Vampires will never hurt you escrita por manasama677


Capítulo 9
Capítulo 9 - Honey




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CAPÍTULO 9 – HONEY

 

Como se pudesse proteger os amigos, Helena se colocou à frente deles.

— Margarida! Sean! Não sei que ideia tinham ao virem para cá, mas escondam-se em algum lugar seguro! Rápido!

— E você acha que ainda existe isso neste castelo? - Sean contestou, olhando em volta.

— Tem certeza de que é seguro eu lutar ao lado de vocês, Sean? Eu ainda posso estar me transformando em um deles... - Margarida, que já estava incomodada com a chaga no pescoço havia algum tempo, levantou esta pauta.

— Não me importa. Eu confio em você.

— Eu não quero contrariar os senhores, mas vampirismo não é uma questão de confiança. Já que tocou no assunto, é melhor que fique aqui com a Margarida. A agitação pode fazer com que o antídoto não funcione - Helena dirigiu-se a Sean.

— Mas, Srta. Lee Rush, eu...!

— Você sabe o que precisa ser feito. Cuide dela e não a deixe sair daqui.

— E você, onde está indo? Ei, espere!!

Helena se distanciou deles e foi correndo em direção aos gritos que ouviu, sem responder nada. Ainda que ela desejasse se apartar dos Lee Rush, seria ruim para todos se o líder deles morresse. Bernard e Vincent não eram autoridades à altura do patriarca da família para guiar todos os outros, ainda que fisicamente fossem mais fortes; uma briga entre eles pela liderança do clã também poderia causar consequências desastrosas.

— Papai! Papai! - Angela tentava erguer o pai, que fora lançado na parede por um vampiro.

— Eu estou bem, minha filha. Eu estou bem - respondia o velho Karl, erguendo-se lenta, porém muito furiosamente.

Antes que qualquer um deles pudesse se manifestar, Helena correu na direção do vampiro que atacou Karl e, pulando em suas costas, conseguiu acessar a garganta do monstro, cortando-a. O monstro se sacudiu e a fez cair no chão, mas este ato de coragem dela permitiu que um dos mercenários contratados pela família terminasse de cortar a cabeça do vampiro com um machado. Angela concluiu o serviço enfiando uma tocha na boca do vampiro morto.

— Helena...Não deveria ter vindo aqui, se estava ferida! - disse a filha de Karl, com um certo despeito por heroicamente a prima não estar morta, considerando as condições em que foi abandonada. Na verdade, seu comentário aleatório e fora de contexto escondia justamente isso: vergonha.

Em vez de esperar qualquer agradecimento, Helena pretendia dar as costas a todos, mas um chamado do primo Bernard a deteve:

— Junte-se a nós, minha prima. Suas habilidades são e sempre serão úteis a todos nós.

Ela ficou sem palavras. Dezesseis anos de convivência a separavam da sua decisão de ir embora, e aquele elogio, naquela situação, era como um reconhecimento há muito tempo esperado. Porém, esse reconhecimento não vinha de quem ela mais esperava: o líder da família. Não queiram saber como funciona a mente humana. Agredida e afagada pelo tio em iguais medidas, Helena sentia ao mesmo tempo a revolta pela convivência com um monstro e a indócil necessidade de obter o reconhecimento do mestre que a acolheu; esses sentimentos simultâneos, confusos e opostos na maior parte do tempo eram ofuscados pelo calor das batalhas, pela urgência da união, pela necessidade vital de não romper com a família. Em meio a um tumulto tão grande, dar-se ao luxo de se importar com os próprios sentimentos era uma heresia. Pode-se arriscar a dizer até mesmo que era um espanto Helena ter alguma opinião, tão decidida e inquestionada era sua submissão. Por isso, quando Karl acenou com a mão e disse "venha", ela simplesmente foi até ele.

 

— Venha, minha menina...seu tio está muito orgulhoso de você.

 

Todos viram com estranhamento aquela aproximação, inclusive a própria Helena, mas o tio a incentivava a chegar cada vez mais perto. Ao ver que os passos da sobrinha cessaram em um certo ponto, Karl mesmo andou até ela. Hesitante e muito instintiva, a jovem sentiu algum alarme interno soar. Seu inconsciente gritava por ajuda.

— T-tio…- ela sussurrou, recuando uns dois passos.

— Não és tu, não é?

— O...o quê?

— Maldita vampira vadia!...Tu és morta, tu és morta para todos nós! O que pensavas? Que irias nos convencer ao matar um de teus aliados? Tu, noiva de Martinelli, passaste para o lado deles! - ele gritou, a apanhar o cabelo de Helena.

— O senhor meu tio está enganado! Não sou um deles! Viemos aqui como aliados! Eu e os outros não fomos dominados!

— E como tu explicas estares em pé? Como explicas? Pensas que eu sou um tolo? Para início de conversa, quem sobreviveria a uma ferida como a que tu tinhas? Quem lutaria com carniçais, e sairia daquela pensão, viria até aqui, digladiaria contra monstros e sairia vencedor…? Quem???

— Eu estou no limite das minhas forças, tio...Não devo aguentar muito mais do que tenho suportado…! Eu irei morrer!

— É claro que vai! Porque eu mesmo vou te matar!

 

Helena foi lançada no chão e, antes que pudesse se levantar, um poderoso chute a acertou no estômago. Dentro de suas severas limitações, ela soltou um grito.

 

— Se não és uma vampira, por que deste fim no dono do circo? Querias me desafiar, não é? Aquilo era um recado para mim? Era? Declaravas ódio aos homens, os teus senhores? Ou ele te saboreou a carne e não lhe deu a paga? Marafona, promíscua! Puta vadia de merda! - ele dizia aos gritos, enquanto a agredia repetidamente – Chama teus mestres aqui! Chama! Chama!

 

Helena, sem conseguir reagir, tentava proteger o rosto e dobrava as pernas de modo que elas protegessem precariamente o seu ventre.

 

— Pai, pare! - Bernard tentou dissuadir o pai de continuar com aquilo, mas Angela o agarrou pelo braço.

— Deixe-o fazer o que quiser! - disse ela, mais uma vez volúvel, tentando se colocar ao lado daquele que ela acreditava ser o vencedor daquele embate.

