Vampires will never hurt you escrita por manasama677


Capítulo 8
Capítulo 8 - Disenchanted




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Helena e os outros se entreolharam, sem saber o que responder. Todos estavam muito feridos pela batalha, alguns por rasgos das próprias armas, outros pelas sucessivas quedas e todos pelo contato direto com as criaturas, que não lhes permitia averiguar a essência de seus próprios ferimentos, pois tudo acontecera muito rápido.

 

— Deixe-nos entrar! - ela reforçou o pedido, batendo com mais desespero ainda.

— Vamos abrir a porta - Bernard ponderou - Se eles morrerem, se somarão à nossa lista de adversários!

 

Sem esperar Karl opinar, ele e Vincent, em uma ação conjunta, tiraram a tramela da porta principal.

 

— Eles só estão mentindo para tentar nos convencer! Sem falar do período de transição! - Karl insistiu, empurrando os rapazes e ficando na frente da porta, que já vibrava com os chutes e socos aplicados nela.

— Eles estão vindo! - Margarida gritou, apavorada, ao perceber duas crianças levantando de cima do corpo dilacerado do dono do circo e detectando a presença deles.

— Que prova nos dão de que não estão contaminados?

— Estão vindo! - Margarida se desesperou ao olhar para trás - Saia! Saia! - pedia, afastando uma criança com a lança.

 

Sean tomou a lança da mão dela e a cravou no peito do pequeno ghoul, que continuou farejando e aprofundando ainda mais a lança em seu tronco infantil. Seus gritos pedindo para entrar se tornaram ainda mais desesperados e agoniantes nesse momento. Helena olhou para aquele ghoul quase mordendo o amigo e viu que teria que tomar uma providência.

 

— Uma flecha, rápido! Uma flecha com água benta! - pediu.

— Rápido! - Margarida gritou, reforçando o pedido da mais nova amiga.

— Como podemos confiar neles? Eles podem nos matar! - disse Angela.

— O máximo que eles podem tentar fazer com esta seta é tentar abrir a porta! - Vincent objetou, exasperado e muito ansioso.

 

Karl foi mais uma vez ignorado pelo filho Bernard, quando o rapaz tomou uma flecha besuntada e a lançou por baixo da porta. Helena a tomou e, imediatamente, para o choque dos circenses ao seu lado, a cravou na mão.

 

— AH! O que foi que deste conta de fazer, mulher? - Sean se desesperou ao ver o sangue borbulhando das mãos da caçadora.

 

A porta da hospedaria era elevada a uns quatro dedos do chão, e ela aproveitou esse generoso espaço para mostrar sua mão ensanguentada.

 

— Se eu estivesse contaminada, minha mão arderia em chamas logo que eu entrasse em contato com água benta! - arguiu.

 

— Vais mesmo permitir que abram a porta e coloquem a todos nós em perigo? - Angela cobrava do pai, que agitava a cabeça sem saber o que pensar diante da rebeldia de seus dois pupilos.

— Entrem! - Bernard puxou Helena pelo braço e chamou os outros dois, que davam o jeito de empurrar, espezinhar e brigar com os filhos do mal que ainda os perseguiam.

— Helena já provou que não tem indícios de contaminação! Mas e os outros dois? - Angela insistiu.

Margarida se escondeu no peito de Sean ao imaginar que teria que fazer o mesmo que Helena para provar sua inocência.

— Se eles estiverem contaminados, estaremos preparados para "recebê-los" - Vincent fez uma pose ameaçadora com seu arco e flecha, para apaziguar o espírito cruel da noiva.

Margarida forçou o corpo para dentro, mas as mãos de Angela pressionavam a porta para mantê-la fechada. Com isto, um ghoul derrubado por Sean agarrou o tornozelo de Margarida e não queria soltar. Naquele momento, ela gritou o máximo que podia, e Helena tentou intervir, sendo agredida pela prima em resposta. Mesmo assim, ela atingiu seu intuito, que era passar a flecha para a mão da amiga. Antes que o ghoul a mordesse, Margarida conseguiu se livrar dele com sucessivos ferimentos a flecha na cabeça. A criatura caiu para trás, com o rosto pegando fogo.

— Depois desse ataque, no mínimo ele morreu - comentou com Sean, ofegante.

Ela logo percebeu que não era bem assim quando a criatura, mesmo pegando fogo, quis agarrá-la. Sean teve que intervir, chutando-a. Sua perna ficou ferida pelo contato com o corpo em combustão do inimigo.

Sean tentava bater nos outros ghouls usando a mesma lança onde tinha uma criança afincada, o que dificultava seus movimentos e o deixava apavorado ao mesmo tempo.

— Rápido! Permitam-nos entrar! - Margarida berrava.

Vendo que um outro ghoul tentava agarrar a barra do vestido de Margarida, Sean pisou repetidamente a cabeça da criatura, exclamando em sílabas:

— Sa-i de ci-ma de-la, se-u fi-lho da mã-e!

Atingido o milagre de libertar a amiga, Sean forçou o corpo contra a porta e conseguiu fazer com ela desse na cara de Angela. Ele até riria daquela figura conservadora e pudica exclamando mil palavrões por segundo se tivesse tempo, o que não tinha.

— Perdão, senhorita! - desculpou-se, enquanto arrastava Margarida pela mão.

Margarida passou para dentro, ao passo que um ghoul agarrou seu tornozelo e entrou com ela. O pânico ficou generalizado nesse momento. Vincent, que já estava de arco e flecha armado, mirou na criatura e a acertou. Foi mais uma luta até que Margarida se livrasse do pequeno demônio, mas conseguiu antes que sua perna queimasse junto, em parte porque usava uma alta bota de couro.

— Mais uma dessas e eu morro do coração – comentou, botando os bofes para fora.

 

Helena insistiu em levantar a mão afetada pela flecha como se quisesse abrir caminho. Deu alguns passos. Quando ameaçou cair, Sean a segurou de um lado e Margarida, na defensiva, se postou do outro.

 

— O fato de a mão dela não se consumir, nada quer dizer; há o período de transição da forma humana para a vampírica! - Angela tomou a mão de Helena, inspecionou e a jogou de volta em direção à dona. Helena gemeu com a dor da movimentação brusca - Quando estiverem completamente dominados, não digam que eu não avisei!

— Nós iremos até a mansão dos Seingalts...e não é nada bom perder tempo verificando se vocês estão ou não contaminados - Karl se manifestou, interrompendo seu prolongado intervalo em silêncio.

— Seus...! - Helena ia se exaltando, mas Margarida tomou a frente.

 

De pulsos juntos como uma prisioneira, ela deu uma sugestão:

— Se não confiam em nós, podem nos amarrar...eu só não quero ter que ir lá para fora novamente! Lá fora está um inferno, nós quase acabamos mortos...!

— Margarida... - Sean murmurou, impressionado com a ideia.

— Isso parece razoável - Bernard foi até um suporte na parede para apanhar um rolo de corda.

— Agora se ocupam em desconfiar de nós? Nós, que combatemos sozinhos os ghouls que enviaram para acabar com todos aqui dentro? Nós, a quem devem as honras de heróis, querem nos amarrar? Como se atrevem? Isto não é o suficiente? - Helena bradou, irritada, avançando e mostrando mostrando a mão desnecessariamente machucada - Torpes! Torpes e ingratos, é o que sois! Eu me envergonho de possuir o vosso sangue! - ela falou, encarando especialmente o tio.

— Calada, vadia! - Karl a esbofeteou - Como esperas tu que tenhamos confiança naquela que trouxe os malditos Martinellis para perto de nós?!

— Seu louco! Ela está ferida! - Sean se intrometeu, ficando à frente de Helena. Margarida e ele tentaram ajudar Helena a se levantar.

— Eles viriam ao vosso encalço de qualquer forma, o senhor sabe disso! Ele é vosso inimigo! Eu mal o conhecia!

— Mentirosa!

 

Um chute atingiu as pernas de Helena. Margarida, revoltada, pulou em cima de Karl Lee Rush dizendo para que ele interrompesse aquela violência gratuita, ao passo que ganhou a sua bofetada para ornamentar o lado da cara.

 

— Covarde! - ela choramingou.

— Não se meta em assunto que não é de tua conta! Se a tens em elevada conta, é porque és outra perdida de semelhante estirpe!

— Não o perdoarei se dirigir estas palavras a Margarida outra vez - desta vez, quem engrossou foi Sean.

 

Margarida, pouco confiante de suas habilidades ante o adversário, o apaziguou com carícias.

 

— Tudo bem, Sean. Esqueça.

— Se quiserem ficar aqui, será com as nossas regras! - Karl, embrutecido como nunca, andava de um lado para o outro. Cada um de seus passos fazia Margarida se encolher - Se eu já fui traído por aquele que foi meu melhor amigo, o que posso dizer de desconhecidos? AMARREM-NOS! - ordenou aos seus comandados.

— Desculpe-me, mas o mestre não consegue controlar seu temor. Sei que ele refletirá sobre tudo isso e tomará uma decisão mais ponderada quando se acalmar - um moço jovem tentou confortar Helena, enquanto unia suas mãos em um nó folgado.

— Obrigada, Charles.

