Pokémon - Luz do Amanhecer escrita por Benihime


Capítulo 12
Eevee




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 O tempo voava, e as coisas com Dehlia só pioravam. Calista se sentia como se tivesse treze anos de novo, discutindo com sua mãe até que ambas ficassem exaustas devido à tensão, e então havia trégua até que algo as levasse a começar tudo de novo. Era um ciclo desgastante e sem fim.

Naquele dia, quando levantou, Calista notou que sua mãe ainda estava na cama. O fato a fez deixar escapar um longo suspiro de alívio, sentimento que imediatamente se misturou à culpa. A jovem parou na porta do quarto de Dehlia, hesitante.

— Mãe. — Ela chamou baixinho, insegura. — Mãe, a senhora está bem?

— Estou, Caly. — Foi a resposta. — Não se preocupe, é só uma dor de cabeça. Devo estar melhor em algumas horas.

— Certo. Me chame se precisar de alguma coisa.

— Pode deixar.

A jovem aproveitou para ficar em seu quarto, lendo e adiantando sua parte do projeto para a nova Pokedex do professor Carvalho. Por tudo o que ele sempre fizera por ela, a morena sabia que era o mínimo que lhe devia, e se atirou à tarefa com total concentração. Além do mais, não era um trabalho difícil. Consistia principalmente em ler e selecionar informações de acordo com as instruções que o professor lhe passara.

— Ei, mana. — A voz de Ash atrás de si a fez pular de susto. — Isso pode esperar. Ande logo, é hora do almoço.

Calista se virou, completamente incrédula, o que fez seu irmão dar uma risadinha zombeteira. Uma olhada para o relógio no canto da tela de seu laptop, porém, foi o bastante para ratificar o que Ash dissera.

— Que droga! — A morena exclamou, pulando de pé. — Eu perdi a hora! Era a minha vez de cozinhar. Me desculpe, mano.

O riso zombeteiro se tornou uma sonora gargalhada. Ash sempre se divertia com o quanto sua irmã mais velha era distraída.

— Não esquenta, eu e a mamãe cuidamos disso. — O rapaz disse, dando de ombros. — Anda, mana, desça logo.

A morena não discutiu, simplesmente acompanhou seu irmão mais novo até a cozinha.

— Mãe. — Calista repreendeu ao entrar no cômodo, vendo Dehlia ainda ocupada cozinhando algo. — A senhora não disse que estava com dor de cabeça? Devia estar descansando!

— Não se preocupe tanto, filha. — Foi a reposta. — Já estou melhor agora. Além do mais, posso descansar depois que terminar isso.

A jovem performer simplesmente revirou os olhos enquanto sentava-se à mesa, ao lado de Ash, que imediatamente a envolveu em uma conversa sobre técnicas de evasiva em batalhas pokemon. Para surpresa do rapaz, Calista não demonstrava dificuldade alguma no assunto, apesar de sua linha distinta de treinamento.

Após o almoço, mais uma vez Dehlia se envolveu com o que quer que tivesse decidido cozinhar, enquanto sua filha mais velha lavava a louça. Quando terminou, a morena hesitou mais uma vez.

— Posso ajudar com alguma coisa, mãe?

— Não, meu bem. Eu cuido disso. — Dehlia lançou-lhe um sorriso por sobre o ombro, sem se virar. — Mas, se quiser mesmo fazer alguma coisa, pode ir até o Viveiro Xanadu para mim e pegar as novas sementes que encomendei. Acha que sua perna aguenta a caminhada?

— É claro. Só vou trocar de roupa.

Calista subiu para seu quarto, substituindo a calça de malha e o moletom que usava por jeans e camiseta. Quando desceu estava acompanhada por Mirabelle, que desceu as escadas correndo e esperou por ela no último degrau, claramente animada com a ideia de um passeio. Nem mesmo Dehlia conseguiu evitar uma risada com a empolgação da pokemon tipo Fada.

— Já está tudo acertado. — A mulher mais velha explicou. — Você só precisa pegar a encomenda e vir para casa. São sementes de lírios.

— OK. Nós já voltamos.

— Não se apresse. O dia está lindo, aproveitem.

— Certo. — Calista cedeu, desistindo de argumentar com um sorriso. — Até mais, mãe.

Dehlia acenou distraidamente enquanto Calista e Mirabelle saíam, a morena praticamente irradiando satisfação por ser capaz de andar livremente de novo sem precisar usar aquelas muletas que tanto odiava.

A dupla caminhou em silêncio por alguns minutos, até Mirabelle bater com a ponta de uma de suas fitas no ombro de sua treinadora, dando-lhe um tapinha brincalhão.

— O que foi? —  A morena inquiriu, olhando para sua parceira e fazendo o possível para conter um sorriso. — Você quer lutar? Então está valendo!

A Sylveon riu e, sabendo que a perna de Calista ainda lhe limitava severamente os movimentos, simplesmente saltou com agilidade para trás de sua treinadora e começou a correr em círculos ao seu redor. A morena tentou pegá-la, mas Mirabelle era rápida e sempre saltava para fora de alcance, até que Calista conseguiu agarrar uma das fitas de sua pokemon. 

A eeveelução tipo Fada saltou sobre sua treinadora, que abriu os braços na hora certa e a puxou para seu peito em um abraço apertado. As duas caíram juntas na grama que se estendia ao lado da estrada, formando um tapete verde até onde os olhos podiam alcançar.

— Te peguei! — A treinadora kantoniana declarou, ainda rindo. — Agora você vai sofrer, sua fadinha maluca!

Calista usou os joelhos para prender Mirabelle no chão e então começou a fazer-lhe cócegas. A Sylveon gargalhava, retaliando fazendo-lhe cócegas também com suas fitas. Não muito depois as duas estavam esparramadas lado a lado na grama, sem fôlego.