— Ele irá matá-la! Não podemos abrir mão de aliados agora, meu pai!

— O que tens tu com a vampira? Por acaso, passaste para o lado dela?

 

Bernard não conseguia acreditar no que estava vendo: a arma de balas de prata do pai agora estava voltada para sua cabeça.

 

— P-pai...o que é isso?

— Mestre Lee Rush – Vincent interveio – É um exagero, um absurdo, não o vês?

— CALA-TE!! - berrou Angela, enciumada – Sempre que podes, manifestas a tua estima a ela…! Este parvo aqui, eu já percebia, e não era de um dia ou dois! - ela apontou para Bernard, que ficou vermelho até as orelhas – Agora, até tu?! Tu também te lanças em cima deste lamaçal? - ela estendia a palma da mão à prima como se a apresentasse ao noivo.

— É uma desumanidade, é contra isso que protesto! – disse o rapaz, em defesa de si mesmo – Não a deixaram lá para morrer? Eu me lembraria disso todos os dias de minha vida se eles estivessem mortos, e agora não tenho o direito de ser grato à vida desta menina e querer preservá-la? Vocês não têm consciência do que fizeram??? Helena é sua prima!

— Prima??? Pois para mim não passa de uma bastarda que acolhemos por caridade! Uma intrusa que me incomoda desde o primeiro dia que pôs os pés em nossa casa!

— Como podes tu dizer uma coisa dessas?

— Talvez seja melhor repensarmos nosso compromisso – Angela disse após um muxoxo – Eu não quero ir para o leito com um homem que pensa na minha prima!

— O que estás dizendo? - Karl dirigiu-se à filha e moveu-se em direção a Helena com o dobro de brutalidade de antes – Debaixo do meu teto…?

— Nada temos, mestre Lee Rush. É a única verdade que pode existir! - Vincent o interpelou – Sua insistência neste tema me ofende!

— Helena e essa sua forma provocativa de se vestir atiça os homens! Todos sabem o que ela é, e o que faz! Com homens livres e comprometidos, cede a todos sem distinção! Que custaria a ela seduzir meu noivo? - Angela seguiu desferindo acusações – E este mau homem que me escolheste, meu pai, toma partido dela porque a deseja! Se é que já não a possui!

— Eu nunca faria isso! - Helena soluçou, tentando se levantar, mas Karl a espezinhou mais uma vez, fazendo-a virar de bruços.

— Tu, faminta e insaciável, por acaso pensas que engana alguém? Tu, que costuras estes trapos indiscretos! – disse ele, sobre sua roupa – Vejam, estes ombros à mostra! Esta saia acima dos tornozelos, quase permitindo entrever as coxas! Maldita! Vil! Vulgar! Exibida! Quero ter notícias de que roubas o noivo de minha filha, sua cobra!

Karl Lee Rush parecia ter se esquecido completamente de que havia um inimigo maior a ser combatido ali. E isso foi a deixa para que Sean se aproximasse com uma espada embainhada retirada de uma armadura ali próxima e desse nas costas do velho uma baita lamparinada.

 

— Desgraçado, você está louco?

 

Em vez de tombar como era a pretensão de Sean, Karl apenas esticou o braço e apertou o gatilho da arma que todo mundo se esqueceu que ele ainda segurava. Vincent puxou Angela de encontro ao seu corpo, cobrindo-a o máximo que podia. Bernard estava indeciso entre cobrir os olhos, os ouvidos ou a boca. Vagarosamente, ele tirou as mãos da vista para se deparar com a imagem do jovem circense caído, com Margarida por cima dele lastimando-o.

 

— Seu maldito velho caduco! Olha o que você fez!!

 

A moça tateou por toda parte o corpo do amigo, sem achar ferimento. Sean, com a mão por cima do peito, apenas disse, rápido como quem tece uma palavra de sílaba única:

 

— Eu vou matar esse desgraçado nem que seja a última coisa que eu…!

 

Ele tentou se levantar, mas o sangue já lhe tomava a boca e as narinas. Foi então que Margarida deduziu que o rapaz havia sido baleado no pescoço. Ela e Helena trocaram um olhar de desespero, e a caçadora percebeu que Karl agora elevava a arma homicida para a cabeça de sua mais recente amiga. Margarida, debulhada em lágrimas, não tinha percebido isso.

 

— Agora é a sua vez, biralha contaminada! - avisou o caçador.

 

Tomada pela coragem e extrapolando todos os limites de sua condição, Helena pulou em cima dele e desviou a rota de sua arma, que atirou para cima, fazendo cair um lustre, e mais do que isso: algo que vestia capa. Bernard e Vincent correram para o lado, para escapar do alcance do objeto que caía. Angela, que arriscou rumar para outra direção, seria diretamente acertada por ele se algo não a tivesse puxado velozmente para cima.

— A Angela! - Bernard apontou para a irmã, que foi içada por um vampiro muito veloz. A criatura em dois saltos atingiu certeiramente um dos parapeitos de uma sacada a dois andares de distância dos Lee Rush.

— Angelaaaaaaaaaaaaaaaa! - gritou Vincent, contorcendo-se de dor pelo esforço.

— Minha filha! - Karl Lee Rush ainda reuniria alguma disposição para acusar Helena, se Bernard não o tivesse contido.

— Pai! Acalme-se…! Não podemos desperdiçar balas de prata!…

 

Diante desse argumento, o líder da família se conteve e recolocou a arma no coldre.

 

— O que vamos fazer para chegar até lá? - Vincent levava as mãos à cabeça, desesperado.

— Vincent! - Angela gritou do alto, mal conseguindo se fazer ouvir.

 

Margarida agitava Sean como se fosse possível ele acordar. Helena, quase se arrastando, juntou-se a ela, para puxá-la dali e evitar que ela continuasse vendo seu amigo morto.

 

— Não adianta, pare com isso!

— Deixe-me! Por que impediu que o seu tio me matasse? Eu quero morrer também! Eu não quero mais viver!

— Pare de me bater, mulher – Sean resmungou.

— O quê??? - Margarida, espantada, pulou uns dois metros para trás, caindo por cima de Helena.

— Diabos, esqueceste que eu sou um mágico?

— Mas o q--! Ele quase me matou! - ela apontou para o velho Lee Rush, que subia à toda as escadarias da mansão dos Seingalts, tentando acessar a sacada onde Angela e o vampiro que a capturou se encontravam.

— Como assim “ele quase a matou”?

— Ele quase me matou! - ela repetiu, golpeando-o no braço com toda a violência – Ele quase me matou e você ia ficar aí, deitado como um parvo! Demônio! Como ele não acertou em você? Tenho certeza de que o vi acertar uma bala em você! Seu idiota! Você me fez chorar, olha isso!

 

Sem deixar que ela dissesse mais qualquer palavra, Sean a beijou. Ela correspondeu de início, mas depois voltou a brigar com ele, porque sua cara tinha ficado toda vermelha de tinta.

 

— Agora eu pareço uma vampira! - reclamou.

— E isso foi bem providencial – foi a resposta de Sean.

 

Os dois, depois de umas arrulhices de casal, finalmente se deram conta de Helena ali, sobrando.

 

— Não creio que irás ajudá-los agora, irás?

— Não – Helena balançou a cabeça cheia de cabelos desgrenhados pela surra – Nem um pouco.

 

A última coisa que Angela viu antes de ser arrastada para alguma cela interna do castelo foi o olhar desafiador e o sorriso amargo e vingativo da prima Helena. Apenas uma ideia se passava na cabeça de ambas: a lembrança de como Angela sempre se queixava de ir salvar Helena dos sanguessugas quando ela era vítima de algum sequestro. Agora, era chegada a hora de ela experimentar do próprio veneno.

Enquanto as vozes chamando Angela se distanciavam, Helena e seus amigos descansavam impunemente ao pé da escada. Sean contava detalhes da magia que enganou a todos. Margarida tocava no pescoço, cuja chaga ia enrijecendo em direção ao busto. Ela mal conseguia mover a cabeça para os lados, ainda que Sean dissesse ver uma melhora invisível que só ele enxergava. Helena arquejava e, de cara muito séria, enxugava as lágrimas produzidas pela violência do tio.

 

— Você está bem? - Margarida perguntou à amiga, arrumando seu cabelo para trás.

 

Sem forças para falar, Helena apenas assentiu com a cabeça.

 

— Eles irão salvá-la – ela rouquejou, para ninguém em específico. Talvez quisesse convencer a si mesma do porquê de não estar ali, ajudando todos os outros. Era inacreditável, mas alguma parte dela ainda se culpava por não estar junto com a família.

— Sim – assentiu Margarida, empática com sua dependência afetiva – Vai ficar tudo bem, confie no talento dos guerreiros de sua família!

 

A reação de Sean foi revirar os olhos e passar a mão pelos cabelos.

 

(…)

 

Angela, agarrada pela cintura, tentava empurrar o vampiro. A velocidade com que ele tinha saltado com ela junto a ele, a nauseava. Quando seus pés encontraram novamente o chão, a jovem caçadora tocava no estômago e tentava recuperar o ar.

 

— És tu Angela, a preciosa filha do caçador Lee Rush?

— Parasita imundo, quando meu pai vier aqui, tu te verás com ele e ele tomará tua cabeça nas mãos!

 

O vampiro cerrou os olhos, suspirou e meneou a cabeça.

 

— É um pouco humilhante fazer ameaças que não se pode cumprir. Não, na verdade eu não diria “um pouco”. É muito humilhante.

— O senhor insinua que meu pai não é capaz de combatê-lo?

— Aquele bode velho não pode nem com um dos Martinellis, o que dizer de um Seingalt!

— Já matamos vários dos seus!

— Queres dizer, os mais estúpidos de nós?

— Vocês sequer se importam com seus companheiros mortos!?

— Não sois exemplos de virtude: a história de Helena é conhecida por estas fronteiras. Oh, ela é uma jovem realmente suculenta e agradável. Já pertenceu a vários de nós em troca da própria vida! Uma estúpida! Transformá-la em uma de nós seria um despautério. Vince, aquele morcego irritante, muito disse no sentido de que não desperdiçássemos a oportunidade da última vez. Eu, em contrapartida, acredito que…

— Não quero ouvir!

— ...eu, em contrapartida – ele prosseguiu, ignorando-a – acredito que o que há de mais delicioso nas mulheres humanas é o pleno domínio que temos sobre elas! Tirando-lhes a vida, perdemos sobre elas o único medo que lhes assegura a mais completa obediência.

 

Angela deu um passo para trás. Ele avançou exatamente o passo que ela recuou. A jovem estudou o espaço que havia atrás de si mesma. Mais dois passos em recuo e ela cairia por cima de uma longa espreguiçadeira. A possibilidade não a deixava muito segura.

 

— Não entendo o que o senhor quer dizer, e, a bem da verdade, também não me interessa! Se não quiser se meter em uma grande encrenca, liberte-me!

— “Se eu não quiser me meter em uma grande encrenca?” A senhora há de concordar que Vince, meu irmão mais velho, o atual patriarca desta família, é muito mais assustador do que um caçador imprestável que arrasta mulheres tão agradavelmente delicadas para o combate…

 

Ele tomou a mão de Angela e beijou-a. O membro teso da jovem assustada mal chegou à sua boca.

 

— ...a senhora não concorda?

 

Angela ocultou a mão que ele ultrajou sob a palma da outra. Juntou as duas ao peito, alvo como mármore.

 

— Então, é isto: tens medo de contrariar teu irmão mais velho?

— Não, longe de mim: ajo em interesse próprio desta vez.

 

A filha de Karl Lee Rush sentiu um arrepio de corpo inteiro. Instintivamente – porque uma mulher detecta a quilômetros esse tipo de ameaça – puxou as longas e pesadas madeixas ruivas para cobrir o busto marcado por um corpete à moda vitoriana. Nada disse, e nem precisou. Seu medo era claro e cristalino como água.

 

— Observo a senhora há algum tempo. Estiveste aqui em nosso último combate, és valente e precisa. Gosto de sua altivez. És intocável como a madona; oh, és a representação daquilo que realmente aprecio! Tens a objetividade de um soldado, a indiferença e precisão de uma lança! Nada a importa se nada a afeta. Somos irmãos de alma: pensamos igual! Esse apego desmedido à própria família é a virtude dos fracos, não concorda? Vivemos sós, morreremos sós, e…

— Eu não faço ideia do que o senhor pensa que viu, mas eu…

— Veja bem, menina, estamos entre nós! Aqui não precisamos de cerimônia, portanto não me decepcione com fingimentos! O que pensas: sente-se inferior a ela?

— Como o senhor pode cogitar fazer uma pergunta dessas? Quem neste universo se atreveria a nos comparar?!

— Quem ousaria? Quem? - o vampiro olhou de um lado para o outro, a expressão de um sarcasmo puro – Ah! Claro! Teu noivo caçador! Ele sim, a contempla com olhos que jamais te enxergaria! Sou estudioso da alma humana há um bom quarto de milênio! Nada é capaz de enganar a estes olhos, asseguro-te! Mas não se preocupe, cá estão olhos que a veem com o valor que realmente possuis.

— O senhor é infame, fique sabendo! Sua opinião de nada me serve!

— Aquele homem aprecia o charco, senhora. Os detritos que as mulheres da noite impregnaram na alma daquele homem nunca o abandonaram. Tu o entedias, porque ele não é afeito à virtude das almas puras e viciosas na prática da autopreservação. Eu sim, eu sim, minha senhora, a aprecio!

 

Angela recuou mais um passo e tentou ganhar espaço pela lateral direita do monstro, mas ele não a deixou passar. Em vez disso, envolveu sua cintura e a apertou junto ao peito. Não havia uma parte do corpo dela que não estremecesse, de medo sim, mas também pela novidade daquele contato.

 

— Seguramente, o calor do seu corpo serve para nós dois.

— Eu sou comprometida!

— Eu sei. E realmente não me importo. Trazer esta lembrança inoportuna a este momento só serve para isso: ferver o meu sangue com a possibilidade de ter nas mãos a mulher de outro homem.

— Papai! - ela chamou, pedindo socorro.

— Oh! Sim, o desespero…! Isso também me atrai.

— PAI! Paaaaaaaaaai!

 

O vampiro cobriu delicadamente a boca de Angela com a palma de sua mão.

 

— Por que não chamas a ele, o teu noivo? Ele não é homem para protegê-la?

 

Arfando e começando a lagrimar, Angela não sabia o que responder.

 

— Tens virtude em excesso ou falta apenas alguém capaz de assoprar as cinzas de tua alma, transformando-as novamente em brasa? Eu vejo brasa em seus olhos, minha senhora, mas também vejo cinzas – disse ele, forçando-a a manter a cabeça erguida – São olhos de alguém que beijaria os lábios de um homem desconhecido, contanto que fosse o homem escolhido. Tu podes não saber quem é esse homem, mas decididamente sabes que não é aquele que está lá embaixo, pateticamente chamando teu nome, certo?

— Eu já disse, e mais de uma vez, para o senhor me soltar!

— Ouvi dizer isto também, que as mulheres humanas não são livres como as nossas. Curvam-se às vontades de seus homens, sejam eles pais, irmãos, tutores ou maridos. Este homem a quem chamas de noivo o é mais pela vontade de teu pai do que por tua própria vontade. Acertei?

— Solte-me!

— Sua virtude é algo tão frágil...o fio que a amarra é mais fino que um fio de cabelo. Um corte e tudo vai explodir, e sua alma brilhará na mais pura intensidade.

— Nada dessa loucura que o senhor diz faz sentido! É apenas mais uma de suas intrigas!

— É intriga minha também que tua alma se inflama toda vez que a sabe com alguém?

— O QUÊ???

— O que queres tanto ao censurá-la? Evitar que ela também te perca?

 

Chocada, Angela não sabia o que dizer. As palavras que ele dizia não se conectavam a seu parecer. As letras, inúteis, se chocavam e voavam livremente ao vento, sem montar significado preciso. Ao mesmo tempo, essas acusações, que expressavam todas as ideias que ela empurrava para o fundo da mente para evitar, faziam todo o sentido.

 

— A tentação e o desejo a consomem continuamente. Isso também é divertido – ele sussurrou em seu ouvido.

 

A caçadora foi lentamente conduzida à espreguiçadeira antes mencionada. Sua resistência se mostrou inútil diante da habilidade do monstro que a conduzia. O vampiro ergueu a barra do vestido de Angela até o joelho, onde sua mão graciosa e enluvada o deteve de continuar.

 

— O senhor pode ser mais forte do que eu, sou incapaz de discordar; mas não me humilhe mais do que isso, eu imploro.

— Tu poderias ser atendida, claro, se estivesses a falar com uma donzela no nível do meu irmão Arthur, ou com um infeliz como teu noivo, que parece ter se esquecido da própria masculinidade para agradar teu pai. Eu, ao contrário dos dois, não deixo oportunidades como esta passarem. Seria desprezível da minha parte permitir, por pura precipitação, escapar aquilo tudo que mais desejo.

— Não se--!

 

A jovem não teve a oportunidade de completar sua reprimenda. Em vez disso, a boca do parasita roubava a sua tão deliciosamente que não dava abertura a argumentos. Uma vez findo o contato, todo o seu rosto se corava e ganhava graça e contornos vivos. Um vampiro desconhecido descobria naquela sombria e severa criatura encantos que ela nem fazia ideia de que poderia ter. Aqueles braços que envolviam sua cintura se encaixavam perfeitamente em suas formas, isolando-a numa prisão que ela não se queixava de estar cativa. Angela era indefesa diante daquele daquele porte de Apolo, cuja cinzeladura de séculos conservava pétrea e eterna a lembrança de seus melhores anos. Aquele inimigo foi o único homem capaz de contrariá-la, violar todo o claustro que ela considerava proibido invadir. Ele tomou seus lábios, ele revelou seus segredos, ele arrebatou sua alma. E ela sequer era capaz de dizer o seu nome. Tal como ele previra.

Ao se ver livre dos lábios do vampiro, Angela quis deixar alguma exclamação para expressar o quão contrariada estava, mas qualquer coisa que dissesse não corresponderia à realidade de seus pensamentos. Por isso, mesmo sentindo que era derrubado o último tijolo do muro de sua resistência, ela não contrapôs ao avanço da ousada mão do inimigo, que se encaixava entre suas coxas e subia em direção à sua intimidade. Deitada com um monstro por cima, ela estava temerosa e submissa por sua vida exatamente como ele disse que qualquer mulher humana estaria. A essas alturas, ele já desatava os laços que separavam a castidade da vítima de suas mãos odiosas e lascivas.

 

— Consegues sentir? A tua preciosa moral...aqui.

 

No exato momento em que ela tentava se levantar para ir embora, ofendida, uma suave carícia despertou um turbilhão de sensações nas suas terminações mais sensíveis. Angela agarrou com força as mangas do gibão do vampiro, tentando em vão manter a expressão rígida. Seus olhos, teimosos, queriam fechar, e nisso perdiam o foco. Reviraram-se ao sentir um longo e grosso dedo adentrando sua carne, penetrando-a com deliciosa e calculada suavidade. A tortura física era seguida do escarnecimento moral:

 

— Rica donzela, ó flor de pureza…! E este rio caudaloso que inunda meus dedos? Ansiosa, faminta, quanto desejo eu posso ver…! Será que ainda esperas as bodas?

 

Ela decerto tentava dizer alguma coisa, mas nada do que era falado fazia sentido. Sua habilidade com as palavras só poderia agora ser comparada ao seu poder de governar o próprio corpo: em ambos ela falhava com maestria.

 

Entre beijos, contorções e arquejos, Angela era apresentada ao prazer orgástico que, se não era a sua mais nobre obra, pelo menos era a menos entediante. Seu corpo, recluso e desacostumado ao prazer, apropriou-se dele muito rapidamente. Com os dentes, o monstro desamarrava o corpete de seu vestido, expondo as duas auréolas rosadas de um busto virginal que há muito não via a luz. Suas formas pequeninas lembravam a da prima, mas sua pele era levemente mais corada e pintalgada de sardas, e os seios mais redondos e maduros. O conjunto era aprazível e gracioso. A filha do caçador sentiu a boca do inimigo ganhar aquela direção com avidez: primeiro, uma carícia com a língua contornava um a um de seus picos volumosos; em seguida, os lábios gulosos do pervertido avançavam como se intentassem engolir a ambos, movendo-se de forma tão intensa e dolorosa que chegavam a deixar marcas.

Mais de um dedo da fera a preenchia, e por mais que tentasse segurar os próprios instintos por altivez ou rubor, a atividade de lutar para manter a própria consciência e dignidade a extenuava. O rosto vermelho e suado denunciava todo seu esforço. A sua voz já não lhe pertencia mais, entonando uma ou outra sílaba ininteligível à medida que aquelas mãos experientes brincavam com o seu corpo. E, quanto mais reações arrancava dela, mais o inimigo a molestava e lhe cobria de carinhos aprisionantes e dizeres vergonhosos que a lembravam de sua virtude perdida.

— Saia, saia, senhor. Pare…! Ohhh, deixe-me ir. Deixe-me ir. Deixe-me ir…

Em vez de obedecê-la, aquele Seingalt cujo primeiro nome ela não sabia dizer, agarrou sua cabeça ruiva e a silenciou com beijos que ela nem fazia ideia de que existiam, na sua simplicidade de virgem. Depois, para o desespero particular da jovem caçadora, ele rumou para o seu pescoço, cobrindo-o de mordeduras de baixo potencial ofensivo. Ela protestou, pois ainda o temia. Ele, obedecendo-a, voltou a atacar um de seus seios com a mão, o outro com a boca. Quando a dor fazia aquela inocente perder o controle da própria voz, a fera a silenciava com beijos sufocantes.

Sem reagir, Angela ora tinha os membros eretos ao longo do corpo, ora ela cobria com eles alguma nudez involuntariamente revelada, sendo prontamente contestada pelo vampiro, que os colocava novamente esticados ou acima da cabeça da vítima, de modo a conservá-la indefesa e com tudo quanto pudesse expor à mostra. Sem deixar escapar um único centímetro de pele, o sanguessuga desceu do busto para o umbigo da garota, onde fez realmente um trabalho prodigioso, considerando o estrépito desequilibrado que aquele ato gerou. Por fim, impaciente, ele levantou uma grossa camada de saias e anáguas, deparando-se com uma úmida e avermelhada genitália feminina, cujo acesso total era levemente impedido por uma calçola rendada que ele há alguns minutos tinha arriado até os joelhos da dona.

— Que maçante este mau excesso de panos! – ele reclamou, ao arrancá-lo – Os corpos das mulheres nasceram para a nudez, para que toda sua beleza e ardor estejam sempre à mostra. Venha, aproxime-se! Quero suas coxas ao redor do meu rosto, como se o abraçassem!

— Que vilania esta! Meu pobre Vincent, o que verá ao abrir esta porta para me socorrer?
— Digo-lhe, e não sem mentir, que uma vez que alguém abrir esta porta, nos expondo aos malefícios do mundo externo, nada mais seremos além de inimigos mortais. Divirtamo-nos, portanto.

O vampiro dobrou os joelhos de Angela e encaixou as pernas dela por cima de seus ombros largos. A virgem apertava as mãos contra o peito, tentando obliterar qualquer indício de prazer que a língua daquele desconhecido pudesse lhe arrancar. Era só mais um duelo que ela perdia: conciliando movimentos labiais e invasões velozes com os dedos, o adversário conseguiu umidificá-la ao nível do absurdo. O espesso gozo serviu de lubrificante para outro dedo, que ele optou por ingressar na entrada vizinha. Angela não sabia mais o que fazer entre repelir ou conceder mais de seu corpo à visita daquele invasor. A situação era tão aviltante mas ao mesmo tempo o prazer era tão brutal que, mesmo sentindo-se saqueada, ela não conseguia reclamar nada do que lhe era tomado. Aquilo só poderia ser uma cilada desses seres demoníacos, feita sob medida para levá-la de pronto ao inferno! Como um ser humano poderia arrancar tanta dignidade de uma mulher, em questão de minutos?

Como se tentasse desprofetizar o que ele antes havia dito, Angela perguntou o inesperado:

— Qual o seu nome?

— Isto realmente importa? - perguntou de volta a besta, descartando as pernas da vítima de cima de si mesmo.

— Preciso punir o responsável por tudo o que houve. Isto não passará incólume! Meu pai se encarregará de ti. Meu noivo cortará tua cabeça, por honra do próprio nome. E eu cravarei uma estaca em teu coração.

— Ora, mulher, tu me conheces a face. Nada te darei, porque não dou meu nome às minhas presas. Agora, não erres em falar. Dê-me apenas teu corpo, e eu me encarregarei do resto.

— Mergulhas a minha alma em trevas e achas que nada tem a dever-me! És um malvado, uma praga pestilenta!

— Eu não estou em condições de devolver nada do que tomei. O máximo que posso fazer agora é acrescentar mais itens à minha pilhagem. E eu farei isto orgulhosamente – disse ele, antes de beijá-la novamente.

Apesar de tudo ser estranho e novo, o corpo de Angela já se afeiçoava à ideia de pertencer àquele vilão. Ela não sabia explicar em palavras o domínio absoluto daquela criatura exercia sobre ela, se tudo que houvera tinha como mérito a sedução ou algum feitiço, ela não fazia ideia e também achava que isso não fazia diferença. Quando ele abriu a frente da roupa e expôs fora sua vultosa masculinidade, tudo o que ela queria era senti-lo dentro dela. Mas um último fio de razão a fez colocar mais este obstáculo:

 

— Em dois meses, eu irei me casar. Não faça isso, por tudo o que acredita.

 

O gaiato riu com sarcasmo e disse, com pilhéria:

 

— A tudo, dá-se um jeito. Só não na morte.

 

Dito isto, virou-a de bruços e encaixou-se nela de modo a preservar sua virgindade.

 

— Este será o nosso segredo. Cada vez que a cópula se fizer desta maneira, tu te lembrarás de mim. Se minha vida se encerrar esta noite, não mais me importo.

A jovem oscilava entre caretas de dor e de prazer enquanto o inimigo acariciava sua vulva e preenchia seu reto em movimentos cada vez mais rápidos e ruidosos. Ainda que Angela guardasse um segredo em companhia de um inimigo, não se sentia suja, pelo contrário: via-se viva pela primeira vez, como se uma lâmpada interior tivesse sido tardiamente acesa. Tudo o que ela queria agora era se casar, para experimentar aquela sensação novamente. Porém, imaginou Vincent e seu corpo desprezível de caçador coberto de cicatrizes. Diferente do rosto belíssimo daquele ofensor, diferente daquele corpo vigoroso e daqueles cabelos longos e sedosos, Vincent nada tinha de afortunado em termos de estética, nada tinha de galante a dizer. Perto desse outro, era menos do que a sombra de um homem. Compará-los era um insulto à sua exigente natureza feminina, que pela primeira vez em mais de vinte anos abria os olhos para o que de melhor havia em oferta. Sua vaidade também o reclamava: ele preferia a ela, Angela, em vez de Helena! Ele a tinha escolhido, mesmo conhecendo a outra! Era tão formoso, tão másculo, e desejava a ela!

Os dois engatados ali, haviam até se esquecido de um detalhe: a porta aberta. Por isso, não deve causar estranhamento ao leitor que alguém tenha ali adentrado desavisadamente, pegando este inusitado casal em flagrante, em plena ação. Era o inocente Arthur Seingalt, que vinha comunicar o grave ferimento que sua irmã sofrera.

 

— Bertrand, Anna precisa de nossa ajuda! Queira me--

 

O garoto estreitou os olhos como se não conseguisse enxergar o que estava diante dele. Um rubor intenso tomou as fuças de Angela, que correu da posição dolorida em que se encontrava para o canto do quarto, a cobrir o rosto com as saias levantadas.

 

— Vincent, por Deus! - exclamou, acreditando-se flagrada.

— Mas o que?… - o amante de Angela nem sequer conseguia atinar o porquê de ela ter fugido, tão distraído que estava com a própria performance.

 

Então ele olhou para o irmão, e para o próprio membro ereto, e esbravejou com indignação:

 

— Bastardo filho de uma puta, o que queres?

 

— Anna foi ferida por uma foice forjada em prata! Não se recupera!

— Por que me aborreces com esta informação tardia, infeliz? É evidente que ela já se foi.

— C-como?

— Se o que tinhas na veste era o sangue dela...eis o que tens agora: cinzas.

 

Arthur, boquiaberto, olhou pela primeira vez para si mesmo. O peitoral de seu casaco tinha uma enormidade de cinzas, como se ele, por gaiatice, tivesse soprado uma lareira.

 

— Eu a deixei repousando em sua câmara...É impossível! Poucos minutos me separam de lá! Eu lhe prometi chamar ajuda! Ela murmurava de dor, mas decididamente existia!

— Pois agora não existe mais. E daí?

— Roubam-nos a eternidade, e tu nada temes? Minha cara irmã se foi! Mais dois além dela, até onde sei! - ele lamentou, com sua voz jovial pontuada pela dor.

— Se Anna não fosse tua irmã, apostaria que era tua amante! Arre!

 

Angela, que ajeitava as vestes molhadas de suor, acompanhava de longe essa discussão, rezando para que Arthur não lembrasse o irmão ou a si mesmo quem feriu de morte a tal de Anna que eles falavam. Olhando agora para o moço Arthur Seingalt, estava impressionada como parecia-lhe que ela o enxergava pela primeira vez; ainda que o menino ainda não tivesse tomado as feições de homem completo, era belíssimo, e de uma beleza muito mais rara e pródiga que a do seu irmão sedutor. Semanas antes, ela o via com um aviltoso corte de cabelo demasiado curto e irregular, como se o houvesse feito a faca. Os fios agora estavam mais longos e cobriam delicadamente a testa e ao redor das orelhas o contorno dos fios parecia planejado, como se ele tivesse de fato ido ao barbeiro em vez de fracassar em uma experiência doméstica. No corpo, o adolescente tinha uma veste nobre, cara, quase festiva. Não mais lembrava um fugitivo, não; mais parecia um príncipe.

Ao vê-lo, um pensamento amargo lhe tomou a mente: aquele demoninho virgem e casto era mais um que o acaso entregava nas mãos de Helena! Ele, que foi capturado por ela repetidamente, e que por ela cometeu o desleixo de deixar a própria irmã sem cobertura, ainda tinha saudade daquela leviana! Distraiu-se ao ouvir aquele nome! Que fascínio aquela torpe criatura poderia exercer nos homens! Logo ela, que nada tinha de inédito a oferecer! Aquela que já fizera cama a todos, como disse o próprio...Bertrand, esse era o seu nome. Despeitada e moralista, Angela era incapaz de atinar o que havia acabado de suceder a si mesma, acreditando ainda assim que valia mais do que a outra.

 

— Pensas tu que a morte daquela morcega insolente me abala a ponto de eu abandonar minha diversão para ir te socorrer em tuas lamúrias? - Bertrand prosseguiu suas reprimendas – Deixes as lágrimas às mulheres! Ou, se tiveres interesse, deleite-se junto a mim nas carnes desta deliciosa mulher! A morte! Que me importa a morte, se meus segundos finais forem entre estes seios? Veja como são macios, firmes e convidativos! E esta cintura graciosa, de rica cinzeladura! E as coxas roliças e brancas! Ó irmão, não sabes o que perdes!

 

Angela sabia pela lógica que o convite era ultrajante, mas aquele tratamento sem freios nem cerimônias fazia fervilhar em sua cabeça ideias antes impensáveis, que ela a custo repreendeu por toda a vida. Ah! Se pertencer a um daqueles irmãos era um paraíso de sensações e delícias, o que dizer de ser arrebatada nos braços de dois, simultaneamente? Quem era ela, frágil criatura, perante aquelas duas feras? Como resisti-las? Poderia gozar o quanto quisesse com um e com outro, e ainda assim se dizer vítima de um assalto. Só de pensar em desabotoar o sobretudo daquela criança de 16 anos, seu sangue fervia! Sim, ela queria a ele, o virgem, antes que Helena sonhasse em agarrar entre suas unhas perversas a castidade do monstrinho!

 

— Eu acabo de comunicar o falecimento de nossos irmãos! O senhor consegue compreender a gravidade disso? - Arthur inquiriu, exasperado – É o momento de descermos e lutarmos para salvar o pouco que restou de nossa família! Ou seremos todos exterminados!

— E qual teu plano, incompetente que és? - Bertrand, que já investia novamente contra Angela, desfazendo todas as amarrações que ela já tinha refeito nas próprias vestes, prosseguiu: - Que fizeste tu por esta batalha, quando buscamos uma mulher para ti e ela ficou no calabouço a tarde toda até escapar, e tu nada fizeste no sentido de desmoçar, despertando assim a totalidade de teus poderes?

 

Sem resposta, Arthur abanou a cabeça, inexato quanto ao que deveria dizer.

 

— E-eu…

— Mas, não faz mal. Por sorte, temos aqui outra mulher.

 

O vampiro mais jovem arregalou os olhos. Sua respiração tropegava de nervoso. Sabia que deveria ir embora o mais rápido que pudesse, mas estava decidido a arrastar o irmão dali.

 

— Não temos tempo – argumentou, finalmente.

— Não precisas de muito – disse o outro, rasgando a frente da roupa de Angela e empurrando-a na direção dele – Vá, caçadora dos Lee Rushs, mostre para que servem as mulheres de teu clã!

 

Angela cruzou as mãos na frente do busto, mas sem cobrir os seios de fato, e, ensejando um último ato de rubor, baixou a cabeça ornamentada de cachos alaranjados. De alguma forma, ela tinha se tornado consciente da própria sedução, e seu corpo agora lhe parecia tentador e muito atraente. Mas, em vez de investir nela como era seu plano, Arthur piscou repetidamente os olhos e virou o rosto, com timidez.

 

— Há! Há! Há! - riu-se Bertrand. - Agora, te anulas da peleja, não é? Veja, deixe que eu te ensine – o vampiro tomou a moça rejeitada pelo braço e, sentado na espreguiçadeira de antes, a colocou novamente sobre seu colo, agarrou sua cintura com um lado da mão e afastou suas pernas com a outra, de modo que Angela ficasse de frente para o seu irmão mais novo, visível e bem exposta. Como ela quisesse ocultar sua identidade baixando a fronte, Bertrand tomou seu braço e o colocou por trás de sua cabeça, fazendo o tórax nu da caçadora se projetar para a frente, sua cabeça se erguer. E foi por esse tórax que sua mão passeou mais uma vez antes de descer ao encontro de um irritante e pesado conjunto de anáguas, rendas, tecidos leves e grossos e passamanarias de teceduras diversas. Levantou-as, por fim, expondo tudo o que havia embaixo.

— Mulher, já disse antes: estás vestida demais – disse, contrariado, a lutar contra os tecidos que insistiam em cair e cobrir aquela região.

— Agora não, aqui não...basta! – ela se queixou de estar servindo de manequim àquela demonstração, embora em seu íntimo estivesse torcendo para ser forçada a continuar – Piedade!

Em vez de obedecê-la, o monstro luxurioso escancarou sua vulva de forma quase científica com os dedos e insistiu junto ao irmão:

— Veja, Arthur! Venha! Toque-a! Sinta com as próprias mãos as maravilhas e as delícias que as mulheres escondem sob suas saias!

— Você me enoja – disse o outro, colocando as mãos sobre a testa.

 

Virou-se para a porta e prometia ir embora, quando uma seta passou a centímetros de estragar seu belo rosto. Assustado, o jovem arregalou os olhos e recuou, postando-se ao lado da porta aberta. Disse, ofegando de pavor:

 

— Eles estão aqui!

 

Esta curta observação produziu em Angela a sensação que um cavalo tem quando leva uma chicotada para apear. Como uma ratazana apanhada em flagrante devorando uma saca de arroz, ela pulou rápida do colo do vampiro num espaço de tempo que não compreendeu dois segundos e, jogando-se atrás da espreguiçadeira onde os dois se prestavam a atos públicos de intimidade, disfarçou velozmente a frente da roupa rasgada, baixou a saia e tentou desembaraçar o cabelo, só não obtendo tanto sucesso neste último empreendimento. Antes disso, porém, sua perna engatou na coxa do vampiro enquanto ela engatinhava para se esconder, e Angela teve de puxar o pé duas vezes, só conseguindo alcançar o trajeto mencionado abandonando um dos lados do seu sapato para trás. Bertrand, um tanto quanto apreensivo, também tentou refazer a polidez dos costumes e das vestimentas, quando Vincent chutou a outra metade da porta de folha dupla, mirou uma besta em sua testa e atirou. Com uma velocidade sobre-humana, o vampiro tomou de cima de uma mesa de centro uma bandeja de prata e a utilizou como escudo. Karl Lee Rush descarregou sua arma de balas de prata tentando acertá-lo, mas também teve as balas inutilizadas pelo efeito da defesa inusitada que o monstro habilmente improvisou. Angela soluçou de medo, ao escutar os estrondos do conflito.

 

— Onde está Angela, seu macaco depravado? O que significa esta espada em riste? - Vincent se referia à parte íntima do vampiro, que ele não teve tempo de ocultar completamente antes de ser atacado.

 

Ao se dar conta disso, ele cuidou de corrigir esse problema, mas era um pouco tarde demais para fazer isso. Timidamente, Angela surgiu por trás da espreguiçadeira, quando acreditava já ter secado o suor do rosto e alinhado os fios despenteados de sua longa e espessa cabeleira ruiva. Vincent queria entender o que ela fazia ali. Uma desconfiança primária alfinetava sua consciência no sentido de dizer que algo ali estava muito errado.

 

— O que fizeste a ela? - depois, olhando para Arthut, urrou: - O que vocês fizeram a ela?!

— Nada que ela não quisesse – Bertrand deu de ombros, despreocupadamente.

— Não aconteceu nada – Angela mentiu com uma excelente desenvoltura – Vocês chegaram a tempo de evitar uma vilania terrível! – completou, tirando as mãos da frente do vestido rasgado, que ficou idêntico ao busto desamarrado do vestido de Helena.

 

Bertrand abriu um sorriso que era puro deboche, mas não a desmentiu. Arthur, sem nada dizer, ficou colado à parede como se preferisse estar invisível.

 

— Angela, você está bem? - Vincent avançou na direção da noiva, abraçando-a e beijando castamente sua testa, tudo com muito desespero e avidez.

— Sim – ela assentiu – Graças a vocês.

— Muuuuuito bem – Bertrand acrescentou.

 

Vincent colocou a noiva atrás de si mesmo. Ela teve uma certa dificuldade de obedecer seu comando, e a diferença de altura de suas pernas por causa da ausência de um sapato se fez perceber. Karl não se deu conta apenas isso, ele notou também que a calçola da filha estava no chão, sob o pé do inimigo, mas nada disse. Mentiu para si mesmo que aquilo podia ser parte do ataque que a filha tinha sofrido mas, raposa velha que era, achou que aquilo contava uma história além daquilo que Angela estava relatando. O sarcasmo do inimigo ajudava a reforçar suas suspeitas, e a aparência dele mais ainda.

 

— Eu vou te matar por tentar uma atrocidade contra a honra de minha noiva, seu maldito! - Vincent ameaçou.

— "Tentar"? - respondeu o outro, sem tirar o sorriso da cara.

 

Karl e Vincent começaram a atacar Bertrand em conjunto. Cada vez que Arthur se mexia para tentar pegar algo para defender o irmão e a si mesmo, os guerreiros atiravam algo naquela direção ou eram derrubados pelo vampiro. Angela, que era plenamente capacitada para ajudá-los, ficou apenas sentada na espreguiçadeira acolchoada onde ela e Bertrand consumaram sua traição. Estava encolhida e vexada como se tivesse sido de fato descoberta. De sangue quente e no meio de uma batalha, seu noivo não teve o tempo e o discernimento necessários para apurar os furos de sua versão, mas uma vez o cenário pacificado, ele certamente começaria a perguntar sobre algumas coisas. O psicológico resiliente e volúvel de Angela já calculava ambas as possibilidades: viver o resto da vida em companhia daquele jovem maravilhoso e seus convivas e perder os pais ou manter seu noivado entediante e ter o pai e demais parentes salvos? Se o vampiro fosse o vencedor daquele embate, ela não precisaria se justificar a ninguém, nem ao pai, nem ao futuro marido. Nada parecia uma oportunidade completa; em ambas as possibilidades, havia uma perda. De qualquer modo, a ela parecia que o predador tinha mais chances contra a dupla de caçadores, por isso não seria uma escolha inteligente tentar combatê-lo e perder. Ainda que os três juntos – ela, o noivo e o pai – se unissem contra Bertrand Seingalt, Arthur estava no caminho e poderia ajudar o irmão a qualquer momento. Em se tratando de feras do inferno, era melhor não subestimar nenhuma, ainda que o caçula da família de parasitas se tratasse de um meia-espécie.

Vez por outra, durante a batalha, Angela percebia os olhares aflitos do noivo machucado em sua direção. Ele lhe estranhava o comportamento, mas a caçadora já tinha uma resposta na ponta da língua: qualquer coisa, se eles vencessem e lhe perguntassem por que ela não os ajudou, Angela pretendia dizer que estava em choque e por isso não conseguiu combater. A desculpa era um total contrassenso ao seu histórico de batalhas e de sanguinariedade natural, mas ela não se importava mais com isso. Não se importava de ser nem parecer incoerente. Na verdade, em seu íntimo torcia pela aproximação daquele cenário onde ela não precisaria dar nenhum tipo de justificativa para ninguém.

Arthur em um certo momento tentou ajudar o irmão, mas foi violentamente empurrado e, enquanto limpava o sangue da nuca, que bateu na quina de uma mesa, escutou o irmão dizer:

 

— Ninguém precisa de você! Desapareça daqui, antes que eu mesmo enfie uma estaca no seu coração!

 

Conhecedor do irmão o suficiente para levar aquela ameaça a sério, o jovem meia-espécie recuou e, em passos que mais pareciam tropeços, ganhou o caminho da porta e saiu correndo.

(…)

Helena, na companhia dos amigos, arrastava-se em passos imprecisos em direção ao nível superior do castelo. Sean e Margarida já estavam entendendo qual era a dela, mas o rapaz foi o único que teve coragem de externar suas suspeitas:

 

— O que segues tu, afinal? Não sabes que todos estes ruídos resultam do combate em prol daquela tua má prima? Por que segues por este caminho, uma vez ciente de tudo o que aconteceu? Disseste que não pretendias ajudá-los; vejo que mentes.

— Sean – