Oitava Fileira escrita por Nanda Vladstav


Capítulo 26
Eu ganho uma história




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— Mais uns dois diass, acho, e voscê vai poder se transformar, e usar magia direito. Quem me dera fosse fácil assim antes, eu teria menoss cabeloss brancos.

— Que bom, já não aguento mais ficar nessa forma. Ou preso nesse cubículo.

— Culpa sua, Mau. Xavier, sua vesz.

Aquele era um dos tabuleiros mais luxuosos que já usei, e podia apostar que foi do pai da Carmem, tanto pelo marfim quanto pelo pouco uso das peças. Depois de um dia necessário de descanso, Xavier foi correndo até a mansão e começou a jogar sozinho, murmurando sem parar algo sobre peões. De algum jeito, também achou minha aliança e a corrente do Mauro, e nos devolveu. Agora o idiota não tirava mais aquilo nem pra dormir.

Eu não partiria antes de Mauro estar recuperado (pelo menos o suficiente pra ter alguma chance), e aceitei jogar com Xavier. Apesar de jogar com Viviane há muitos anos, sabia apenas o suficiente pra passar o tempo.

Xavier é um excelente enxadrista desde a infância, e em condições normais eu não venceria partida alguma. Mas ele não se concentrava, perdendo chances de vitória ao insistir em avançar com os peões até onde podia.

— Luca, sua vez.

Olhei o jogo. Xavier estava positivamente descuidado — Capturei seu bispo.

— Verdade. Consegui. Me empresta o tabuleiro, Luca, preciso pensar nisso aqui.

Sibilei aborrecido. Metade das últimas partidas acabara assim, com ele confiscando o tabuleiro quando seus peões alcançavam o lugar que queria.

— E lá se vai sua partida, pai.  

— É uma pena. Eu realmente poderia ganhar dessa vez. O que foi, Mauro?

— Em dois dias, você vai pra casa. Vai poder levar aqueles dois, como eu te pedi?

— Posso. Denise não é poderossa o sssuficiente pra Viviane considerar como ameasça.

Mesmo que Mauro estivesse melhorando num ritmo impossivelmente bom, não conseguia ficar satisfeito. Nós dois sabíamos que era uma contagem regressiva, e eu não podia evitar a sensação de fracasso.

— Você deveria vir conossco.

— Eu queria poder. De verdade. Mas não posso arriscar, pai. Eu e Cássio ainda somos ligados de uma porrada de jeitos mágicos. Se eu for até a casa de vocês, ele poderia me seguir? Poderia espalhar essa vingança na dimensão de vocês, ou ele é ligado à Terra somente dessa dimensão? Não quero descobrir.

Eu não tinha o que responder. Mauro tinha razão, eu simplesmente não conseguia aceitar a derrota. Já tinha sido tão derrotado, a vida inteira, que mais essa parecia a gota d´água.

— Está tudo bem, pai. Tinha que ser assim, eu acho.

— Sse Viviane pudesse examinar esse problema... — Merda. Meus pensamentos corriam e corriam, ratos num labirinto sem saída. Dessa vez, tudo que eu podia fazer sem arriscar tudo era sentar e assistir. Anos atrás, eu ainda teria tentado. Éramos quatro adultos dançando na beira do abismo, e não podíamos perder nada que já não estivesse perdido mesmo.

Mas agora, eu tinha a Viviane, Ramona, Nina e o Leo. Eu não conseguia dormir direito, pensando em como o Fred ainda estava acamado depois do acidente, meio surdo e preso a tubos, quando voltei a essa dimensão. Nos momentos mais negros, me perguntava se Ramona e Mestre Bóris tiveram algum sucesso, ou se teria um túmulo pra visitar.

Pensei que poderia consertar as coisas, depois que encontrei Mauro vivo mesmo após tudo que aconteceu. Então descobri que não importava o quanto lutasse, eu ainda perderia o Mauro e o Cássio. Era sempre assim, a sorte me sorrindo só por tempo suficiente pra me acertar um chute nos dentes.

— Vai ficar tudo bem, Luca. De verdade — repetia, trabalhando naquela pequena sacola mágica como um tecelão.

De algum jeito, ele tinha achado paz com aquele desfecho. Mas eu não conseguia.

— Eu devia pelo menoss acompanhar você.

— Pare com isso. Você sabe que se chegar perto demais, o Cas vai reconhecer o feitiço que te transformou em animal. Essa forma não vai te proteger.

— Então use o mesmo que aplicou naqueles dois mais uma vez.

— Está ligada ao Cas, Luca. Entendo agora, destrui-lo não é suficiente. Pra ele acabar de verdade, tudo ligado a ele precisa ser destruído também. 

Fez uma pausa, como se até mencionar isso fosse doloroso.

— Você já ajudou em tudo que podia, pai. Tem que ser eu, e é melhor que eu vá sozinho. Salve aqueles dois, e volte pra casa. Nós vamos ficar bem. Sempre ficamos.

Não, Mauro. Vocês são um par de idiotas sem cura que sempre encontram um jeito novo de se foder, é isso que vocês fazem. Mas dessa vez nenhum de nós vai estar perto pra ajudar.

— Isso também. — Ele acrescentou num sorriso sem vergonha alguma.

— Por isso eu não queria ouvir suas desculpas. Você não se arrependeu de nada, seu pilantra.

— De envolver vocês nessa putaria, sim. De saber que você e Fred foram feridos por nossa causa, mais do que consigo dizer. Pelas pessoas que morreram nas mãos do Cas, bastante. Mas de dar àquele javali imbecil quase seis anos a mais… mesmo que tenha sido uma vida fodida, violenta e que eu tenha errado pra caralho...

— Nem um pouco, não é?

— Conhecemos os filhos da Ma, pai. Tivemos um tempo muito bom. Teria feito diferente, mas não me arrependo. Não trocaria cinco minutos de briga com meu javali imbecil por décadas com qualquer outra pessoa.

Me olhou aflito assim que percebeu. — Ah, merda, eu não quis dizer...

Meneei a cabeça. Claro que eu tinha entendido. Ele sequer tinha percebido que tinha chamado Cássio de meu javali imbecil. — Eu sei que você não está falando de nós, Mauro. Relaxe.  

Talvez a única coisa que meu filho precisasse de mim agora fosse deixá-lo ir. — Conta. Não aquela versão bonitinha que você contou pra Ma, quando trouxemoss os meninos. Fala como foram esses anoss todos. Os de verdade.

— Aconteceu coisa pra caralho, Luca.

— Temoss dois dias, e eu ssou um bom ouvinte. Só não faço questão de ouvir da vida sexual de vocês dois.

— Droga, pai! Não somos um casal, até você vai insistir nisso? Você sabe que o Cas é hétero!

— Vocês não desgrudam nem pra dormir, dividem até a magia, e morreriam um pelo outro a qualquer hora. Todos nós te víamos quasse babar pelo homem, e quando teve que optar entre o Cássio e o mundo inteiro, sabemos quem você esscolheu.

Vi Mauro ficar muito corado, e quase não reprimi o sorriso. Deus, eu amo esses dois idiotas. — Além disso, como Denisse tão bem apontou, você ainda não tirou essa aliança. Explica aí como isso é não ser um cassal.

— Se você não fosse meu pai, eu te mandaria se foder.

Só olhei pra ele. Mago poderoso ou não, eu ainda lhe daria uma surra se ficasse folgado demais, e Mauro sabia disso.

“Você é um pai fantástico, Luca. Eu te amo pra cacete, e queria que as coisas tivessem sido de outro jeito. Vou te deixar orgulhoso.”

— Eu ssei.

— Precisava dizer mesmo assim.

Dois dias é tão pouco. Tanta coisa que eu poderia e deveria ter dito a esse estúpido. Meu Deus, o que eu vou fazer sem meus dois filhos imbecis?

— Não precisa, pai. Você sempre foi melhor demonstrando que falando. Você atravessou uma dimensão e enfrentou uma guerra pra nos ajudar, quer mais amor que isso? Se senta aí, ou o que quer que serpentes façam pra descansar.

Não entendi, mas me enrolei ao lado da cama. Mauro se sentou com algum esforço e fechou os olhos, um meio sorriso melancólico.

— Você me pediu uma história. Já mudou de ideia?

Esperei calado, a cabeça apoiada no colchão.

— Acho que posso começar a contar da semana que vocês foram embora. Eu e o javali imbecil estávamos prontos pra começar a procurar o André, tio do Cas, mas a anta ainda…

***

Ah, faça-me o favor! — Ei, bonitão da Paulista! Temos um monte de coisas pra fazer, desapega do tabuleiro!

— Dê, eu sei que a pronúncia afeta o resultado, mas é possível reescrever encantamentos? — Ele me respondeu, tão concentrado que nem me ouviu reclamar.

Havia uns dois dias que Xavier não desgrudava daquele jogo, falando sozinho como um doido. Nada contra loucura, tenho até amigos que são, mas precisava da ajuda dele pra ficarmos prontos pra viajar. Tinha um monte de pessoas lá fora que precisavam comer até o Super-Lobo salvar o dia. Apesar disso, sentei e olhei o tabuleiro. Uma coisa que o Xaveco nunca teve foi preguiça, parecia mesmo importante pra ele resolver aquilo.

— É bem complicado, Xav. Costuma ser menos difícil quando é alguém mexendo na própria criação, mas tem muita chance de dar errado. Por quê? O que isso tem a ver com esse xadrez?

— Cybermaster e Ângelo me disseram umas coisas sobre aquele saquinho de pano, tinha algo a ver com xadrez, e eu sei que é importante, mas não consigo adivinhar como. Já falei com Mauro e com Luca, os dois confirmaram que aquilo é feito pra destruir o Cas, de uma vez por todas. Mas porque o anjo disse que eu saberia a resposta? Por que diabos o Cyber falou da sétima fileira? Um peão na sétima fileira não faz nada, talvez ameaçar a torre…

— Calma aí, Xaveco, mais devagar. Você disse que aquele saquinho minúsculo tem poder pra destruir o Cássio?

— Não, é mais como uma chave. O trocinho permite destruir o Cássio. O Mauro pediu pro Ângelo, como uma medida de segurança caso, sabe… acontecesse algo como...— E girou o dedo no ar— ...isso. Mauro me garantiu que mais ninguém além dele pode usar, mas que é feito pra apagar o Cas inteiro, e só. Uma vez ativado, é isso que vai fazer. Que o poder daquelas sementes vai neutralizar e-

— Xaveco, tô bege! Você abriu a sacolinha? Xeretou o conteúdo? Sem pedir ao Lobo Mau?

Gente, o Xaveco sem jeito é uma gracinha, não me canso nunca. — Aconteceu, ok? Eu tava enfiado naquela cela sei lá quantas horas, e tomei cuidado, nunca-

Botei a mão no ombro do meu ingenuozinho favorito. — Tô brincando, fofo. Na verdade não, estou morrendo de orgulho do meu Xavequinho finalmente crescido, indo checar os babados ao invés de esperar a banda passar.

Aí a ficha caiu, e perturbar com o Xavier perdeu toda a graça. — Peraí, você disse “Apagar o Cas inteiro”?

— Foi isso que o Mauro disse. Por quê?

— Lindo, você sabe como o Mauro deu aquele olé na morte? Como nós estamos vivos no meio desse fuzuê do inferno?

— Magia?

Ai minha Nossa Senhora do Chuveiro Elétrico, dai-me resistência...— Ô demência, claro que foi magia! Mas o negócio é o seguinte: Cássio é praticamente imortal, então Mau pega disso pra si.

(Acho que só sendo imortal mesmo, se aquele barraco monstruoso que rolou uns capítulos atrás é o que eles chamam de discussão)

 Xaveco continuou atônito, me esperando explicar. — Quando Mauro botou aquele feitiço bizarro na gente, ele passou um pouquinho disso pra nós dois. Então, pro poder do Boy do Armagedon, nós três somos o Cássio.

— Tipo um cavalo de tróia mágico? Cacete, isso foi esperto. Mas se isso quer dizer que o Mauro e nós dois não morremos porque o Cas tá vivo, na hora em que o feitiço destruir o cara…

— Isso mesmo, lindo. Vai destruir ele inteiro. Ou seja...

— Puta merda.

— Exatamente esse o espírito. Juro que não sei se eles são um casal lindo ou se Mauro precisa pra ontem de um psiquiatra e um caminhão de remédio tarja preta. O Cas também, se bem que bater as botas três vezes bagunça mesmo a cabeça do cidadão, né?

Quase vi as orelhas do Xaveco em pé. — Dê, me fala mais disso?

Resumi o babado anterior: que o Cascaboy ia e vinha do além mais que o Superomão, e que essa era a versão 2.0 do maluco. Xavier me escutava sem nem piscar, e eu queria de verdade ser essa pessoa que ele acha que eu sou.

Embora esteja feliz pra caramba com o fato de que eu e o Xav vamos escapar dessa bagunça, dói cada vez que lembro que o Mauro vai ficar. Eu até tentei, sabe, convencer o bofe mágico a voltar com a gente. Eu sei, o fim da raça humana, o Cas abalando Paris em chamas (sem falar que parte disso é minha culpa), mas não é justo. Simplesmente não é justo o Mauro morrer no meio dessa bagunça, e arrastar o Cas junto. E ainda mais dar um jeito de salvar nós dois da treta cósmica. Eu não seria tão nobre, não com as duas pessoas que tinham começado tudo.

Mauro não me deixou nem começar. — Eu vou ficar, Denise. Preciso impedir o Cas de estragar tudo, e só eu posso fazer isso.

Acho que nunca vi uma expressão tão serena quanto aquela. Isso, naquela cara de adolescente que os dois ainda tinham, ficava ainda pior. Mais uma vez, ele me respondeu antes que eu abrisse a boca. — Eu não sou o herói aqui, Denise. Não de vocês. Depois de sete anos sendo temido, idolatrado e escorraçado como uma aberração, atacado toda semana e vendo todo o mal que as pessoas já fizeram a esse mundo, não dou tanta importância assim pros humanos. Se estivesse no nosso lugar você também não daria.

“Mas amo o Cássio, e ele se importa com vocês. Ele ainda conseguia encontrar as coisas boas, os pequenos atos de bondade que me faziam acreditar que vocês podiam aprender com os erros, fazer direito dessa vez.  Ele não merece ser reduzido a um monstro. Então sim, eu vou destruí-lo, e vou morrer fazendo isso. É necessário, e esse mundo sem o Cas… não me interessa.”

Eu simplesmente aceitei. Insistir naquilo usando um monte de clichês seria tão ofensivo quanto inútil. O que eu devia era fazer a segunda chance valer a pena. Olhei pro Xavier. Caramba, como eu tenho sorte.

— Agora vem, lindo. Podemos olhar pro tabuleiro com cara de espertos mais tarde, temos muita coisa pra arrumar.

***

Caralho, eu tô sonhando. Com certeza. Ninguém me acorde, por favor.

— Luca, aquilo é…

Aquele é um amigo meu, vai voltar conosco.

O animal que vinha na nossa direção era a coisa mais linda do mundo. Do tamanho de um microônibus, brilhava como uma montanha de moedas novinhas. Tinha as asas junto ao corpo, com penas de tons de marrom que eu nem sabia que existiam. Porra, é fantástico demais. Mesmo Mauro e Denise estavam muito espantados pra falar.

— Denise, Xavier, esse é Leviatã. Levi, esses dois vão com a gente, e esse é Mauro, meu filho mais novo.

— Luca, você é oficialmente a pessoa mais legal que eu conheço. Você tem um dragão?

— Claro que não, Xavier, não sseja estúpido. Ninguém pode ter um dragão. Levi é meu amigo, e me dá uma carona quando quer.

Leviatã decidiu que gostava de Mauro, e estava empurrando o lobo com a cabeça, fazendo um barulho engraçado. Caramba, um dragão. Luca monta um dragão de bronze. Tô doido pra conhecer esse lugar.

Já Denise, mesmo que tentasse parecer feliz com a partida, não saia de perto de mim, coisa que só fazia quando estava muito triste. Não tinha como não saber o motivo, mas o pior é que o próprio Mauro não parecia mal. O tempo todo que carregávamos a carroça, o mago mantinha um sorriso satisfeito. Teve um momento que até o peguei assoviando. “É uma música antiga, The Call. Gosto dela, mas nunca soube cantar direito.” disse, e tinha algo na voz que parecia uma piada particular, mas que me fez sentir mal pra caralho.

Finalmente acabou, e estávamos prontos pra ir. O plano era nos afastarmos o máximo possível na direção oposta à que estava o Cas, e esperarmos tudo acabar, pra não correr o risco de levar esse sei-lá-quê do inferno conosco. E eu não consegui descobrir o que porra Ângelo queria que eu fizesse. Pelo menos, não um jeito de fazer funcionar. É foda procurar algo importante que você nem sabe o que é.

A despedida foi simples. Mauro recusou nossas desculpas pela milésima vez, e só olhou pra Luca, como não precisasse dizer mais nada. Curvou-se uma vez, transformou-se em lobo e foi embora.

Luca, apoiado em Leviatã, não olhou pra trás. O homem realmente é foda. Denise se segurou, e apesar dos olhos vermelhos, conseguiu não chorar.


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Notas finais do capítulo

Nada na magia vem sem um preço.

Ainda tem um confronto que precisa acontecer, e torço pra que vocês me acompanhem um pouco mais. Até lá, e muito obrigado aos que leram até aqui.

Ah, e sobre The Call? Mauro já cantou essa música uma vez, em Meia Lua.

A seguir: Oitava fileira.



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