— O que vai ser de nós aqui? - Margarida questionou, ao ver todos se afastando - Vocês irão até o castelo, não é verdade? Vão nos deixar aqui à mercê deles?

 

Karl também respondeu essa:

 

— Certamente os vampiros não atacarão seus próprios companheiros…

 

(...)

 

Sean, Margarida e Helena ficaram amarrados a uma das grossas pilastras do centro do salão. Os Lee Rush deram um jeito de escapar através de uma passagem pelo porão, que dava direto para a rua seguinte. Confrontos anteriores criaram a necessidade dessa passagem secreta.

 

— Eu não tenho um bom pressentimento sobre essa rota de fuga que eles escolheram - comentou Helena.

— Nem eu - Margarida respondeu - Eles deixaram a porta aberta!

— Isso é muito, muito, muito ruim! - Sean se agitava, na tentativa vã de afrouxar a corda que o amarrava.

— Pare! Está me machucando! - Helena reclamou.

— Desculpe!

— Sean, você consegue pegar seu canivete?

— Eu o deixei na gaveta do meu quarto antes disso tudo começar. Não estou com ele agora.

— Ah! Você se torna um inútil nas piores horas!

— Em vez de me censurar, deveria aproveitar que tem as mãos pequenas para tentar escapar dos nós!

— É impossível!, amarraram muito apertado!

— A flecha... - murmurou Helena.

— O quê?

— A ponta da flecha...preciso alcançá-la.

 

Helena tentou levar a perna até o alcance de uma flecha caída no chão, mas era muito pequena para que seu plano obtivesse êxito. Para completar, quando seu pé conseguiu encostar na flecha, foi para afastá-la mais ainda.

 

— Está me sufocando - Margarida se queixou, por estar sendo muito pressionada com a tentativa de Helena de avançar.

— Aguente só mais um pouco – ela pediu.

 

Sean tentava não reclamar de nada, mas sua respiração acelerada mostrava que ele estava sofrendo bastante ao sentir a corda pressionando seu corpo.

 

— Helena! E se tentarmos rolar para o lado, de modo que minha perna tente alcançar a flecha? Eu sou maior, posso conseguir.

— Eu ainda não entendi o que vocês irão tentar fazer com uma flecha - Margarida parecia cética e irritada pelo esforço que, para ela, parecia inútil.

— A ponta farpada da flecha pode ajudar a cortar a corda - Helena explicou, ofegante.

— Ah!

 

O trio se esforçou imensamente para seguir a ideia de Sean, mas foi tudo inútil. Se a coluna fosse circular, haveria uma possibilidade de o plano dar certo, mas sendo ela perfeitamente quadrada, as quinas tornavam inviável a possibilidade de trocar de lugar.

 

— Maldição - Helena praguejou, ao verificar a própria impotência diante daquele problema.

 

Pela visão da porta aberta, Helena percebeu que um dos ghouls cuja flecha tinha incinerado parte de seu rosto continuava se movimentando e se esgueirando para algum espaço próximo à entrada.

 

— Essa não! - a caçadora exclamou.

— O que foi? - Margarida, na coluna de costas para ela, não conseguia saber do que ela falava.

— Há um deles vindo para cá - Helena sussurrou.

— Não! - Sean começou a se debater de desespero, fazendo com que Helena e Margarida ficassem ainda mais apertadas - Eu não quero morrer! Eu não quero morrer!

— Cala-te, tíbia criatura! Deixe de histerias! - Margarida rosnou – Eles ficarão atraídos pela tua voz, não sabes morrer com dignidade?

— Meu cinto afrouxou! Era o que me faltava morrer sem calças!

— O que disseste? Tens contigo um cinto? - Helena perguntou.

— Sim, por quê?

— Consegues aproximar teu quadril de minha mão? Ela está amarrada para trás.

— Já estão próximos.

— Consegues ver minha mão?

— Consigo.

— O que preciso fazer para puxá-lo?

— Levantar a mão um pouco, mas espere aí, por que quer me fazer morrer pelado?

— Cale a boca e observe.

 

Helena puxou o cinturão de Sean devagar, e por sorte o fez pela fivela. Tomou a parte metálica do cinto na mão e pretendia ralar a fivela no chão de pedra até que sua superfície ficasse abrasiva, o que não foi preciso, visto que ela já estava quase inteiramente devorada de ferrugem. A caçadora quase chorou ao constatar isso.

 

— Eu não sei por que ele ainda usa esse lixo de fivela em todo cinto que encontra – Margarida comentou, num riso ainda tenso.

— O feirante que me vendeu garantiu que esta peça quase milenar pertenceu ao Rei Arthur!

— E você acreditou!

— Se ela não estivesse deste modo, nós estaríamos mortos.

— O que quer dizer com isso?

 

Ralando a fivela enferrujada contra a corda por minutos que pareceram séculos, Helena conseguiu soltar um lado da mão.

 

Com a mão solta, não demorou muito para que Helena conseguisse desfazer os nós que prendiam o restante do seu corpo. Nesse tempo, o ghoul avançava ao encontro dos três. A isca caçadora percebeu que não teria tempo de salvar os amigos, teria de lutar para evitar que a criatura se aproximasse deles. Mesmo com apenas uma banda da cabeça, a criança avançou, num estranho movimento de pernas e braços que lembrava o caminhar de uma aranha. Sua boca cheia de dentes negros e queimados se abria repetidamente como se estivesse em busca de algo para morder, e Helena sabia que qualquer pessoa cuja pele triscasse naqueles dentes, estaria sujeita a contaminação. Margarida soltou um esparro, e Sean a advertiu que quanto mais alto ela gritasse, mais poderia chamar a atenção de outros ghouls que ainda estivessem lá fora.

 

Helena pegou uma cadeira e bateu com ela nas costas do ghoul, mas seu estado não permitia que ela fizesse muito esforço, por isso o golpe não saiu com a potência planejada. Cada movimento seu acabava por fazê-la arfar. Ela sentia os membros pesados e a vista escurecendo. De alguma forma, a jovem sabia que era questão de horas para a vida abandonar completamente seu corpo.

 

Sean, com as cordas em torno de si mesmo mais frouxas em comparação ao que estavam antes da saída de Helena, conseguiu obter a movimentação necessária para esfregar a corda que amarrava seus pulsos contra a coluna de pedra rústica e arrebentá-la. Como Margarida era a que estava mais vulnerável por ter sido amarrada com nós mais apertados e várias voltas de corda, ele teve que ajudá-la.

 

— Confie em mim, eu irei tirá-la daqui, mas agora a prioridade é ajudar Helena.

— Vá até a cozinha e pegue uma faca, qualquer objeto pontiagudo ou cortante! - Helena ordenou.

— Mas o monstro pode feri-la!

— Se eu estiver desarmada, sim. Armada, não. Rápido! - ela se esforçou para ordenar mais alto, e com isso acabou se curvando um pouco de dor.

 

Mesmo hesitante, Sean obedeceu, mas não sem antes fazer mais uma observação:

 

— Qual dos corredores eu pego para chegar lá?

— O direito! - Helena gritou, em meio ao esforço de empurrar o ghoul com a cadeira. Ela estava praticamente encurralada.

 

Sean correu até a cozinha e, na ansiedade de tomar para si o máximo de armas que pudesse, virou o faqueiro, e facas se espalharam por todos os lados. Ele apanhou o máximo delas que sua mão permitiu circular e já ia saindo da cozinha quando viu um grosso mastro de metal que Helena e Angela usavam para mexer as brasas do fogão a lenha. Aquilo certamente serviria para alguma coisa. O rapaz, de forma veloz, colocou aquela haste semelhante a uma bengala debaixo da axila e correu do seu jeito desengonçado com a maior velocidade possível até o salão principal. Quando viu Helena recostada à parede com apenas uma perna de cadeira quebrada para se defender, não teve dúvidas: pegou a barra de metal que tinha nas mãos e deu com toda a força na nuca da criança ghoul. Fragmentos de massa encefálica tingiram todo o espaço próximo aos pés de Margarida. Ela, mais uma vez, gritou de pavor.

 

— Precisamos sair daqui - Helena, friamente, como que habituada a ver aquilo todos os dias, mancou até Margarida com uma faca e cortou as cordas que a prendiam.

— Obrigada! ...Obrigada!... - a ex garota do circo repetia, agitando-se ferozmente para se ver livre logo – O que vamos fazer? Escapar pela mesma saída que eles?

— É uma alternativa – disse uma voz masculina vinda da porta.

 

Helena se colocou de guarda. Achava providencial demais que alguém aparecesse são, considerando que ghouls empesteavam o terreno todo.

 

— Quem é? - Sean, que catava as facas do chão, estava de costas para a porta e não reconheceu a voz da pessoa na entrada.

— Sou eu, o Martin - disse o rapaz, que era um dos artistas do circo.

— Ah! Martin! Que bom que está aqui! - Margarida ia correndo para abraçar o amigo, mas Helena a conteve.

— Não, Margarida!

— O que foi?

— Você acha que pode ser...? - Sean estava meio perdido, falando com muita hesitação.

— Se acaso não foste com os demais, que fazes tu aqui agora? - Helena inquiriu, em um tom visivelmente exaltado.

— Eu só vim ver como estavam todos - Martin deu de ombros.

 

Helena o achou estranho. Ele parecia uma cópia malfeita do que seria uma pessoa agindo com naturalidade. Algo nele não convencia.

 

— Helena! Não podemos cair em desespero e nos preocuparmos com algo que não tem razão de ser! Martin é nosso amigo!

— Sim, eu sou amigo deles. Não estou entendendo o estranhamento. Fico feliz que estejam bem.

 

Martin deu um passo para a frente, e sua mão levantada sugeria que ele queria tocar em alguém, aparentemente Margarida. Com a movimentação que ele fez, um pequeno lampejo de luz vindo da janela clareou seu rosto, e nesse momento Sean percebeu que ele tinha um dos globos oculares muito vermelho, com um coágulo de sangue.

 

— Não se aproxime dela! - gritou, puxando Margarida para trás de si, mas ela o desobedeceu e caminhou até Martin, tomando a mão dele.

— Sean, pare com isso! Não podemos desconfiar dos outros como desconfiaram de nós! No meio de tanta gente que nos abandonou, ele é o único que veio ver se estávamos bem!

— O senhor não viu o dono do circo morto no terreno? - Helena se manifestou - Não tem nenhum questionamento a respeito? O senhor não foi incomodado pelos ghouls que ainda não foram eliminados? Queira me perdoar, mas isto não faz sentido.

 

A pergunta petrificou Margarida, que viu nela uma pertinência decisiva. Sean também ficou impressionado com a tenacidade da caçadora, que tomou uma das facas que ele tinha na mão e a arremessou no provável inimigo. Martin a aparou no exato momento em que ela atingiria seu rosto. Mesmo com sua mão segurando a lâmina e sangrando, ele não esboçou reação nenhuma, nem de dor nem de espanto. Nesse momento, Margarida quis se distanciar dele, mas já era tarde demais: ele envolveu a garota pela cintura e deu um sorriso demoníaco.

 

— Uma mulher jovem, foi o que "ele" me pediu.

 

Num segundo, Martin atravessou a vidraça da janela em um pulo, com Margarida nos braços.

 

— Margarida! - Sean a chamou, embalde.

— Seaaaaaan! - ela gritou de volta, enquanto era carregada para longe.

— Eu sabia! - Helena gritou, em um tom frustrado e acusatório, para ninguém em específico.

 

Sem se importar com qualquer coisa que cruzasse com eles no meio do caminho, Helena e Sean saíram correndo atrás de Margarida e seu sequestrador, mas eles já estavam longe demais para serem alcançados.

 

— Margarida! Nós não conseguimos salvá-la... - Sean lamentou, ajoelhando-se na frente do portão da estalagem, aos prantos - Não conseguimos...

— Se o tal de Martin estava dominado pelos vampiros, só pode ter ido a um lugar - disse Helena - O castelo dos Seingalts!

Helena tomou a frente. Preparou uma carruagem contrariando todas as determinações de Sean, de que descansasse.

— Descansar em uma estalagem sujeita a visita de ghouls não parece uma estratégia muito inteligente para sair dessa viva. Além disso, se matarmos os mestres deles, também acabaremos com eles.

Por incrível que pareça, não tiveram contratempos maiores com ghouls. Aparentemente, Martin, quando lá chegou, deu sumiço em todos, ou eles saíram da casa dos Lee Rush para importunar outros vizinhos. Vários deles tinham virado uma poeira chamuscada e cinza, ao entrarem em contato com armas besuntadas em água benta. Mas os que estavam desse jeito não correspondiam à quantidade de ghouls que Helena e Sean se lembram de ter enfrentado.

— Eu assumo as rédeas! - o jovem artista se ofereceu, parecendo bem afobado ao subir no banco de cocheiro.

(...)

— Já estamos próximos - Karl comentou, fazendo sinal para que o restante dos caçadores parasse - Vamos esperar que a noite caia completamente. Enquanto eles estiverem gozando de seu sono, poderão se transmutar em formas que passem despercebidas, ou inacessíveis, a nós.

— Fala da forma de morcego? - Bernard quis saber.

— Também. Vamos esperar que todos estejam reunidos e despertos.

— Isso parece um tanto quanto arriscado. Reunimos vários homens, mas diante deles ainda somos poucos.

— Nesta noite, nossos inimigos não são os Seingalts. São os Martinellis.

— Não temos prova alguma de que ambas as famílias não estejam confabulando juntas, meu pai - Angela ponderou.

— Engana-se, minha menina. Vamos esperar que os Martinellis tragam para nós o máximo de cabeças sanguessugas que puderem. Quando pensarem que tudo está feito, avançaremos e os atacaremos, obtendo nossa desejada vingança e o resultado da caça simultaneamente.

— Então, não precisaremos entrar em conflito direto com eles? - Vincent ficou animado.

— Só em última necessidade. Por ora, vamos deixar que pensem que nos venceram.

(...)

Arthur Seingalt estava de guarda em uma das torres. Sem a mesma visão apurada dos outros, tinha uma luneta nas mãos. Ele estava atento a toda a movimentação e percebeu a família de Helena chegando.

— Estão nas redondezas - falou de si para si - Será que ela os acompanha?

Ele não sabia o que fazer com aquela informação: se avisava os seus de que o inimigo estava nas proximidades antecipando o confronto, ou se esperava que os Lee Rush se achegassem aos limites de sua propriedade tentando caçá-los. Qualquer amostra de deslealdade que ele quisesse dar, no entanto, foi interrompida pela chegada de um de seus irmãos mais velhos:

— O que vês aí, caro irmão?

 

Arthur não teve a chance de responder, seu próprio irmão concluiu:

 

— Excelente. Parece que teremos visitas em breve. Mais visitas - enfatizou esta última parte.

— Eu iria comunicar a posição deles agora mesmo - Arthur gaguejou. Acrescentou, apressado em mudar de assunto: - Será que os Martinellis e os Lee Rush combinaram uma ação conjunta para nos destruir?

— Os Martinellis estão nos procurando pelo castelo todo, chega a ser cômico esses indivíduos achando que podem nos enfrentar.

— Não os subestime, meu irmão. Entrei em confronto com um deles e era como se estivesse enfrentando qualquer um de vós; falo a sério.

— És um brincante! Quer nos comparar a meros homens mortais?

— Ouvi falar de uma coisa, não sei se é verdade.

— E o que seria?

— Existe uma poção à base de sangue…sangue de vampiros mortos.

— Se morremos ao fogo e nos tornamos cinzas, como nos coletam o sangue? Decerto, é mito!

— Permita-me terminar. Uma vez em contato com essa substância, um caçador consegue, por um curto espaço de tempo, usufruir dos mesmos poderes que um membro puro, ou um recém-transformado - Seu irmão riu com sarcasmo - Foi o que ouvi enquanto investigava a família Martinelli - Arthur insistiu, sem se permitir exaltar - Um curandeiro vendeu um frasco a um servo dos Martinellis e deu garantias sobre o funcionamento da substância. Eu, que não conseguia entender o rendimento dos membros dessa família durante nosso combate, agora encontrei um motivo plausível para justificar o que aconteceu.

— Talvez, apenas talvez, tu sejas mais fraco do que um reles humano.

 

Arthur suspirou, enquanto seu irmão ia embora vitorioso com sua tentativa de humilhá-lo. Em vez de comunicar os outros sobre a presença da família daquela isca caçadora que não saía de sua mente, ele ficou muito distraído a pensar nela. Ele ainda não a tinha visto. Será que ele estava enganado e ela não fazia parte daquela família, sendo apenas uma mulher alugada pelos caçadores? Pior: será que ela foi sacrificada em confronto com algum vampiro? Talvez os Martinellis tivessem assassinado parte da família Lee Rush antes de se meterem em seu castelo. As possibilidades eram muitas, e todas o afligiam.

 

(...)

 

Ele, na verdade, não fazia ideia de que espreitava da torre errada. Helena e Sean vinham pelos flancos, num atalho conhecido apenas por ela e Richard. Amarraram a carruagem a uns duzentos metros do castelo numa estreita trilha e se embrenharam pela mata que contornava toda a propriedade. Cada passo era para Helena um suplício, mas ela tentava não demonstrar a seriedade do seu problema, pois assim Sean poderia desistir de procurar Margarida para socorrê-la. Ou abandoná-la ao ver que ela não era mais útil.

 

— Tenho certeza de que era por aqui! - Helena ficou posicionada em frente a um portão cheio de volteios gradeados.

 

Sean tinha se preparado para cair por cima do portão e abri-lo, mas olhou melhor para ele e notou que ele estava aberto.

 

— Está aberto - ele confirmou, mas em franca linguagem queria mesmo dizer "O que eu faço agora?".

 

Helena passou para dentro corajosamente, em contraponto à hesitação do aliado. Sean se desesperou ao ver que a porta fez um imenso ruído quando ele tentou fechá-la novamente.

 

— Deixe-a como está! - sibilou Helena, irritada.

— Alguém está aí? - uma voz perguntou ao longe.

— Margarida! - Sean falou alto, para desespero de Helena, que gesticulou furiosamente pedindo silêncio.

— Alguém está aí? - Margarida insistiu, e sua voz pareceu mais reconhecível. De fato, era ela.

— Pode ser uma cilada - Helena colocou o braço diante de Sean, quando ele quis avançar correndo - Eles imitam as vozes de pessoas conhecidas às vítimas. É com isso que atraem crianças que entram na mata. Uma mãe relatou que seu filho seguiu a voz dela e estava a caminho desde castelo quando ela o apanhou e o levou de volta à metrópole em segurança.

 

Sean tentou absorver a ideia, mas seu corpo queria fazer outra coisa e ele seguiu adiante.

 

— Se eles sabem de nós aqui a ponto de imitar quem conhecemos e amamos, eu não sei. Mas a verdadeira Margarida está aí dentro e irei procurá-la!

 

O rapaz caminhou cerca de quarenta metros para dentro de um corredor iluminado com tochas de ambos os lados quando tropeçou em alguém deitado no chão. Era a pessoa que ele estava procurando. Margarida estava presa com correntes, e parecia meio entorpecida.

 

— Sean, você veio...

— Helena está logo aí atrás.

— Estou com medo...eles me obrigaram a tomar uma coisa com um gosto horroroso...que horas são?

— Já é de noite.

— Nossa, tudo isso? Eu não sei por quanto tempo adormeci, estou com medo de ter sido mordida...há algo no meu pescoço, dói muito...

 

Helena e Sean se entreolharam. Helena aproximou da área a lamparina que tinha nas mãos.

 

— Não consigo identificar se é uma mordida ou um arranhão - ela disse.

— Como eu vou sair daqui? - Margarida começou a chorar.

— Esse não é nosso maior problema - Helena respondeu, tirando de dentro de uma sacola de pano atada à cintura duas pequenas barras de metal - O pior é o que teremos de enfrentar depois, se tu tiveres sido mordida de verdade.

— Se eles me morderam, é melhor vocês não me soltarem...deixem-me aqui e fujam enquanto é tempo!

— Não diga isto! - Sean protestou, tomando das mãos de Helena o instrumento que ela usava para tentar arrebentar os elos da corrente. Ela não tinha força para manuseá-lo.

 

O método consistia em colocar as duas barras de metal juntas dentro do elo da corrente e depois afastá-las, como as lâminas de uma tesoura aberta, causando assim a quebra ou entortamento do metal.

 

— E isto ficará em mim? - Margarida se queixou das grossas algemas das correntes.

— Primeiro levas contigo os dedos; pensa-se depois nos aneis - Helena a respondeu com rudeza.

 

Sean e Margarida se encararam e ele repetiu o procedimento com o outro lado dos pulsos e com as tornozeleiras.

 

— Consegues caminhar?

— Acho que sim.

— Chegaram a esclarecer a razão de sua captura?

— Ah, sim! Eles disseram que, ao cair da noite, o mais novo deles me desposaria!

 

Helena tocou no coração.

 

— Você está bem? - Sean perguntou, confuso.

— O mais novo deles - Margarida demorou a processar o que tinha acabado de dizer - É ele, não é?

 

— Precisamos ir embora - Sean mudou de assunto, sem entender aquele silêncio de Helena e Margarida.

— É estranho eles não estarem aqui.

— De quem você está falando? - Margarida perguntou.

— Da minha família.

— Oh, pelo amor de Deus, como pode chamá-los assim? Eles, que nos largaram naquela estalagem à mercê de todos os monstros que enfrentamos! Não creio!

— Margarida! Tu também choraste pelo teu pai adotivo, aquele pulha dos infernos, que Deus me perdoe...!

— Ah...! Sim...nunca mais o verei...

— E sejas grata por isto! - Sean acrescentou, impiedoso.

Margarida tentou dar uma cotovelada dele, mas sentiu seu pescoço repuxar e estagnou repentinamente.

— Ui! - reclamou.

— O que tens?

— Eu...me parece que estou me transformando! De verdade, sinto a carne de meu pescoço enrijecer, toque!

Sean, apreensivo, colocou a mão sobre o pescoço da amiga e detectou que aquela região estava desenvolvendo uma textura estranha. Era como se a carne de Margarida estivesse endurecendo.

— O que faremos? - ele perguntou mirando Helena.

Ela suspirou e respondeu:

— Os Lee Rush têm o antídoto. Era o que eu dizia: temos que ir atrás deles.

— Não acredito que depois de tudo...que seja. Onde estarão? Foram embora antes de nós. Estarão na estrada a caminho do portão principal?

— Estimo que não. Meu tio costumava prezar por um método de confronto direto, embora eu acredite que tentará atacar de forma mais sutil desta vez, considerando que estão em menor número e não podem mais contar com meus préstimos, já que acreditam que eu estou morta agora.

— E tu dizes esta atrocidade normalmente? - Margarida ficou chocada.

— Por que eu precisaria de cerimônia para dizer uma coisa como esta? Não é o que nos importa; temos de encontrá-los, ou Margarida não passará desta noite.

Sean teve vontade de sacudir Helena para que ela parasse de dizer as coisas assim, sem filtro; mas a caçadora era a única forma de chegar ao antídoto que Margarida precisava, por isso, ele teve de ser conter.

— Vamos voltar para a carruagem - Helena os convidou, assumindo as rédeas - Se foram pelo caminho que imagino, isso explica o porquê de ainda não terem chegado até aqui.

— Mas, e eu? Não quer que eu guie?

— Foi só de raspão - Helena mentiu, sobre o próprio ferimento na barriga - Ela precisa ser segurada de forma que seu corpo não se agite demais. Só um homem pode fazer isso.

— Ah.

(...)

Karl Lee Rush ordenou que seus homens fossem em volta buscar qualquer informação a respeito de carruagens nos arredores. De acordo com ele, se houvesse algum veículo ou acampamento nas proximidades, isso significaria que os Martinellis já teriam adentrado o castelo e um confronto já teria começado. Um de seus informantes voltava com a informação da carruagem utilizada por Helena quando ela não tinha regressado a esta ainda e, por ser um integrante novo do bando, não sabia que ela era de propriedade dos próprios Lee Rushs.

— Chegou o momento – disse ele – Agora é a hora de avançarmos.

 

O bando rumou para a direção do portão central do castelo, num trajeto que durou cerca de um quarto de hora.

Helena e seus dois acompanhantes desceram da carruagem para seguir por um trecho na mata até chegar à mesma trilha que dava para a entrada principal, pois perceberam que uma rota antiga conhecida por Helena não existia mais. Margarida, muito debilitada pelo ferimento que tinha no pescoço, vinha trazida nos braços por Sean, que a carregava no intuito de evitar que ela se esforçasse.

Segundo Helena explicou, diferente do que se pensava, os "vampiros novos" levavam horas entre o ataque e a transformação completa. O mesmo acontecia com os ghouls, só que no caso dos ghouls eles perdiam completamente a consciência e só eram capazes de enunciar palavras sob o comando de um mestre, como aconteceu no caso da criança ghoul que chegou com um recado para Helena. A caçadora foi franca em dizer que seria mais interessante a eles que Margarida tivesse sido de fato mordida por um vampiro do que por um carniçal daqueles que eles enfrentaram mais cedo, porque o antídoto da família Lee Rush era especificamente para combater a contaminação vampírica.

Ainda que ghouls tivessem a mesma fonte de contaminação - os vampiros - sua essência era diversa. Caçadores antigos diziam que ghouls se tornavam seres inconscientes por causa da quantidade de sangue consumida pelo vampiro, mas os Lee Rush acreditavam em uma teoria mais moderna, que dizia que o vampiro, ao morder uma vítima, se tinha a intenção de transformá-la em vampira, injetava através das presas algum tipo de veneno, como um ataque de cobra peçonhenta. Se desejava apenas escravizá-la, contentava-se em morder o alvo ou sugar uma quantidade de sangue insuficiente para matá-la, permitindo que a infecção causada pelo contato com sua presa tomasse conta da vítima. A terceira opção, o sacrifício da vítima atacada, exigia que o vampiro consumisse seu sangue completamente. Esse era o tipo de ataque mais comum dos Seingalts. Como eles iniciaram a batalha enviando inúmeros carniçais para atacar a família de Helena, ela supôs que eles estavam em um número muito reduzido. Como os Lee Rush, era do feitio dos Seingalts lutar pessoalmente, mas os desfalques de ambos os lados exigiam estratégias mais calculadas de confronto.

— Não entendi nada do que você disse - Sean atalhou, quando Helena terminou de falar.

Ela meneou a cabeça, impaciente. Sentiu um peso aquecido por cima do ombro, e imediatamente o tocou para saber do que se tratava. Era o grosso casaco que Sean usava.

— A noite está fria - ele disse, sobre o empréstimo.

Helena agradeceu, mas sua voz mal saía e Sean provavelmente não a escutou. Com muita dor, ela dava pequenos saltos em vez de passos, mas tentava não perder o compasso para não atrapalhar seus mais novos amigos, que ficariam perdidos sem sua ajuda. Ela estava certa de que iria morrer, mas Margarida ainda tinha uma chance.

O caminho foi árduo, mas eles finalmente contornaram a propriedade e acharam o portão principal.

— Será que os Lee Rush já estão batalhando? Quem costuma andar com o antídoto? - Sean quis saber.

Helena empurrou a porta da frente e disse, com ar desolado:

— O castelo parece estar vazio.

— O que disse?

— Não há ninguém - ela falou em um tom mais alto, para atrair a atenção de qualquer pessoa ou monstro que lá dentro estivesse.

Tudo o que conseguiam escutar era o barulho de bichos noturnos: ratos, morcegos, baratas. Vez por outra, um deles voava por sobre suas cabeças ou derrubava algo, mas isso era tudo o que escutavam de mais extraordinário.

 

— Temos que ir embora, não podemos ficar aqui - Helena concluiu - Pode parecer que não tem ninguém, mas esses morcegos à espreita podem ser qualquer um deles.

— O Senhor Santo Deus nos livre e guarde, vamos em boa hora!

Eles já tinham saído da entrada principal e estavam prestes a alcançar o portão externo quando deram de cara com os Lee Rush. Todos se puseram de guarda, quando Sean, num grito desesperado, explicou:

— Nós saímos vivos daquela estalagem onde fomos abandonados para morrer! Margarida foi capturada por um deles e viemos cá recuperá-la! Como puderam fazer uma coisa desta?

— Como isso pode ser possível?! - Karl Lee Rush questionou, chocado.

— Helena, você está bem? - Bernard, aproximando-se dela, beijou sua testa.

— Não, não estou - ela murmurou, e ele baixou os olhos para encarar com estupefação sua roupa molhada de sangue na frente.

— O que fazes aqui? Por que não te refugiaste em alguma parte, descansaste?

— Porque...

— Vamos avançar - Angela o chamou, tentando tomá-lo pelo braço. Bernard se desvencilhou dela. Contrariada, ela deu de ombros e seguiu seu caminho.

— Fique aqui. É o melhor para ti - o primo sugeriu que Helena ficasse sentada na borda de um poço no meio do terreno, antes de chegar ao castelo.

— Antes que o dia amanheça, eu não estarei mais neste mundo; não vou me iludir sobre meu estado, mas Margarida ainda pode sobreviver. Ela demanda cuidados. Tem uma chaga no pescoço - ela disse bem baixinho, temendo que Angela a escutasse - Com quem está o antídoto?

— Com ela - ele se referia à irmã - Temos poucas doses. Não sabemos de quantas vamos precisar.

— Quantas trouxeram?

— Duas.

— Duas???

— Tu sabes que o antídoto é feito a partir de partes do corpo e do sangue do inimigo. Com a destruição em massa dos espécimes, fica mais difícil de encontrar a matéria-prima para sua fabricação. Estes custaram dez vezes mais caro do que da última vez que compramos.

— Ninguém foi mordido ainda, não é certo que irão precisar deles.

— Ainda que não precisem, contestarão sua falta depois.

Helena apertou os olhos e expirou, nervosa. Caminhou até a prima meio que cambaleando, e com Bernard tentando impedi-la.

— Solte-me! - ela gritou, com raiva.

Tomando a prima pelo braço, conseguiu impedir que ela avançasse para dentro do castelo. Angela voltou-se para ela com uma cara pavorosamente zangada. Karl Lee Rush, Vincent e todo o restante do séquito parou para acompanhar aquilo.

— Temos um ferido!

— É da família? - indagou Angela, com a mesma expressão insolente de que Helena se lembrava, só que agora, por alguma razão, ela parecia pior. Mais soberba, mais desafiadora, mais humilhante.

— O antídoto! Bernard falou que ele está contigo. Dê-me.

— Com que autoridade te diriges a mim assim?

— Margarida foi atacada e está precisando de cuidados. Entregue-me um dos antídotos!

— Por favor, se o antídoto está contigo, precisamos dele com urgência! Margarida está... - implorou Sean, mas Angela não o deixou terminar.

— Não é um dos nossos, o problema é de vocês.

— Como podes falar assim? Se Margarida passa por isso, é por culpa de vocês!

— Pelo que eu me lembre, ela que tinha obsessão em se colocar em situações de risco e perder a vida cedo. Agora aprende que o que fazemos não é brincadei...

Antes que ela terminasse, um soco de Helena a atingiu em cheio bem no meio da cara. Não se sabe de onde uma moribunda como ela tirou tanta força, mas o nariz de Angela esvaiu-se em sangue.

 

— Eu não te pedi, eu te ordenei! - Helena bradou, arrancando dela a bolsa com os antídotos. A resistência de Angela em pegar a bolsa de volta a vez levar mais um tabefe.

— Bernard! Vincent! Detenham-na! - ordenou, quando viu que não podia mais com a ferocidade da prima.

— Helena... - Bernard, que estava mais próximo, tentou tocar em Helena para tomar dela os antídotos, mas ela imediatamente gritou.

— SAI!!!!

 

Karl Lee Rush avançou para interceder pela filha, mas todos ficaram pasmos ao ver que Helena apontava uma faca para ele assim que ele ergueu a mão para agredi-la. Sean e ela vieram bem armados.

 

— Eu não tenho mais nada a perder!...Tudo o que posso querer agora é ver qualquer um de vocês mortos!... - anunciou.

 

Ainda vigiando todos os passos de qualquer um que pudesse se aproximar, a jovem, esticando o braço para trás enquanto encarava o tio, ofereceu a bolsa que continha os dois frascos de antídoto, dentre outros itens, aos amigos. Sean retirou objetivamente um único deles. Margarida chorava de medo, medo do próprio estado e medo de uma possível retaliação contra Helena.

 

— Beba, Margarida! Beba, beba! - Sean tirou a rolha de um deles e o entregou à amiga, após confirmar que seu rótulo batia com o item que procurava.

Mesmo temendo os resultados, ela o bebeu. Fez uma expressão de quem tomou algo muito amargo.

— Maldita libertina! - Angela gritou, ao longe - Tu és nossa vergonha!

— Tu és nosso inimigo como qualquer um deles! - Karl disse sombriamente – Se não fosse caso de eu precisar deter os sanguessugas com minhas armas, eu as usaria em ti, ingrata!

— Eu só não torço para que eles o matem porque do teu sucesso depende a segurança de toda a Inglaterra! Monstro! - ela respondeu, e cuspiu no chão para expressar sua ojeriza àquele homem.

— Vamos nos acalmar, ainda precisamos lutar todos juntos - Bernard tentou conciliá-los.

— No que dependesse de vós, nem aqui eu estaria - Helena rebateu, e ele se calou.

— O que farás, então? - Bernard, indignado pela ira e rebeldia da outra, quis saber.

 

Helena meneou a cabeça, deu um sorriso que era pura amargura e disse:

 

— Eu vou segurar o antídoto que resta. Quem o quiser, deverá se dirigir a mim.

 

Enfiando a mão dentro da sacola de pano de Angela, percebeu que lá também havia um revólver de balas de prata. Todos os Lee Rushs se encararam agoniados após essa descoberta.

 

— Isto daqui também fica comigo - disse ela, escondendo aquela arma na sua própria bolsa.

— Tua arma é teu corpo, por acaso te esqueceste disso, prostituta? - Angela perguntou, ofensivamente, enxugando o nariz machucado.

— Use o seu corpo agora, se quiser se defender. O meu não está mais a serviço de tua família!

— Deixe de brincadeiras, menina! A arma é de Angela, tu sempre estiveste de acordo com isto! - Vincent interveio.

— A vida de todos nós depende do que tem dentro desta bolsa! - Bernard completou.

— Ah, parece que estás disposta a experimentar do meu cinto outra vez! - ameaçou Karl.

 

Helena deu um passo para trás, tentando se esquivar dele. Antes que o patriarca dos Lee Rush a alcançasse, Sean a arrastou pela mão e a colocou atrás dele. Ela não resistiu ser puxada tão de repente e caiu, dobrando-se de dor. Sean e Margarida agacharam-se diante dela, perguntando pelo seu estado. Karl aproveitou a distração do rapaz para chutá-lo nas costelas e tirá-lo do caminho. Margarida tentou agarrá-lo pelos braços e empurrá-lo, mas ele segurou seus pulsos, baixou suas mãos e a golpeou no rosto, fazendo-a cair também. Agora ele tinha livre acesso a Helena.

 

A menina tocou no ventre dolorido, talvez para infligir alguma piedade em seu algoz. Em vez disso, ele retirou um punhal de uma espécie de coldre atado à cintura e objetivamente cortou as alças da bolsa que Helena trazia consigo. Como ela resistisse muito, ele cravou o punhal na terra, prendendo parte dos cabelos da sobrinha no chão. Num rápido e instintivo movimento, puxou o busto trançado de seu vestido, relevando sua nudez mínima e pueril. Levantou suas saias, agarrou as coxas da vítima e entornou seu quadril com elas. Puxou para baixo sua calçola, como quem desnuda uma boneca. Desafivelou o cinto e ia baixando as próprias calças quando finalmente se deu conta de que estava diante de outras pessoas. O choque foi generalizado. Ninguém disse uma palavra, até a própria Angela quebrar o silêncio:

 

— O que significa isto, meu pai?

 

Bernard, também desacreditado, colocou as mãos na frente da boca, Margarida recuou o quanto pôde para se distanciar, até alcançar a barra das calças de Sean, que agarrou prontamente; aqueles gestos lhe eram familiares. Cada um, à sua maneira, expressou seu espanto e nojo com aquilo que tinham acabado de presenciar, mas ninguém era capaz de dizer nada.

 

— O que estão olhando? Digam? O que estão olhando??? - bradou Karl, furioso por seu arroubo irresponsável que resultou nesse flagrante coletivo - Eu sou um homem, é isto o que está acontecendo!

 

Os Lee Rush teriam muito o que conversar. Ou não. A urgência da situação demandava que todos saíssem de seu estado catatônico, e um dos novos contratados da família facilitou essa transição de assunto:

 

— Bom, precisamos entrar.

— Vamos, vamos, vamos - os outros engrossaram, convidando Angela, Vincent e Bernard a irem na frente.

 

Karl Lee Rush ainda teve uma última chance de olhar para Helena antes de ir embora. Ela usava os antebraços para cobrir o rosto molhado de medo, dor e vergonha. Margarida, com sangue no canto da boca, achegou-se a ela e colocou a cabeça da amiga em cima do seu colo depois de retirar o punhal que prendia seus cabelos ao chão. Sean, indignado por nada ter podido fazer, arrancava gravetos de mato rebeldes que brotavam em meio à calçada de pedra, murmurando pragas e obscenidades. Helena enxugou as lágrimas e, mesmo contrariando os pedidos da amiga, ficou sentada. Olhou em volta, fazendo um rápido inventário das coisas que ainda lhes restavam. Apanhou duas facas e o punhal do tio.

 

— Vamos embora daqui - Margarida pediu - Vamos levá-la a um médico. Você vai ficar boa de novo, Helena. Vai dar tudo certo, tudo certo.

— Eu não vou a lugar nenhum.

— Do que está falando? Não me diga que ainda pretende lutar ao lado deles?!

— Eu não estou aqui por eles. Estou aqui para vingar Richard. Esta será minha última missão.

— Estás louca, mulher! O que pensas que irás fazer assim?

Antes que pudessem continuar a discussão, os três escutaram barulho de passos se arrastando atrás deles. Sean, num instinto protetor, cobriu as duas garotas usando o próprio corpo. Helena reconheceu a figura alta e parruda de seu primo Bernard, que havia voltado para ter com eles.

 

— Helena...eu sinto muito. Eu não sabia, eu juro que eu não sabia!

— Para quem você está tentando mentir? Para mim ou para você mesmo?

 

Bernard tentou dizer algo, mas Helena não o deixou completar:

 

— Em maior ou menor grau, todos vocês pelo menos suspeitavam do que acontecia! Ou vais tu agora me dizer que não sabias o que teu pai planejava quando me arrastou para aquela benzedeira conhecida como fazedora de anjos?

— Do que estás falando?

— Estou dizendo que, graças àquele dia, eu nunca poderia dar a Richard os filhos que ele pretendia ter!

Bernard ficou em um silêncio absoluto, tentando digerir o que a prima havia acabado de dizer. Ele nunca carregou boa impressão dos modos rudes do pai, e de seus castigos atrozes infundados contra aquela agregada da família, mas seu rígido senso de obediência não permitia que ele abrisse o bico para manifestar qualquer repulsa, pelo contrário. Bernard era fruto de uma criação intransigente e castradora, que nunca permitiu que ele contestasse aquele que ele considerava seu mentor, pai e mestre. Minimizar suas atrocidades e focar apenas em suas batalhas e em seu heroísmo parecia-lhe a melhor coisa a se fazer, ao pesar na balança as qualidades e defeitos do pai. Naturalizar o papel sexual imposto à prima entrava nesse escopo: ela não era mais santa. Sabia "se virar" com a atividade. Havia momentos que parecia até apreciar seu papel de Lilith sedutora; nunca a viu chorar nem implorar para fazer o oposto do que fazia. Nunca propôs pegar em armas, ainda que em alguns momento delas tenha precisado. Helena, para ele, nunca pareceu uma criança. Em vez disso, carregava no olhar e nos modos a lascívia e o veneno das serpentes do prostíbulo. Não via com bons olhos que sua irmã dividisse com ela o mesmo leito. Foi ideia sua que Angela conservasse seu quarto decoroso e puro apenas para ela. Que Helena fosse para o porão, onde sua inocente irmã não precisaria ver a imundícia de sua conduta! Ela nunca precisaria saber quem além do tio deu aquela ordem.

 

Mas evitar vê-la no andar de cima não o impedia de ouvi-la no andar de baixo. A isca se encontrava com homens quase todas as noites, ele sabia disso. Não era mera necessidade - ela era de todos mesmo quando não precisava! Seu quarto ficava exatamente acima do dela. Lidar com aquela ascosidade a um assoalho de distância o confundia e irritava. Bernard, cuja castidade carregava as motivações de um Frollo, pois ele embalava Angela ainda menino enquanto o pai cuidava de suas caças, fora arrebatado de uma vez por uma incômoda e desavisada puberdade tardia. Ele não sabia explicar em palavras a indignação que teve quando Richard propôs desposar aquela ovelha desgarrada quando pelo menos duas ou três vizinhas castas e virginais eram opções melhores. Enquanto atendia Helena gentilmente e acercava-se dela com a prestatividade de um servo, torcia internamente para que Richard nunca acumulasse o dote exigido por Karl Lee Rush. Quando Richard morreu, o que a conservou do seu lado, ele só conseguiu sentir uma coisa por cima de todo o luto: alívio.

 

— Era muito conveniente que a isca da família nunca engravidasse, não é mesmo? - Helena continuou, tocando no ventre estéril - Siga-os; tu os prezas muito mais do que a mim! Acerca-te deles, a tua família!

 

O moço digeriu estas palavras com amargo desgosto e virou-se em direção ao castelo. Bem a tempo: fora chamado aos berros pela irmã. Helena sorriu ironicamente de sua submissão. A custo, levantou-se e o seguiu.

 

— Não acredito que deverias ir, pequena. Mas, se insistes nesta tolice, não a posso deixar sozinha. Não seria justo - Sean disse, conduzindo-a e apoiando-a pelos ombros.

— Eu estou de acordo - Margarida se manifestou em seguida - Não sei se serei de grande utilidade. Ainda lido com a possibilidade de me tornar uma inimiga antes que o dia amanheça. Mas, enquanto houver juízo nesta cabeça, eu a seguirei e protegerei juntamente com Sean.

— Juízo nessa cabeça é tudo o que ainda não tiveste na vida! - Sean cutucou os cabelos de Margarida, e ela revidou com um tapa muito forte entre suas omoplatas.

Sean queixou-se da dor do golpe aplicado por Margarida e os dois saíram discutindo amenidades. Helena sentia uma dor de cabeça atroz, fruto de não ter se alimentado o dia todo, suas pernas fraquejavam e ainda assim ela sorria, confortada pela presença daqueles dois que, não mais do que algumas horas ou dias antes, eram completos desconhecidos para ela.

(...)

Alguns passos antes do trio, os Lee Rush entravam na propriedade dos Seingalts. Quando todos estavam do lado de dentro, incluindo Helena e a dupla de ex-circenses, a porta se encerrou sozinha, enclausurando a todos. Isso causou um espanto e um temor geral. De todos os lados, podia-se ouvir tilintar de facas, punhais, cãos de revólver sendo acionados, elásticos de arco e flecha sendo esticados, lanças sendo empunhadas e cada arma sendo levantada de acordo com o estilo de cada um.

— Vocês deveriam ter ido embora enquanto era tempo - Helena sussurrou para os seus amigos.

Margarida, em vez disso, tomou uma das facas de cozinha que Sean entregou a ela. Uma arma patética diante das outras empunhadas por quem era de fato caçador ali. Helena, que teve roubada até a bolsa com que viera antes, também aceitou a oferta de Sean, quando ele apontou para ela uma diminuta faca com a lâmina de quinze centímetros. Para ela, acostumada a seduzir e matar monstros, aquilo era mais do que suficiente. Prendendo a respiração por um segundo, ela conseguiu minimizar sua cintura a ponto de conseguir fazer a peça se esconder por baixo de seu corselete. As outras facas coletadas antes e o punhal de Karl Lee Rush vinham presas a uma liga que ela atava à coxa.

Seguindo as instruções de Karl Lee Rush, os mercenários e os principais da família se separaram em grupos. Ele, claro, ficou a postos para defender Angela de qualquer ataque; Bernard seguiu com um grupo de sete homens para uma escada que dava para as torres do castelo. Vincent também comandava um pequeno grupo, mas sem tirar os olhos da noiva.

 

— Boa noite, Karl Lee Rush - disse uma voz nítida e alta, ecoando por todo o ambiente - Estive à sua espera durante vários meses. Mas isso não importa agora. Creio eu que esta seja a última vez em que nos veremos.

Todos agitaram suas cabeças no sentido de olhar para todos os lados possíveis, mas ninguém conseguia enxergar quem estava falando.

— Aonde você está? Miserável! Estás brincando comigo? Que tipo de blefe é esse? - Karl apontou a arma que empunhava para várias direções, e equivocadamente atirou em uma das colunas ao ter a certeza de que viu algo.

— Pai! - Bernard protestou, lembrando-o de que ele tinha poucas balas, mas sem verbalizar isso em palavras, lógico, afinal estavam diante de um inimigo que não conseguiam ver.

Um ultraje! - disse uma figura pálida que surgiu numa das sacadas principais do castelo, sem que ninguém tivesse se dado conta daquela presença antes - A mulher que tínhamos separado para nosso irmão mais novo encontra-se foragida. Tu a recuperaste, caçador?

— Não sei do que falas! Desça, e lutemos como homens.

— Assistirei, sim, tua morte, e à dos teus, pelo incômodo, mas não agora! Hoje é um dia importante para nossa família. Meu irmão mais moço se tornará um de nós! Escolhemos esta lua a dedo para fazê-lo perder a mocidade; tu não serás empecilho para nossos planos!

Margarida voltou-se para Helena para estudar sua expressão. Por alguma razão, ela esperava que a isca carregasse no semblante algum amargor, algum indício de ciúme. Nada.

— Tu conheces um caçador chamado Martinelli, não conheces? - perguntou a Karl o mesmo vampiro - Ele o busca com o mesmo ímpeto, ou quem sabe até mais do que o que usa para nos procurar! Eu gostaria muito de lutar com o lendário caçador desta família de renome, mas meus irmãos entraram no seguinte consenso: de que deveríamos esperar que as duas famílias de caçadores decidissem entre si qual seria a melhor qualificada para nos enfrentar. Creio que todos estejam de acordo quanto a isto. Eu disse ao senhor que esta seria a última vez que nos veríamos, e o senhor deve estar se perguntando o que isto quer dizer. É que eu aposto na vitória dos Martinellis.

 

Insultado, Karl Lee Rush quis subir as escadarias para acessar a sacada onde o espécime se encontrava, mas foi detido pelo filho Bernard, que desceu da escada lateral que encaminhava para as torres para se juntar aos que estavam lá embaixo. De certa forma, ele ainda não ter se distanciado o suficiente garantiu que seu pai não se suicidasse em tentativas vãs de derrotar o inimigo.

 

— Meu pai, se tivermos que lutar contra os Martinellis antes...

— És tu o líder atual do clã de vampiros? - perguntou Angela, à figura debruçada na sacada.

— Não vejo por que dizer isso a alguém que vai morrer daqui a pouco - a criatura jogou os longos cabelos negros para trás.

— Onde estão os outros? - Karl quis saber.

— Pelo castelo - disse-lhe o vampiro - Vós descobrireis no momento devido. Se sobreviverem, é claro.

— Ora, seu--! - Vincent mirou uma flecha no inimigo, mas ele a aparou no ar.

— Vós estais acostumados às investidas ingênuas de meu irmão mais novo; desconhecem-me os talentos. Não insistam, não conservem a imprudência dos incautos; não se assemelham a caçadores agindo de maneira tão voluntariosa. Levarei em consideração que o senhor está nervoso. Não serei tão complacente na próxima.

 

Ao contrário do que ele disse, no entanto, esperou Vincent baixar a guarda para espalmar a mão para cima e dela fazer voar a flecha na direção do caçador. O item o acertou em cheio no ombro.

 

— Que decepção - disse o mais novo líder dos Seingalts - Mirei nos olhos.

— Vincent! - Angela voou em cima do noivo num salto.

 

Entredentes, ele exclamou uma palavra suja.

 

— Bastardo das trevas! Filho do demônio! Tu me pagas! - completou.

 

Vince, o vampiro, despediu-se da família Lee Rush aos risos.

 

— Volte aqui! - Karl Lee Rush bradou - Tu irás me enfrentar agora, maldito!

 

Vincent quis segui-lo para impedi-lo de qualquer imprudência. Bernard bloqueou sua passagem.

 

— Vincent! - Bernard se plantou diante do cunhado e tentou verificar seu ferimento, tirando a histérica irmã de cima do paciente e aconselhando-a a ir conter o pai. Fez com que o amigo se sentasse aos pés da escada - Como está a ferida? Foi profunda?

Numa troca de sinais com a cabeça e com gestos manuais, Bernard fez com que um de seus subordinados trouxesse uma espécie de alicate, com que quebrou a flecha até alguns centímetros do ferimento. Assim, ele tentava garantir que Vincent não tivesse problemas com aquela coisa esbarrando durante o combate. Sim, ficar sentado lamentando aquele ferimento não era uma hipótese.

 

— Meu pai! - Angela agarrou o braço de Karl Lee Rush para que ele parasse de seguir o vampiro.

— Escapou o maldito!

— Eu estou preocupada com uma coisa que ele disse...se for verdade que os Martinellis nos aguardam, o que faremos?

— Ora, como o que faremos? Iremos acabar com eles!

— E se eles criarem mais carniçais para nos...

 

Angela não conseguiu terminar a pergunta. Um vampiro que veio do alto se atirou entre ela e o pai. Karl a empurrou escada abaixo, antes que ela se tornasse vítima da fera. Ela se equilibrou poucos degraus depois, massageando os ferimentos leves.

 

— Papai! - gritou, chamando a atenção de todos.

 

Bernard imediatamente abandonou Vincent aos cuidados de si mesmo e correu escada acima, para verificar o que estava acontecendo com o pai, mas não sem examinar os ferimentos da irmã muito rapidamente. Karl demandava mais cuidados agora, pois tinha um vampiro por cima, ameaçando sua integridade.

 

— Solte-o, besta fera!

 

Karl se livrou da criatura afincando uma estaca em seu coração. Era um Seingalt a menos.

 

Uma lindíssima moça de longos cabelos brancos correu alguns degraus para baixo, clamando pelo nome do vampiro: Johann. Helena a reconheceu como sendo a mesma vampira que compartilhou o sangue que tinha nos lábios com o irmão Arthur Seingalt. Aliás, ela percebeu que o próprio deteve a irmã de avançar.

— Aproxime-se, monstro! - Karl deu alguns passos com a estaca que matou o irmão dela na mão. Tinha um sorriso vitorioso no rosto.

Para quem dizia que só iria enfrentar os Lee Rush se eles derrotassem os Martinellis, os Seingalts já tinham contabilizado um grande prejuízo, ao perder um dos irmãos numa atuação tão ridiculamente entregue como aquela. Arthur colocou a irmã atrás de si mesmo e expôs as presas em tom ameaçador. Dava passos para trás no intuito de protegê-la. Seu plano era escapar; o rapaz não era afeito a combates, por mais que sua mãe tivesse tentado prepará-lo para isso.

— Como Johann ele pôde ter se distraído tão facilmente? - perguntou o sanguessuga, a ninguém em específico. Sua voz jovial oscilava, numa clara alusão ao seu descostume a batalhas.

— Tu serás o próximo!

— Não cometeremos o mesmo vacilo, o senhor pode estar certo disso!

— Solte-me, criatura impúbere, verde e hodierna! - rosnou a outra - Que podes tu fazer em batalha? Nem deverias estar aqui! Volte aos teus cueiros e não me detenhas; tenho contas a acertar com este estrume! Mataste-me meu irmão favorito! - aquelas palavras doeram em Arthur, que não encontrava contexto para expressar seu desagrado a essa revelação.

Helena, ao ver que um conflito se iniciava entre o membro mais capaz de sua família e aquele rapaz ao qual dedicava sentimentos que ela considerava perigosos, convidou Margarida e Sean a segui-la para longe dali.

— Seria ele capaz de matá-lo? - Margarida perguntou.

— Não sei. Não quero saber - Helena desviou o rosto - Não quero saber - ela reforçou, tentando disfarçar a própria impotência diante do resultado daquele combate, qualquer que fosse.

— Qual seu plano? - Sean achava perigoso se afastar dos demais.

Ele poderia considerar os Lee Rushs as pessoas mais moralmente putrefatas que já conheceu, mas naquele contexto uma coisa era inegável: perto deles, se sentia mais seguro do que longe.

— Vamos atrás do líder.

— Você está brincando - disse Margarida, temerosa.

— Não, não estou. Pela memória de Richard...

— Na minha opinião, o que tu queres é evitá-lo.

— Evitar a quem? - Helena se fez de desentendida.

— Aquele a quem tu amas agora.

Helena cobriu a boca de Margarida violentamente, assustando até Sean com o estalo da mão dela sobre o rosto da outra.

— Nunca mais te atrevas a dizer isto, estás me ouvindo?

 

Sean pegou Margarida pelo braço e a afastou das mãos de Helena. A delicada garota, magoada, baixou a cabeça como uma criança repreendida.

 

— Eu nunca diria que algo assim estava realmente acontecendo. Vi, é verdade, os outros fazerem troças a respeito, mas mal pude acreditar. Uma caçadora que se apaixona por um vampiro. Isso chega a ser melancolicamente falho.

 

Helena o encarou com amargo ressentimento, mas reconhecia também que fora malvada com Margarida e que ele apenas a vingava.

 

— Sean, deixe-a em paz – Margarida pediu – Eu não deveria ter falado dessa forma. Eu a expus. Peço desculpas, Helena.

— É aquele? O meio vampiro que esteve na estalagem? - ele apontou para Arthur Seingalt, que, acompanhado da irmã, havia acabado de fazer Karl Lee Rush descer as escadas rolando e agora concentrava-se em se defender dos ataques de Bernard e Angela.

 

Num compasso sincronizado, ambas as duplas de irmãos golpeavam-se e desviavam-se de golpes com presteza. Bernard mirou uma flecha em Arthur, sua irmã de cabelos platinados reagiu, aplicando-lhe um violento chute que lhe desviou a mira da seta; Angela tentou cravar na garota uma estaca de madeira nas costas, mas apenas tentou porque Arthur a agarrou pela cintura e a jogou de encontro a um corrimão, fazendo-a cair sentada em um dos degraus da escada.

— Angela! - gritou Vincent, tentando se aproximar, sem sucesso.

 

Num gracioso salto seguido de escorregão por cima do corrimão da escada, a irmã de Arthur conseguiu derrubar o noivo de Angela ao colidir com ele, e caiu com as ancas por cima do seu peitoral, arrancando dele um grito desesperado de dor.

— Sangue…! Eu sinto cheiro de sangue!…

— N-nããão! Vá embora! - Vincent tentava afastá-la para longe de si, enquanto Arthur tomava na mão uma foice que um dos guerreiros havia acabado de deixar cair. Ele visava descer ao encontro da irmã para ajudá-la. No caminho, não hesitou em ferir seriamente dois guerreiros que correram até lá para dar cobertura a Angela. Um deles emborcou por cima do corrimão da escadaria e caiu de uma altura razoavelmente mortal, mas ainda que não morresse da queda, morreria da ferida. Por incrível que pareça, Angela estava a apenas alguns passos dele, mas mesmo assim ele a ignorou, considerando o seu princípio (ou fraqueza) de não ferir mulheres.

Helena analisou toda essa cena com apreensão, encarando primeiro ele, depois a arma que ele tinha nas mãos e em seguida Vincent, indefeso, ferido e com uma fera assassina por cima dele.

— Eles muito pouco ou nada fizeram por ti! Aquieta-te! - Sean pediu, segurando-a pelos ombros.

— Ainda são a minha família! - ela argumentou, desviando-se de seu toque e avançando bruscamente.

— Você está bem, Angela? - Bernard puxou a irmã pelo braço, obrigando-a a ficar de pé. Ela, que bateu a cabeça, reclamava de tontura.

— O que tu achas? - resmungou.

Porém, ela não tinha tempo de se queixar pelo que tinha havido consigo mesma. Urgia de salvar o noivo das mãos pálidas de uma certa vampira sedenta de sangue.

Restabelecendo as forças, Angela correu em direção a Arthur Seingalt no momento que ele ia entregar a foice à irmã. Sem muito tempo para pensar em qualquer coisa mais inteligente a dizer, a filha de Karl Lee Rush resolveu arriscar sua estratégia mais desesperada. Puxou o sanguessuga pela manga da roupa, apontou para uma direção aleatória e gritou para todos ouvirem:

— Veja! É Helena!

O meio vampiro hesitou por um momento, mas deixou-se influenciar pelo impacto que aquele nome lhe causava. Arquejou de expectativa e, por que não dizer?, saudades. Ainda que tentasse simular alguma rigidez ou indiferença na expressão, seus olhos carregavam uma paixão que arrebatava qualquer senso de dever, cuidado ou precaução por si mesmo e pelos outros à sua volta. Sem encontrar o alvo de seu desejo, ele a buscava sem saber que Helena estava realmente a poucos metros dele. Angela se aproveitou de sua distração para lhe roubar a foice, e com ela desferir um golpe na inimiga.

— Tome isto, seu monte de carne podre! - bradou, vitoriosa, ao ver que a outra, que quase conseguiu plantar a boca no pescoço de Vincent, tinha um talho enorme nas costas.

Vincent conseguiu empurrar a vampira depois disso, e Arthur correu naquela direção para segurar a irmã nos braços e conferir seus ferimentos.

— Anna! Anna, minha irmã! O que aconte...

Antes que ele terminasse a pergunta, Angela tentou também feri-lo com a mesma foice, mas se levantou a tempo e a deteve agarrando a foice pelo cabo, próximo à lâmina. Terminou de puxar para si o objeto, batendo com ele na cara de Vincent, que já ia se levantando, e depois no estômago de Angela, que avançava em sua direção para tentar tomar o objeto novamente. Assustado com o resultado de sua autodefesa, ele jogou o objeto para o lado e se debruçou novamente sobre a irmã machucada.

— Precisamos ir ao encontro dos outros! Eu sei que tu irás te curar, não me deixarás sozinho aqui! - disse ele, em desespero, tentando carregá-la para longe dos caçadores.

Angela se arrastou até a foice e a apanhou, mas logo se deu conta de que ela era pesada demais para que uma garota conseguisse correr com ela.

— Permitirás que ele fuja? - inquiriu, frustrada, ao noivo.

— Estou ferido, tu o sabes - Vincent respondeu - E esse tipo abobado nem conta como trabalho, pela graça de Deus! Guardemos energia para os inimigos que ensejam preocupação!

— Tens razão, como sempre. Estás bem? Não foste mordido?

— Não, não, não - ele negou, aliviado - Salvaste-me a vida: primeiro, da solidão, agora das feras! Grato, meu amor.

Com a ajuda da noiva, Vincent se levantou completamente. Karl Lee Rush avançava para cima, se aproveitando dos degraus vazios, tanto de aliados quanto de inimigos.

— Dois vampiros fogem de nós. Viu como somos terríveis? - Angela riu, com uma meiguice que nem parecia pertencer a ela.

— Eu adoro inimigos confiantes – um outro vampiro que surgiu do nada se manifestou, arreganhando as presas para mordiscar o pescoço da donzela.

Antes que Angela pudesse expressar qualquer tipo de assombro, uma flecha atingiu em cheio a boca aberta do espécime atrás dela. Parte de seus cabelos se agitaram primeiro, pela velocidade do ataque; depois, pela explosão que a água benta causou na cabeça daquele ser das trevas.

— Parece que está tudo bem com eles - disse Sean, a Helena - Até agora, parece que eles só se depararam com os adversários mais fracos.

Helena assentiu, e, olhando para o tio uma última vez, tomou uma direção oposta.

 

Membros novos e desconhecidos do clã Lee Rush dividiam-se entre seguir Karl e socorrer os caçadores-mercenários atacados por Arthur.

— Uma ferra desgarrada, às vias da insanidade! Quem faria isto com um semelhante, que não um demônio? - comentava um deles, ao analisar as profundas e incuráveis feridas dos companheiros agora mortos.

Helena, que cultivava silenciosamente a necessidade de pensar que Arthur era um monstro inocente que só matava pela necessidade de saciar seu apetite assassino, via ali, diante dela, contrariada essa idealização. Arthur era como eles, um inimigo que precisava ser combatido e eliminado. Não era alguém que merecesse sua misericórdia quando estivessem frente a frente.

— Estamos nos afastando demais dos outros - Sean se manifestou, ao dobrarem sozinhos o primeiro corredor passando do salão principal.

— Estou com medo do que nos aguarda mais à frente - Margarida traduziu seu raciocínio incompleto em palavras mais exatas.

— Se serve de consolo eu também, mas isso não faz diferença - Helena respondeu, na sua inseparável frieza - Estamos trancados aqui. No caso de vocês dois, o ideal seria explorar o lugar em busca de alguma saída. Quanto a mim, seguirei meu destino, rumo à minha batalha final; nada nem ninguém me desviará desse caminho. É meu último dia...

Margarida a amparou nos braços, diante de sua dificuldade de falar e se locomover.

— Eu estou bem - Helena forçou o restabelecimento do próprio equilíbrio.

Continuava a dar pequenos saltos enquanto caminhava, segurando a perfuração que tinha no ventre.

— É o meu último dia, e este sacrifício final é o máximo que posso fazer por meu falecido noivo, Richard van Gloire!

— Eu não sei quem era esse tal de van Gloire, mas tenho certeza de que ele queria que tu estivesses feliz, e viva - Sean contestou.

— Em mim, não há mais vida desde que ele se foi. E nada mais posso fazer a não ser encontrar meu fim; se não vingá-lo morrerei na tentativa. É fato que não escapo desta noite, não desperdiçarei esta última oportunidade.

— Tu pensas assim ou tu queres pensar desta forma? - Margarida refletiu - Talvez considere uma leviandade profanar seu coração com o afeto a outra pessoa, talvez você...

A circense interrompeu a caminhada de Helena e a encostou delicadamente contra uma parede.

— Minha amiga, não te acostumaste à tua própria viuvez, conformando-se com esta dor permanente sem solução? É isso que temes: traí-lo?

— Meu coração nunca se inclinou a nenhum outro homem além de Richard!

— É aí que tu te enganas, minha querida. Eu vi como tu olhavas para ele. Supostamente querer vingar teu amado noivo é o pretexto que arrumas para estar aqui, próxima dele!

Sean nem se mexeu, temendo que uma briga se iniciasse. Mas, em vez disso, Helena ficou em silêncio, e isso pôs os dois, Margarida e Sean, com mais medo ainda de sua reação posterior. Os pensamentos gerais foram interrompidos por um grito agudo de Angela:

— PAPAI!

O que quer que tivesse acontecido, com certeza era algo muito grave.

 


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