. Caramba, tem muito trabalho ainda. Vamos, Dê. Eita, vocês estavam conversando?

— Não, Xav. Vou te ajudar, ainda tem muita coisa pra fazer. — Ouvimos alguém no meio da multidão “abram caminho!” “Com licença!”. Ei, eu conhecia aquela voz! — Johnny, seu lindo! Você tá vivo! Licença, Ângelo, Xaveco.

E corri até a barreira. Zé Luís afastava as pessoas, e parou antes da linha invisível, tão espantado quanto eu. — Denise, tinha razão. Graças a você e ao anjo, todos nós estamos salvos. Você está bem? Como consegue ficar aí fora?

— Longa história. Não fui só eu, divo da burocracia. Se você não tivesse acreditado em mim, não teria adiantado nada.

E invocar uma ajuda do calibre do Céuboy ali não era uma das minhas muitas habilidades. Pura sorte ele estar por perto, meu bem, mas só fiz cara de esperta e fiquei calada.

— Quando não te encontrei aqui, fiquei preocupado. — Luís me olhava com uma intensidade que me fez pensar “Oh-oh”, e quase estendeu a mão através da barreira.

Veja bem, sei que comentei que só namoro com o Xavier de verdade há pouco mais de um mês, pra segurança dele. Antes disso... Bem, não ficamos os dois sentadinhos e castos, esperando um dia que talvez nunca chegasse. Pareço a Mônica pra vocês?

(Mal aí, miga, mas é verdade. Meio mundo babando aos seus pés e ficar esperando o babaca do Cebola, enquanto o verdura passava o rodo nas secundárias... Opa, teve aquela história em que ele e eu demos uns pegas. Ok, voltando pra história)

A verdade é que teve um tempo em que eu e Luís éramos mais que uma parceria profissional. O cara sabe umas coisinhas sobre umas coisinhas. Pelo visto foi só pensar a respeito, e o Xaveco surgiu do nada. Estendeu a mão pra dentro da barreira com firmeza.

— Olá, José Luís. Soube que você é amigo da minha namorada. Prazer, Xavier.

Namorada? — Luís repetiu, um tantinho chocado demais. Xavier abriu um sorriso que parecia alguém tendo uma cólica.

— Sim, namorada — confirmou, dando uma última sacudida que balançou quase o Luís todo. — Vamos, Dê, temos muita coisa pra trazer.

***

Apesar desse meu corpinho esbelto, posso carregar peso, e todo mundo que estava salvo ainda precisava de comida, bebida e abrigo. Enquanto Zé Luís organizava o circo lá dentro, nós dois éramos a linha de abastecimento. Quando acabamos, a festa parecia um acampamento de refugiados. Ângelo não podia sair, ou todo mundo iria pro saco.

Enquanto íamos e voltávamos da cidade, os restos de gente viravam uma poeira fina. O que quer que Cássio tivesse ativado, ainda estava acontecendo. Ele estava levando a missão de apagar os humanos da Terra bem a sério.

Depois do meu dia de crossfit beneficente, segurei a onda e fui falar com o Ângelo. Mais uma vez, ele desceu pra falar comigo.

— Ângelo, meu ser de luz favorito, me tira uma dúvida.

Quem cala consente, então continuei:

— Sabe que é o nosso Cascão quem tá comandando esse bordel, né? Você pode nos ajudar a controlar o bofe e salvar todo mundo?

Ele pareceu ainda mais sério. — Não, Denise. Não posso enfrentar o Cássio diretamente.

— Ué, por quê?

Ele é uma força natural agora. Um guardião da Terra. E não está só.

Ele parecia um pouco constrangido, como só ficava quando falávamos da quase-namorada dele. Ai, droga. Precisamos mesmo de uma trilogia pra lidar com isso. — Você tá dizendo que as ninfas estão do lado do pirado? Até a sua namorada?

Sim. A maior parte do mundo natural sofreu muito na mão humana. Pra eles não existem conceitos de bem e mal, apenas de equilíbrio e desequilíbrio. Força e fraqueza.

Droga, ele tinha razão. Apesar das pessoas virando farelo, nenhum animal foi ferido pelo poder do Cas. Se enfrentássemos o Cássio e ele pedisse ajuda, quantos seres sobrenaturais ficariam do lado dele? Eu podia pensar numa dúzia, Robson por exemplo. Ele não era apenas um guardião. Era o vingador deles, seu campeão máximo.

Sensacional. Fabuloso. Agora temos que vencer a Natureza, e nosso reforço celeste não pode ajudar porque está salvando uma cidade inteira. Alguém aí tem o número da Liga da Equidade pra me dar?

Existe esperança, Denise. A maior parte dos poderes não tomou parte ativa na guerra. Agora ele está numa espécie de empate, e não creio que sairá dali tão cedo.

Empate? Mas o que poderia...— Sococó da Ema. É onde ele está agora, né?

Sim. A luz dos amaldiçoados o detém, mas não pode feri-lo.

Gente, me amarrota que eu tô passada! A Academia do Guarda-Chuva tupiniquim veio pro nosso lado? — Que tudo! Eles estão defendendo a cidade. Podemos pedir a ajuda deles e...

Olhei pro domo de magia celestial e desisti. Assim como o Ângelo, eles não sairiam da cidade deles, a destruição que Cássio invocava persistia, então se ele apenas desistisse do confronto e desse a volta... Nada na região poderia segurá-lo.

Xavier sabe o que fazer.

— Que bom! Então você explicou como salvar o mundo.

Sim.

— Pro Xaveco.

Isso mesmo.

— Ângelo, meu lindo, ser celeste do meu coração... Com todo o respeito do mundo, tá maluco?

O menino de auréola tinha perdido a noção! Como assim jogar a responsabilidade de compreender magia antiga pro sujeito menos mágico desse cabaré?

O Ângelo nem se abalou. — Ele saberá o que fazer. Confie nele.

Respirei fundo e contei até trinta. — Tudo bem. Vou só aceitar que você sabe o que está fazendo. A propósito... Obrigada.

Apontei todas as pessoas se arrumando pra dormir cedo. Graças às habilidades do Luís, já havia uma rotina acontecendo, e ninguém estava em pânico. — Por salvar todo mundo que pôde. Não sei o que eu faria se você não estivesse aqui.

Lamento pela Carmem. Gostaria de ter salvado as pessoas dentro da cidade também.

— Todos nós, Ângelo. Todos nós.

***

— Xavier?

— Pode falar.

— Você tá esquisito.

Tentei fingir que dormia, mas ela me conhece. Não vai desistir até ter uma resposta. — Só estou cansado.

— Em mim esse papo não cola, Xaveco. Tenta outro.

— Só quero dormir, Denise. Sei lá há quantas horas eu não durmo. — “E estou com raiva, não quero discutir com você”, pensei. Estou mais que cansado, hoje foi o pior dia da história dos dias fodidos e isso tá mexendo com a minha cabeça.

— Não é só isso. Você tá rabugento desde o... — a risada dela me irritou de um jeito novo. — Pelos saltos da RuPaul, garoto, você tá com ciúme? Do Luís?

Caralho, passei o dia todo ouvindo o nome desse cara. Não tô com ciúme daquele magrelo. Claro que não, confio no meu taco, mas tô ficando cheio de ouvir do Zé Luís como se ele fosse o porra mais organizado e eficiente da merda do universo. Aliás, tô cheio de ser o secundário na minha própria história.

— Já disse o quanto detesto quando me chama de garoto.

— Você tá se comportando como um, Xavier. Vira pra cá.

Ela tem razão, eu estou rabugento, talvez um pouco infantil. Só preciso de umas trinta horas de sono, poder fazer alguma coisa pra evitar o fim das pessoas todas e que meu antigo chefe inteligente pra caralho pare de dar em cima da minha namorada. Da mulher que levei sei lá quantos anos pra convencer a me dar uma chance.

— Que é?

— Olha pra mim. — Virei a contragosto. — Xavier, você está com ciúmes. Não tem problema nenhum nisso, só não tem motivo. Não tem mais nada entre mim e o Luís, e não vai ter.

A compreensão do que ela disse mexeu na raiva de cem jeitos diferentes.  — Quer dizer que já teve.

— Sim, já teve. Uns anos atrás. Aí acabou, e continuamos amigos.

— Todo aquele tempo me dispensando... Mas deu um jeito de namorar o Luís. O problema não era realmente o trabalho, era?

Puta merda. Claro que eu sabia que Denise me escondia coisas, não sou um completo imbecil. Mas lembrar de como éramos próximos na floresta, dela afastada de mim todo esse tempo na cidade, e imaginá-la nos braços do Zé Luís, enquanto me rejeitava... Como o trouxa pau-mandado que todo mundo dizia que eu era, doía pra caralho.

— Nunca foi você, Xavier. — Foi como levar um chute no saco. Que porra era essa de “nunca fui eu”?

O problema nunca foi você, estrupício — se corrigiu, como se fosse óbvio. Nada nessa merda era óbvio pra mim. — O que eu fazia pra Maria... era perigoso. Eu não queria que você-

Perigoso? — Nunca cheguei tão perto de gritar numa discussão com ela. Onde porra Denise achava que eu trabalhava? Numa creche? — Me explica como isso podia ser mais perigoso do que o que eu fazia. Como o Luís podia aguentar esse sei-lá-o-quê e eu não.

Denise fechou os olhos, como fazia quando era mais sincera do que queria. — Eu trabalhava com vivos, Xav. Gente perversa com uma memória longa e um rancor proporcional. O Luís é um cara legal, admito –

— Podemos por favor parar de falar do porra do seu ex? — Pedi, mais rude do que pretendia. Nunca tinha sentido isso com tanta violência. Era como se minha imaginação tivesse saído do controle, gritando coisas malucas e certamente impossíveis.

Como por exemplo, minha namorada não insistir nessa cruzada insana apenas pela melhor amiga, e sim pelo Luís. Pelo cara importante e inteligente, que assim que saíssemos dessa puta confusão podia dar à Denise tudo que ela sempre quis, enquanto eu... Puta merda, o que é que eu tinha, além da roupa do corpo e armas roubadas num buraco na floresta?

Eu a amo. Mais do que minha vida. Isso é tudo que eu tenho a oferecer. O que eu vou fazer se depois de arrumarmos essa merda toda ela decidir que isso não é o bastante?

— Xavier! Me escuta até o fim, droga!

Parei de bufar e olhei pra ela. — O Luís não é mais capaz ou melhor que você, e também não podia encarar a maluquice que era minha vida, mas se um dia eu enganasse a pessoa errada...

Não pude evitar me surpreender um pouco. A raiva e a amargura escorriam das palavras dela. — Sim, você ouviu direito. Enganar. Manipular, seduzir… Escolha a palavra que quiser. Isso era o que eu fazia, além de um incêndio ocasional. Eu nunca tive nada sério com o Luís, ele sabia o que eu fazia no trabalho, ficou tudo bem. Eu não saberia trair você. E se um dia alguém largasse o cadáver do Zé Luís na minha porta como um aviso, bom...Seria uma merda, mas eu seguiria em frente. Mas se fosse o seu...— Ela tentou segurar um soluço, os olhos úmidos furiosos grudados em mim.

Não consegui responder.

— Já ouvi essa ameaça. Uma boa dúzia de vezes. Mas eles não te encontraram. Ninguém sabia de você, nem mesmo a Maria ou o Nero. Aqueles dois achavam que eu não me importava com você, que era só meu informante. 

“Me diz como porra eu poderia seguir com a vida se fosse o seu cadáver na minha porta, Xavier, porque eu não sei.”

Me sentei na cama, ainda morrendo de vontade de fazer alguma idiotice, como correr até lá fora ou tentar descobrir o que mais Denise tinha escondido de mim, mas me forcei a ficar parado. Respirei bem devagar, fechei os olhos. Isso era ridículo.  Estava com raiva, me sentia um trouxa, e discutir só estava piorando tudo. 

Quando estava mais controlado, abri os olhos e um brilho metálico chamou minha atenção. Aquela porra de isqueiro. Como sempre, me lembrava daquela noite, da expressão satisfeita do projeto de demônio enquanto acionava aquela merda e punha fogo em mim.

Será que demorou uma semana inteira entre eu descobrir que Seu Cebola foi assassinado e acabar preso naquele poste do inferno? Tive que me segurar pra não confrontar Bruno na hora, como um mocinho otário de novela.

Como é que eu saberia lidar com a Denise sendo uma merda de Mata Hari do Armagedon? Pergunta simples com resposta simples: Não saberia. Com certeza eu faria uma idiotice em tempo recorde e mataria nós dois. Sou um merda mentindo, inclusive pra salvar minha vida.

Porra, Xavier, larga mão de ser burro, ou você vai jogar fora a melhor coisa que já te aconteceu. Quando me virei pra ela, Denise me encarava com… aquilo era medo. Disfarçado, mas era.

— Mas que porra-

— Fala de uma vez, Xavier. Eu aguento. 

— Falar o quê?

— Eu acabei de admitir que usei um sujeito decente como o Luís, que não ligava muito pra possibilidade concreta dele acabar morto por minha causa. Isso não foi o pior que já fiz, nem de longe. Não tenho como provar que não estava usando você. Que… te amo. Tudo isso que você está pensando de mim… inclusive os palavrões… provavelmente é verdade. 

Denise continuou a me encarar, desafiadora. Ei, ela achava que eu queria terminar?

Fiquei tão espantado que por um momento não pude responder. 

— Vai ficar só parado olhando, Xavier? Sua namorada acabou de assumir que é uma puta manipuladora. Não vai mais nem falar comigo?

— Eu estou com raiva, Denise. — respondi devagar, mantendo o tom de voz mais controlado possível. Ela cerrou os punhos, esperando o golpe. — Não se chame de “puta” nunca mais. Ninguém fala assim de você na minha frente, nem mesmo minha namorada. 

A cara franzida se desfez em confusão. — Mas o que… Xavier, você ao menos escutou o que eu falei?

— Escutei. Queria que você tivesse me explicado de outro jeito. Pelo visto tem toneladas de coisas pra gente conversar. Mas não vou te deixar. Lutei por tempo demais pra desistir da gente por tão pouco. 

— Como assim, tão pouco

— Por mais que eu odeie ter sido deixado de fora, foi a única coisa sensata a fazer, Denise. E ficou no passado. Fui um soldado leal de uma tirana psicótica todos esses anos. Não tenho onde cair morto. E tenho certeza que se eu não tivesse esbarrado na porra da verdade, ainda estaria defendendo a Maria. Você vai me deixar por isso? Ou acha que foi menos grave do que o que você fazia? 

Podia ver um monte de emoções passarem nos olhos dela, e por um momento tive medo que ela fosse fugir. A Dê odiava demonstrar fraqueza, mesmo sabendo que eu nunca usaria isso contra ela. Caminhei até ela e a segurei nos braços. Ela ainda tentou sair, mas então relaxou e afundou o rosto no meu peito.

— Estou com raiva por saber desse jeito e por estar agindo como um babaca hipócrita. — Teve um tempo que eu tentei esquecê-la, e estive sim com outra pessoa.  Droga, eu nem lembrava mais — Você tem razão, tô queimando de ciúme do Luís. Por tudo que ele pode te dar e eu nem imagino como vou conseguir. 

Podia sentir a raiva ir embora enquanto eu falava a verdade que sabia:

— Não dou a mínima pro quanto você se acha má e que eu deveria te dar um pé na bunda. Vai ter que lutar pra me deixar, Denise, e tenha certeza que eu vou brigar três vezes mais pra te convencer a ficar. Foda-se o fato que você é uma mentirosa manipuladora, e eu um cão de guerra imbecil. Sou apaixonado por você desde os treze anos, Denise, e sei que você me ama. Podemos fazer essa merda dar certo. 

Só percebi que ela chorava quando senti minha camisa molhada. A carreguei pra cama, ela encolhida com o rosto ainda escondido de mim. Senti o alívio das costas quando encostei na parede, e apesar da minha determinação de ficar acordado, acabei cochilando umas horas. 

Acordei de supetão, desorientado e sem ela. Onde diabos foi a Denise? Quando percebi, ela estava bem ao meu lado, com as pernas cruzadas e um sorriso terno não muito comum. 

— Estava te vendo dormir.  Você sempre parece tão tranquilo. 

— Estamos bem? — Mesmo na penumbra, pude ver as sobrancelhas dela juntarem.

— Claro que não, lindo, mas vamos ficar. Dorme. 

Fechei os olhos uns minutos e abri o braço, mas ela não veio. — Você não tá conseguindo dormir, né? 

— Daqui a pouco eu vou. Vai dormir, Xav — insistiu.

Deixei a cabeça cair de novo no colchão. — Ok. Olhos fechados. Estou dormindo. — Até simulei uns roncos, fazendo a Dê dar um risinho. Tateei até encontrar a perna dela. — Vem cá. 

Ela desistiu e encostou em mim. Relaxei, sentindo o cheiro dela tão perto de novo, mas o sono sumiu. Susto é um negócio que desperta mesmo a pessoa, pelo visto, mas fiquei parado esperando minha namorada dormir. Não sei quanto tempo passou até que ouvi um frustrado: 

— Sensacional. Agora nenhum de nós dois está dormindo.  

Como uma pessoa pode ficar tão cansada assim e ainda não conseguir dormir? Que merda. — Podemos nos levantar, comer alguma coisa, sei lá. Ficar olhando pro teto não tá ajudando. 

— Tive uma ideia. — Denise se mexeu debaixo do meu braço, até ficar de frente pra mim. Chegou tão perto que pude sentir sua respiração quente no ouvido. — Continua parado, e fecha os olhos.

O que ela fez depois no meu pescoço me arrepiou pelos que eu nem sabia que tinha.

Caralho...

— O que foi? Quer que eu pare? — ela perguntou, com uma falsa inocência. 

— Não. Isso tá... foda... Não para...

— É essa a ideia, lindo — sussurrou, com malícia na voz, as unhas deslizando pela minha barriga. Cacete, sou o homem mais sortudo da Terra. Me esforcei pra articular a frase inteira.

— O Ma...

Tem aquele cara no quarto do lado escutando até meus pensamentos, eu quis dizer, o que não é um dos meus fetiches, mas ela não me deixou chegar tão longe. Continuou me torturando e se divertindo com isso, sem deixar que eu me movesse. Quando eu já não acertaria nem meu nome completo, ela parou, com um sorrisinho convencido nos lábios.

Puta merda, a miserável sabe que me tem na palma da mão. Sorri com ela, e ainda tinha aquela expressão besta quando ela se inclinou de novo pro meu ouvido:

“Eu te amo pra caramba, Xavier. Já passou da hora de nós nos acostumarmos com isso”

Aí foi minha vez de não deixá-la falar mais, e mandar o foda-se pro Mauro ouvindo e pra porra do mundo inteiro. Aquelas trinta horas de sono podem esperar um pouquinho mais.


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Notas finais do capítulo

Tive que segurar esses dois nas cenas finais. Apesar da quantidade de sangue e mortes, essa ainda é uma história +16.

Obrigada mais uma vez por lerem até aqui, e até semana que vem.



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