— Caramba. — Calista ofegou. — Estou ficando velha demais para isso.

Mirabelle concordou com um aceno enfático, sua expressão extremamente séria.

— Não devia ter concordado, sabia? — A mulher de cabelos escuros provocou. — Você é má, Mirabelle, muito má.

A pokemon tipo Fada não deu a menor atenção à provocação de sua treinadora, simplesmente se pôs de pé. Suas fitas dançaram pelo ar, uma delas se estendendo bem na frente de Calista. Com um sorriso, a morena permitiu que a fita se enrolasse ao redor de seu pulso, puxando-a de pé com força surpreendente e continuando enrolada ao redor de pulso da irmã de Ash enquanto as duas seguiam com a caminhada.

— Está com sede? — Calista perguntou depois de alguns minutos. — Tem um riacho bem perto daqui. Podemos aproveitar e descansar um pouco.

Mirabelle assentiu e as duas saíram da estrada, com a morena liderando o caminho. Mal deram alguns passos, porém, e a Sylveon disparou na frente, correndo a toda velocidade.

Calista levou alguns segundos para ouvir o que a audição mais sensível de sua companheira já havia detectado: o grito de uma Eevee.

A jovem se apressou em direção ao som, esquecendo completamente de que não podia forçar demais sua perna direita. Em poucos segundos já estava mancando devido à dor.

Quando finalmente a alcançou, Mirabelle estava envolvida em uma batalha. A Sylveon havia se postado na frente de uma pequena Eevee, protegendo a pokemon tipo Normal contra um grupo de Raticate selvagem.

Ela usou suas fitas para distraí-los, fazendo com que o grupo se juntasse para combater aquele estranho objeto que serpenteava pelo ar, para então acabar com todos de uma vez só usando uma poderosa Explosão Lunar. Calista riu alto ao ver aquilo, seu peito se enchendo do mais puro orgulho.

— Isso foi genial, Mira! — A morena exclamou. — Ande, vamos dar o fora daqui antes que essas batatas peludas se recuperem.

Mirabelle hesitou, seus olhos lilases se voltando para a Eevee ainda desacordada. Calista entendeu o gesto e assentiu, se curvando para pegar a pokemon no colo. Sua perna doía como nunca, mas a morena ignorou e não parou de andar até atingirem o riacho. 

O local era cercado por árvores, que lhe proporcionavam uma agradável sombra. Foi sob uma dessas árvores que Calista se sentou, imediatamente acomodando Eevee em seu colo e analisando a gravidade de seus ferimentos. Por sorte eram somente arranhões superficiais.

Mirabelle se deitou ao lado de sua treinadora enquanto a morena tirava uma Poção de sua bolsa e começava a borrifá-la sobre os ferimentos da pokemon desacordada, que imediatamente começaram a se curar.

Uma vez que os cortes e arranhões se fecharam, Calista simplesmente passou a acariciar a Eevee em seu colo com uma das mãos, se recostando contra o tronco da árvore. Mirabelle envolveu seu pulso esquerdo com uma de suas fitas, enquanto outra envolvia a Pokemon Evolução protetoramente.

— Gostou mesmo dessa Eevee, huh? — A irmã de Ash comentou, um tanto surpresa.

A Sylveon simplesmente assentiu, fechando os olhos e se enrodilhando para tirar um cochilo, usando a fita que envolvera o pulso esquerdo de Calista para puxar a mão de sua treinadora até que estivesse apoiada entre suas longas orelhas. A jovem riu e lhe acariciou o topo da cabeça, como sabia que ela queria.

As duas ficaram ali por cerca de uma hora, até a Eevee finalmente acordar, erguendo a cabeça e olhando em volta lentamente, até enfim seus olhos encontrarem os de Calista. A morena lhe dirigiu um sorriso.

— Você está bem, Eevee? — A jovem inquiriu, ao que a raposa marrom assentiu fracamente. — Que bom! Ainda bem que chegamos a tempo. Precisa ter mais cuidado, sabia? Raticate podem não ser grande coisa, mas sempre atacam em bando. É perigoso se meter com eles.

A pokemon soltou um murmúrio baixo, quase apologético, enquanto lambia agradecidamente a palma da mão de Calista, que ainda estava estendida para acariciar-lhe. A mulher riu e pôs a pokemon no chão, ficando de pé com alguma dificuldade.

— Certo, Mira, é melhor nós irmos. Mamãe já deve estar preocupada. E você, pequenina, tome mais cuidado. Está bem?

Calista acariciou Eevee uma última vez em despedida, depois seguiu para a estrada com Mirabelle. Após alguns segundos, a Sylveon a cutucou no ombro.

— O que foi, Mira? Algo errado?

A Sylveon meneou a cabeça sutilmente, apontando para algo atrás delas. Calista apurou a vista, inspecionando os arbustos com atenção, e enfim conseguiu perceber o que sua parceira, mais atenta, já havia visto: estavam sendo seguidas. A morena não conseguiu conter uma risada.

— Eevee. — Ela chamou, se ajoelhando e estendendo uma das mãos em um convite. — Apareça, sua marota, já sabemos que você está aí.

A Eevee, pois era sim uma fêmea, obedeceu, saindo devagar de sob um arbusto na beira da estrada, correndo diretamente para a morena e parando à sua frente, abanando a cauda peluda enquanto fitava a jovem com expectativa.

— Isso tudo quer dizer que você quer vir com a gente? — Calista inquiriu, rindo do aceno enfático que recebeu em resposta. — Bem ... Você tem o meu voto. O que me diz, Mira?

Mirabelle fingiu pensar por um momento, apenas para fazer suspense, então assentiu imperiosamente. A pequena Eevee soltou um gritinho de alegria, cutucando a mão estendida de Calista com o focinho. A morena entendeu o gesto como uma deixa para acariciar a pequena raposa marrom, que agora irradiava satisfação.

A mulher e as duas pokemon seguiram caminho devagar. Não muito depois, as três alcançaram o Viveiro Xanadu, uma estufa enorme quase fora da cidade de Pallet.

Era uma caminhada familiar lá dentro, pelo caminho de pedras que Calista percorrera tantas vezes durante sua adolescência. Um pequeno sorriso curvou seus lábios enquanto a morena se perdia nas lembranças.

A porta de vidro que levava a um prédio administrativo atrás da estufa se abriu de repente e uma mulher entrou. Ela ficou parada por um momento, seus olhos castanhos arregalados de surpresa, então seu rosto relaxou em um sorriso de puro deleite.

— Calista! — A jovem gritou, deliciada. — Caly! Você voltou!

A irmã de Ash abriu os braços e a jovem correu em sua direção. Seus cabelos, tão negros que chegavam a parecer roxos naquela luminosidade, se soltando da trança frouxa em que ela os prendera e flutuando às suas costas como uma bandeira. Era uma visão ainda mais querida e mais familiar do que a estufa.

Calista quase caiu com o impacto quando a outra mulher a abraçou, rindo alto de puro prazer. Florinda ainda tinha cheiro de terra e jasmim, como se o tempo não tivesse passado.

— Oi, Flora. — A morena disse carinhosamente.

— Não acredito que você está de volta! — Florinda a soltou e deu um passo para trás, seus olhos castanhos brilhando enquanto olhavam para Calista como se quisessem gravar cada detalhe. — Você está tão linda!

— Obrigada. Você também não está nada mal.

— Muito gentil da sua parte. — Florinda disse, estreitando os olhos jocosamente. — Então, veio para ver as novas flores?

— Adivinhou. — A morena respondeu, emocionada que a florista ainda se lembrasse. — Eu não pude resistir.

— Imaginei que sim. — Florinda riu, pegando uma das mãos de Calista. — Você não mudou nada, mesmo. Venha, eu lhe mostro.

As duas se conheciam há muitos anos, desde que mãe e filha se mudaram para Pallet e Dehlia a levara até aquela floricultura pela primeira vez. Florinda tinha paixão por flores e, ao ver que Calista compartilhava aquele interesse, superou sua timidez o bastante para perguntar-lhe qual era sua flor favorita. Ambas se tornaram boas amigas desde então, e os momentos que passara com Florinda naquela estufa haviam sido alguns dos melhores de sua juventude.

A florista a guiou pela estufa como nos velhos tempos, com Mirabelle e Eevee brincando de pega-pega entre as plantas. Enfim alcançaram um arbusto, o qual estava cheio de peônias brancas em plena floração. Calista sorriu, sentindo uma onda de nostalgia.

Anos atrás, quando Florinda lhe perguntara sobre sua flor preferida, a morena confessara serem peônias. A outra garota então a guiara até aquele arbusto, e Calista ainda se lembrava de todas as vezes em que o admirara ao longo dos anos.

Era um arbusto antigo, com 1,50 de altura e um tronco largo, e as peônias penduradas nos galhos eram de um branco puro como a neve, as maiores que Calista vira em toda a sua vida. Jamais encontrara flores semelhantes em qualquer outro lugar e não conseguiu resistir a dar um passo à frente para admira-las mais de perto. Continuavam tão magníficas quanto se lembrava.

A jovem florista colheu uma peônia e prendeu a flor atrás da orelha de Calista, que sentiu-se corar com aquele gesto, tanto de prazer quanto por um vago constrangimento.

— Florinda, eu ...

— Simplesmente aceite. Um presente de uma velha amiga. — A mulher disse, abrindo novamente aquele sorriso meigo que Calista sempre adorara. — Bem vinda de volta, Caly.

— Obrigada, Flora.

Florinda pareceu satisfeita, mais uma vez tomando a mão livre da morena.

— Venha, vamos pegar a encomenda da sua mãe. Está lá nos fundos. —  Disse. — E ... Agora que você voltou, venha me visitar de vez em quando. Senti sua falta por aqui.

— Não se preocupe. — Calista riu, estendendo uma das mãos para acariciar o cabelo escuro da amiga como fazia quando eram crianças. — Se bem conheço minha mãe, vamos nos ver bastante.

— Estou contando com isso.

As duas atingiram a parte mais distante da estufa, onde sementes encomendadas ficavam armazenadas em uma prateleira de ferro que subia pela parede vidro, imitando o formato de um pé de rosa trepadeira. Florinda lhe entregou a encomenda de Dehlia e se despediu da amiga com um beijo no rosto. Enquanto Calista deixava a estufa, seu celular tocou.

Vendo uma árvore próxima, a morena se dirigiu até lá e se empoleirou em um galho baixo, que mergulhava em direção ao chão e voltava a curvar-se para cima, formando uma forquilha em forma de U.

— E aí, Slowpoke!

A morena deu uma risadinha, sem conseguir se conter tanto pelo tom arrogante quanto pela provocação de Gary.

— E aí, Gary-Ados. Finalmente você se lembrou de mim, huh? Pensei que tudo aquilo no centro pokemon tivesse sido só conversa fiada sua.

— Muito engraçado. — Ele zombou. — E aí, como vão as coisas?

Calista respondeu apenas com um suspiro profundo, sem saber direito como colocar em palavras toda a tensão e o esgotamento emocional das últimas semanas.

— Tão ruim assim? — Gary soou surpreso. — Caramba, Caly! Pensei que ela tivesse mudado um pouco. 

— Pois é, eu também.

— Só tente ficar calma, 'tá bem? O vovô não vai deixar a tia Dehlia passar dos limites. — O rapaz disse. — E ... Bom ... As coisas tem que melhorar alguma hora, não é?

— Assim espero. — A morena suspirou novamente. — E então, como está indo sua pesquisa?

— Melhor do que eu esperava. — Gary respondeu, se animando imediatamente com a pergunta. — Caly, você tem que conhecer essa região! Alola é incrível, você não iria acreditar em metade dos pokemon que existem por aqui!

— Que bom que você está gostando.

— É incrível. — O jovem repetiu, seu tom de voz agora mais intenso. — Mas tem uma coisa faltando aqui.

Os lábios de Calista se curvaram em um sorriso novamente, enquanto ela se recostava contra o tronco da árvore atrás de si.

— É mesmo? — Seu tom foi brincalhão — E o que é, posso saber?

— Você.

— Ora, vamos! — A morena riu. — Pode parar com essa bajulação, não vai te levar a lugar nenhum comigo.

— Estou falando sério. — O jovem pesquisador assegurou. — Ah, e enviei um pokemon especial para você. Está com o vovô.

— Sério? Está bem, vou passar por lá para conferir. E ... Gary?

— O que foi?

— Sinto sua falta também, seu bobão.

— Que bom! Eu estava começando a me perguntar se era o único.

— Muito engraçado, Gary Carvalho. — Calista revirou os olhos, achando graça do drama de seu namorado. — Ok, tenho que ir. Te ligo mais tarde.

— E me diga o que achou do seu novo pokemon. Tchau, Caly-Nite.

— Não me chame assim, idiota. — Ela rebateu. — Nos falamos depois.

Depois que desligou, Calista ficou ali por um momento, completamente imóvel. Só quando Mirabelle a cutucou foi que voltou a si. 

— Está bem, está bem. Já vamos, sua impaciente. — A morena se curvou, abrindo um sorriso travesso para Eevee enquanto tirava da bolsa uma pokebola vazia. — Mas primeiro ... Venha cá, Eevee. Hora de se tornar parte do time oficialmente.

Eevee deu um gritinho de alegria enquanto pulava no colo de sua nova treinadora, estendendo uma pata para tocar a pokebola. O dispositivo se abriu e a envolveu com uma luz vermelha, em seguida a pokemon desapareceu. Calista a tirou da pokebola poucos segundos depois. A pequena raposa abanava a cauda, satisfeita, e ficou sobre as patas traseiras para poder lamber a bochecha de Calista, o que a fez rir.

— Certo, meninas. — A jovem declarou. — Vamos para casa.

Mais fácil falar do que fazer. Quando chegou em casa, Calista já havia se arrependido de sequer ter considerado sair.

— Droga! — A morena resmungou baixinho, se esforçando ao máximo para não mancar. — É sério, meninas. Nunca mais. Chega de caminhadas para mim, por um bom tempo.

Mirabelle e Eevee, a quem no caminho a jovem kantoniana havia apelidado de Cinnamon assentiram, também cansadas. Antes que Calista sequer alcançasse a porta da frente de sua casa, ouviu uma voz feminina gritar seu nome. Ao se virar, viu Daisy Carvalho correndo em sua direção.

— Caly! — A neta do professor Carvalho gritou, abrindo os braços. —Finalmente tenho uma chance de te ver! Senti tanto sua falta!

— Oi, Day. — Calista riu ao aceitar o abraço da outra mulher. — Desculpe não ter te visitado antes. A mamãe esteve ... Bom, você a conhece. Ela tem me mantido ocupada.

Os olhos castanhos da jovem se desviaram para o chão enquanto ela se afastava um pequeno passo, seu rosto assumindo uma expressão de simpatia melancólica.

— É, eu me lembro. Sinto muito por isso, Caly. Sei o quanto sempre foi difícil para você. — E então seus lábios se curvaram em um sorriso malicioso, numa tentativa de melhorar o humor de sua amiga. — Mas mudando de assunto ... Você e Gary, huh? Ele me contou a novidade.

— Nem. Comece. — Calista grunhiu. — Ash já me importunou o bastante com isso.

Daisy deu uma risadinha, mas logo ficou séria novamente.

— E ela ... — Sua voz saiu baixa, hesitante. — Ela sabe?

— O que?! — A voz da morena saiu algumas oitavas mais alta, enquanto seus olhos se arregalavam e se enchiam de pânico. — É claro que não! E você não vai contar. Ouviu bem? Me prometa, Day. Prometa que não vai dizer nada a ela!

— Claro que não. — A jovem garantiu. — Você é minha melhor amiga, Caly. Pode confiar, vou manter segredo.

— Obrigada, Day. — Calista esboçou um sorriso, tanto um agradecimento quanto um pedido de desculpas. — E ... Me desculpe por ter surtado.

— Está tudo bem. Eu me lembro o que aconteceu quando você resolveu trazer seu primeiro namorado para casa.

A morena riu. Havia sido uma das piores experiências de sua juventude, mas os anos amenizaram a dor. Agora era capaz de rir da vergonha que sentira.

— Pois é. — A irmã de Ash concordou. — Pode até ser estranho, mas estou morrendo de medo. Se ela surtou daquele jeito com um estranho, imagine o que vai fazer quando descobrir sobre Gary e eu.

— Não quero nem pensar nisso.

A neta do professor Carvalho pegou sua amiga pela mão, guiando-a na direção do laboratório enquanto conversavam. Ao chegarem, a irmã mais velha de Gary seguiu direto para uma porta nos fundos, que dava para os campos atrás do prédio.

— O vovô está lá fora cuidando de alguns pokemon. — Daisy anunciou. — Ele pediu que fôssemos encontra-lo quando você chegasse.

— Como ele sabia que eu vinha? Não combinamos nada.

— Meu irmão ligou para ele. Parece que pediu um favor especial ou algo do tipo.

— Ah, sim. Gary me disse algo sobre um novo pokemon. Estou curiosa para saber o que aquele garoto aprontou dessa vez.

As duas saíram para o campo aberto atrás do laboratório. Calista parou e soltou um assovio agudo, um som alto que certamente poderia ser ouvido a pelo menos um quilômetro de distância. Menos de um minuto se passou antes que uma figura aparecesse, correndo a toda velocidade.

Era enorme e de aparência assustadora, e o pokemon saltou sobre Calista com um latido alto, derrubando-a na grama. Daisy soltou um gritinho de susto ao ver sua amiga cair, mas logo se tranquilizou ao notar que ela estava rindo.

— Pare com isso, idiota! — A morena ria, braços cruzados à sua frente para proteger o rosto. — Não, nada de lamber! Não me lamba, eu já disse! Não, não, pare! Já chega, seu bobão!

Nem mesmo Daisy conseguiu conter uma risada ao ver a cauda com ponta de seta daquele pokemon abanar de felicidade. Quando o ataque de lambidas finalmente parou, Calista sentou-se e encarou o cão, que a encarou de volta com a língua pendendo da boca aberta em um sorriso canino.

— Você é um tipo Sombrio, lembra? — A jovem provocou, empurrando de leve o ombro do cão tipo Fogo. — Devia ser mais durão. Caramba, Feral, você parece um filhotinho!

Feral, o Houndoom, se limitou a soltar um latido de contentamento e lamber a bochecha de sua treinadora, que o empurrou mais uma vez. Ele retaliou se aproximando novamente e esfregando o focinho contra o rosto dela, dando-lhe uma lambida que foi do maxilar esquerdo até a linha do couro cabeludo.

— Eca! — A irmã de Ash exclamou. — Precisava mesmo fazer isso, seu bobão? Foi muito nojento.

Em resposta, o Houndoom latiu.

— Okay, certo, já entendi. — Calista cedeu, envolvendo o pescoço largo do cão com ambos os braços. Feral apoiou as patas nos ombros dela, retribuindo o abraço, a cauda abanando de felicidade o tempo todo. — Também senti falta de você, seu filhotinho molenga.

Antes que Calista pudesse se pôr de pé, soltou um gritinho de susto ao sentir algo pousar inesperadamente em sua cabeça. Um momento depois, olhos negros familiares a encaravam. A morena grunhiu em frustração.

— Demetria. — Declarou, tentando soar severa e sendo delatada por um sorriso. — Eu devia ter adivinhado. Nunca vai parar de aterrissar na minha cabeça, sua chatinha?

A Vivillon agora esvoaçava à sua frente, a centímetros de seu rosto, dando risadinhas e fazendo que não com a cabeça.

Daisy admirou, maravilhada, a pokemon borboleta. Não era cor de rosa como as Vivillon mostradas na televisão e no material de seu avô. Ao invés disso tinha asas de um profundo azul escuro, como o céu do anoitecer, com pontos brancos, e a parte inferior também branca.

— Uau! — A jovem criadora pokemon exclamou, admirada. — Ela é magnífica!

— Com certeza. — Calista declarou, carinhosamente correndo um dedo pela borda de uma das asas da enorme borboleta. — Uma pena que o antigo treinador dela não tenha pensado como você.

Os olhos castanhos da neta do professor Carvalho se arregalaram em choque e horror com a implicação das palavras de sua amiga. 

— Não me diga que ela foi ...

— Abandonada. — A morena confirmou. — Na floresta de Santalune. Sorte que um amigo meu estava conosco, e tratou dos ferimentos dela. Caso contrário, não sei de Demetria teria sobrevivido.

As duas continuaram a caminhar enquanto Calista contava a história de como conhecera Demetria: escondida em um tronco de árvore na floresta de Santalune, tentando fugir de um bando de Fletchling. Mirabelle lidara com as aves usando Voz Ecoante, e Calista agradecera aos céus por não estar sozinha naquela ocasião, pois não teria conseguido tratar por conta própria dos ferimentos graves causados pelos movimentos tipo Fogo e Voador.

O professor Carvalho não estava longe, ocupado cuidando de alguns Bellsprout. Ele notou a aproximação das duas jovens e acenou para cumprimentá-las.

— Ora, ora, Caly. — O pesquisador pokemon comentou. — Novo amigo?

— Amiga. — A morena corrigiu. — Esta é a Cinnamon. Ela se juntou a nós no caminho para cá.

— Ela é tão pequenininha! — Daisy exclamou, curvando-se para acariciar a Eevee, que pareceu deleitada com a atenção. — Mesmo para uma Eevee. É tão fofinha!

— Pensei o mesmo. — Calista admitiu. — Mas não importa o tamanho. Pelo menos Cinnamon é mais fofa do que a Mirabelle. Isso já é alguma coisa.

A irmã de Ash recebeu uma cabeçada antes mesmo de terminar de falar, só se mantendo de pé graças aos reflexos rápidos de Feral, que usou os ombros musculosos para ajudá-la a recuperar o equilíbrio. Isso fez com que Calista soltasse uma sonora gargalhada.

— Foi uma piada, Mira. Só uma piada. Credo!

— Essa sua Sylveon ainda tem um gênio bem forte. — O professor comentou, achando graça. — Sem sorte em treiná-la?

— Mira é bem treinada, professor. — Calista respondeu. — O único problema é que ela tem a cabeça mais dura do que a couraça de um Steelix.

A Sylveon, que sentara aos pés de Calista, olhou para cima e mostrou a língua para sua treinadora, que revirou os olhos.

— Caramba, Mira. — A morena suspirou dramaticamente, exagerando o máximo possível no ato. — Quanta maturidade.

Mirabelle grunhiu, ultrajada. Calista apenas riu e lhe mostrou a língua, exatamente como a pokemon fizera momentos antes.

— Posso ver porquê não você obteve sucesso, Caly. — Daisy riu. — Vocês duas são iguaizinhas.

— Cabeças duras? É, acho que somos mesmo. — A morena admitiu, rindo de si mesma. — Professor, o senhor precisa de ajuda?

— Se estiver disposta, tem alguns Rhyhorn desordeiros que estão causando problemas.

— Que tipo de problemas?

— Brigas, principalmente. — O professor explicou. — De uns tempos para cá, o rebanho ficou violento. Lutam entre si e afugentam qualquer um que se aproxime.

A irmã de Ash sorriu, seus olhos brilhando ante o novo desafio. Sempre adorara ajudar o professor Carvalho a cuidar dos pokemon, especialmente os mais desordeiros. Quanto pior o pokemon se comportasse, mais divertido era dar um jeito nele.

Calista repassou mentalmente o que sabia sobre os Rhyhorn. Eram grandes e fortes, normalmente bem lentos e de temperamento dócil. Mas, quando irritados, sua teimosia podia causar grandes problemas, especialmente quando competiam entre si.

— Pode deixar com a gente! — A morena exclamou. — Mira, Demetria, Feral, Cinnamon, venham comigo.

Os quatro pokemon assentiram, com Mirabelle liderando o grupo. Não precisaram que o professor lhe dissesse onde estavam os Rhyhorn: na parte mais distante do campo, onde a grama dava lugar a um solo mais seco e rochoso. O começo das rochas era demarcado por um muro baixo de concreto.

— Fique aqui, Cinnamon. — Calista ordenou. — Se algum Rhyhorn passar, cave e o assuste. Mande-o de volta para lá. Entendeu?

A pequena Eevee assentiu, sentando-se ao lado do muro e mantendo-se em guarda. A irmã de Ash sorriu antes de finalmente pisar no terreno rochoso acompanhada por Mirabelle, Demetria e Feral. O quarteto parou por um instante, analisando a situação.

O grupo de Rhyhorns não era grande, e dois deles pareciam estar no centro, brigando entre si com golpes ferozes de seus chifres. O restante pateava o chão e assistia, numa tensão palpável.

— Mira, use Voz Ecoante. Vamos chamar a atenção deles.

A Sylveon obedeceu. O grito gerado por sua Voz Ecoante foi tão potente que fez algumas pedras rolarem dos pontos mais altos do terreno. Os Rhyhorn voltaram sua atenção para ela, pateando o chão com ainda mais energia.

— Se preparem. — Calista disse. — Quando eles investirem, corram em direções diferentes. Vamos confundi-los.

Assim que os Rhyhorn começaram a correr na direção do grupo, a jovem e seus três pokemon disparam em direções diferentes, forçando a manada a se dividir. Calista, devido à sua perna, sabia que não poderia manter aquilo. Precisava de um ponto de vantagem.

— Demetria, use Psíquico. Vamos subir naquela rocha.

A Vivillon, que voava logo acima de sua treinadora, assentiu. A rocha apontada por Calista era grande o bastante para uma pessoa, com um topo ligeiramente plano que facilitaria seu uso como ponto de observação.

Uma vez erguida até lá, Calista se inclinou para ver os Rhyhorn que as perseguiam momentos antes passarem correndo direto. Não eram muito inteligentes, aqueles pokemon.

— Temos que descobrir qual é o líder. — A irmã de Ash disse, quase para si mesma. — Se o derrotarmos, o resto da manada vai se submeter.

Ela observou Mirabelle, que usava suas fitas para dar saltos fenomenais e mantinha os Rhyhorn à distância com seu ataque Estrela Cadente. Feral fazia quase o mesmo, valendo-se de sua velocidade e usando Redemoinho de Fogo para assustar os pokemon tipo Terrestre.

— Olhe lá! — Calista exclamou. — Aquele, com a ponta do chifre quebrada. Sempre que ele muda de direção, os outros o seguem. Aposto que aquele é o líder. Vamos, Demetria!

A morena saltou, aterrissando sobre sua perna boa, ordenando a Demetria que usasse Zumbido de Inseto para atrair a atenção da manada e reunir os Rhyhorn novamente. Mirabelle e Feral também retornaram, postando-se um de cada lado de Calista.

— Mirem no Rhyhorn com o chifre quebrado. — A morena instruiu. — Agora, Demetria, use Furacão. Feral, Lança Chamas. Mira, Explosão Lunar assim que ele voltar a atacar!

A combinação do ataque Furacão de Demetria com o Lança Chamas de Feral criou um incrível vórtex de fogo que atingiu o Rhyhorn líder, lançando-o vários metros para trás. O Pokemon Espigão, porém, se pôs de pé e investiu a plena carga para usar Ataque de Chifre.

Foi quando Mirabelle encerrou a luta, atingindo-o com uma Explosão Lunar que o derrubou novamente. Dessa vez, o Rhyhorn não levantou. Vendo seu líder derrotado, o restante da matilha desistiu da luta e virou as costas ao grupo.

— Isso! — Calista comemorou. — Conseguimos!

— Uau! — Daisy, que estivera assistindo tudo apoiada no muro, exclamou, correndo na direção da morena. — Isso foi incrível, Caly. Como sabia o que fazer? Esses pokemon às vezes dão trabalho até ao vovô!

— Ela aprende rápido. — O professor declarou, aproximando-se logo atrás de sua neta. — Ótimo trabalho, Caly. Muito impressionante mesmo.

— É claro. — Por mais que tentasse, Calista não conseguiu esconder o orgulho em seu sorriso. — Eu aprendi com o melhor, professor.

Antes que mais alguma coisa pudesse ser dita, alguém se aproximou por trás de Calista e cobriu-lhe os olhos com as mãos.

— Belo arrebanhamento de Rhyhorn. — Alguém disse. — Agora adivinhe quem é.

Os lábios da jovem se curvaram em um sorriso ao ouvir aquele sussurro. Reconheceria aquela voz em qualquer lugar do mundo, sob qualquer circunstância.

— Um grandessíssimo babaca. — Ela declarou. — Também conhecido como Ash Ketchum.

— Hey! — Ash protestou enquanto a soltava e sua irmã mais velha se virava para olhá-lo de frente. — O único babaca por aqui é o seu namorado, mana.

— O Gary não é meu namorado. E ele não é um babaca. Deixe de ser infantil, seu moleque! Aliás, o que diabos você está fazendo aqui? E quando foi que voltou para casa?

Ash caiu na gargalhada com a óbvia surpresa de sua irmã, quase se dobrando sobre si mesmo de tanto rir.

— Caly ... — Daisy também dava risadinhas, obviamente achando graça na situação. — Você não sabe? Sério?

— Hoje é dia 21 de Maio. — O professor Carvalho declarou, nem mesmo ele conseguindo conter o riso. — Não acredito que você esqueceu mesmo.

A testa de Calista se franziu enquanto a jovem pensava, tentando lembrar, mas nada lhe ocorria.

— Ah ... Meu ... Deus! — Ela arfou, ao finalmente compreender. — Hoje é ... ?

— Ah, com certeza é. — Ash confirmou, rindo de novo. — A mamãe vem vindo. Melhor eu deixar ela dizer primeiro.

De fato, Dehlia não estava muito longe. Ela caminhava mais devagar, ainda sentindo dor devido ao ferimento causado pela Bola das Sombras de Gourgeist, e trazia uma grande cesta de piquenique nas mãos.

— Calista! — A mulher de cabelos castanhos tinha um largo sorriso no rosto ao se aproximar do grupo. — Feliz aniversário, minha filha!

— Feliz aniversário, mana. — Ash ecoou. — Nossa, vinte e quatro anos. Tão velha!

— Calado, Ash-Karp.

— Oh meu deus! — Daisy riu. — Você ainda lembra disso?

— Claro. — Calista afirmou, lhe dirigindo uma piscadela bem humorada. — Daisy-Plume.

— Sem chance. Você não tem vinte e quatro anos! — A jovem riu ainda mais. — Sua criançona!

A performer kantoniana simplesmente riu daquela declaração enquanto o grupo seguia para o ponto rochoso perto do lago. Era uma tradição de sua infância: todo ano, seu aniversário era comemorado primeiro com um piquenique às margens do lago do professor Carvalho.

A morena diminuiu o passo sem perceber, ficando para trás, tomada pela memória da última vez em que havia celebrado seu aniversário daquela forma. Seus quinze anos.

— Caly, não. — Ash diz, segurando a barra de minha camiseta numa tentativa de me conter. — Calma, mana. Por favor. Não faz isso.

— Não! — Eu grito, sentindo minhas bochechas esquentarem devido à raiva. Dessa vez nem mesmo Ash consegue me acalmar. — É isso que eu quero, mãe, e você não tem o direito de me impedir!

— É claro que tenho. — Ela rebate friamente. — Sou sua mãe.

— E isso significa que você controla minha vida?

Ela cruza os braços. Se olhares matassem, eu cairia dura agora mesmo pelo jeito como ela está me encarando.

— Significa que sei o que é melhor para você, mocinha.

— Não, você só está pensando em si mesma. Sua egoísta ...

— Já chega! — O professor Carvalho me interrompe antes que eu vá adiante com o xingamento. — Vocês duas se acalmem. Dehlia, Calista tem razão. Você não pode controlá-la. Ela não é mais criança.

— Você sabe por que preciso fazer isso, Sam. — Minha mãe protesta, sua voz agora em um tom de quase súplica, um pedido que não consigo compreender. — Você, dentre todas as pessoas ...

— Já chega. — Ele a interrompe, num tom calmo e firme que não deixa espaço para discussões. — Antes que alguém diga algo de que possa se arrepender.

— Tem razão. — Ela cede com um suspiro pesado, de pura frustração. — Caly, apenas desista dessa ideia e vamos para casa.

— Não. — Me mantenho firme, encarando minha mãe diretamente nos olhos e me recusando a ceder. Não dessa vez. Não de novo. — Não vou desistir. E não vou me arrepender de dizer isso: eu. te. odeio! Queria que você tivesse desaparecido no lugar do papai!

Eu me viro e corro para casa, subindo as escadas de dois em dois degraus. Vou direto para meu quarto e fecho a porta. Ninguém me encontrará aqui, não até que seja tarde demais. Não vão pensar em procurar no lugar mais óbvio.

Pego minha velha mochila e começo a enchê-la: roupas, o dinheiro que vim guardando ... Enquanto me preparo, o céu do lado de fora da janela escurece. Quando o sol começa a se pôr ouço a porta da frente abrir, e logo depois os passos de minha mãe ressoando na escada.

Sua batida é suave, assim como a voz dela. É sempre assim depois que nos desentendemos. Ela é sempre doce, sempre tentando compensar. Como se isso fosse mudar alguma coisa.

— Calista. — Ela chama. — Caly, eu sinto muito.

— Vá embora, mãe! — Grito, reunindo toda a raiva de que sou capaz. Não é uma tarefa difícil. Nesse exato momento, eu a odeio. — Será que não pode me deixar em paz, pelo menos uma vez?

— Caly, eu sinto muito. — Ela repete, sua voz tremendo de leve. Posso praticamente ver as lágrimas em seus olhos, sua expressão magoada. — Sinto muito. Querida, por favor. Abra a porta. Por favor.

— Sem. Chance!

Meu grito é seguido por um bicho de pelúcia arremessado contra a porta. O objeto bate contra a madeira com um baque que é muito mais suave do que eu gostaria, mas a força do meu arremesso ainda foi suficiente para que soe bastante alto, uma pancada seca que ressoa juntamente com a raiva que sinto.

— Calista ... — Posso dizer que minha mãe está chorando agora, talvez também um pouco surpresa por eu reagir com tanta violência. Nossas brigas normalmente não passam de algumas acusações antes que eu dê as costas e vá para o mais longe dela possível. — Calista ... Querida, por favor. Sei que está com raiva, mas você não entende. Um dia eu ...

— Não. Ou você me explica tudo agora mesmo, mãe, ou desiste de vez. Eu não vou te perdoar se não tiver uma boa justificativa para tudo isso!

— Acredite, eu explicaria se pudesse. Não faz ideia do quanto quero poder te contar tudo. Mas não posso. Eu te amo, Caly, jamais faria nada disso se não fosse necessário.

A hipocrisia dela me irrita. Quer dizer, eu sei que ela não está mentindo sobre me amar. Tenho certeza disso. Mas quanto ao fato de ser necessário controlar cada passo que dou, me manter presa em casa a maior parte do tempo ... Isso é diferente, e as desculpas dela me enojam.

— Só me deixe em paz, mãe.

Meu tom dessa vez é cansado. Sei que não adianta discutir e brigar dessa forma, por mais furiosa que eu ainda esteja, e a inutilidade disso tudo me faz sentir exausta.

Assim que ouço minha mãe se afastar, desabo na cama. Minhas pernas tremem. Meu corpo inteiro parece feito de chumbo. Enquanto o sol se põe e meu quarto escurece, não consigo encontrar forças para ficar de pé.

Quando finalmente a noite já caiu e estou sentada sozinha na escuridão, ouço a maçaneta da porta girar devagar.

— Caly? — Meu irmão mais novo chama baixinho, quase num sussurro. — Caly, está acordada? Sou eu. Qual é, mana, abra a porta! Por favor.

A voz dele finalmente me faz encontrar forças. Vou até a porta, apoiando uma das mãos na madeira. Não posso abri-la. Sei que não posso. Se eu abrir, não terei forças para fazer o que preciso fazer.

— Eu estou bem, Ash. Não se preocupe, ok?

— Então abra a porta. Por favor, Caly!

— Não posso. Você sabe muito bem que, se eu abrir, mamãe e eu vamos acabar brigando de novo. Vamos esperar as coisas se acalmarem, 'tá bem?

— Mas ... Mas ...

— Está tudo bem maninho. — Eu asseguro, esperando que ele não perceba minha mentira deslavada. — Vá jantar. Diga pra mamãe que estou dormindo. Amanhã de manhã tudo isso vai ter passado. Eu prometo.

— Promete mesmo?

— Mesmo. — Droga, espero que ele não consiga perceber o quanto minha voz está tremendo. — Prometo. Eu te amo mais do que tudo, Ash. Você sabe disso, não sabe?

— Eu sei. Também te amo. Boa noite, Caly.

Ouço os passos dele se afastarem. Apoio minhas costas contra a porta e enterro o rosto entre meus joelhos para que ninguém me ouça, então choro até sentir que meus olhos vão derreter.

Quando tudo fica em silêncio e o relógio há muito já bateu meia noite, reúno o resto de minhas forças. Naquele momento em que ainda estou imóvel, ouço mamãe chorando em seu quarto. Seus soluços ecoam na quietude e, por um momento, me imobilizam. Ela ainda é minha mãe, afinal.

Me levanto, destranco a porta, abro minha janela e pulo para a árvore lá fora, usando seus galhos para chegar ao chão. Então corro. Mas não consigo ir longe antes de uma força maior do que eu me forçar a olhar para trás uma última vez. Simplesmente não posso evitar.

Meus olhos se grudam na janela ao lado da minha, aquela com cortinas azuis. As lágrimas queimam e deixam minha visão embaçada. Naquele momento, quase largo tudo e volto para dentro. Caramba, como eu quero! Mas sei que não posso.

— Me perdoe, Ash.

Minhas palavras não vão ser ouvidas, mas espero que ele saiba, de algum jeito, o quanto lamento. Limpando as lágrimas, começo a correr novamente.

— Caly!  A voz de Ash soou. — Ei, mana, você não vem?

Calista voltou ao presente com um choque. A memória fora intensa, quase queimada em seu cérebro. Ela ainda podia sentir a dor daquele dia apertando seu peito, como se o tempo não tivesse passado.

— Estou indo, Ash.

A jovem balançou a cabeça para se livrar das memórias, apressando o passo para alcançar os outros.

— Em que planeta você vive?  O rapaz moreno provocou.  Esquecendo até do seu próprio aniversário ... Você é esquisita, sabia?

Calista riu disso, mas Dehlia notou o quão forçado foi aquele sorriso. Uma excelente atuação, mas ela podia ver a dor por trás daqueles olhos verdes. Uma dor pela qual ela própria a fizera passar. Mesmo tendo sido forçada pelas circunstâncias, Dehlia jamais se perdoaria.

Seus olhos se encontraram, verdes e castanhos. Ela sabe, Calista pensou. Por um breve momento, a morena teve certeza de que sua mãe sabia exatamente qual memória a atrasara. E, mais ainda, teve a estranha sensação de que as duas estavam pensando na mesma coisa.

— Calista ...

O sussurro foi tão baixo que ela não teve certeza se realmente o ouviu ou se havia sido simplesmente sua imaginação.

— Hoje não, mãe.  Sua voz foi tão baixa quanto a de Dehlia, enquanto mãe e filha andavam lado a lado.  De novo não.

— Nunca mais.

Ainda que não fossem mais do que um sussurro, aquelas duas palavras ressoaram com a força de uma promessa.


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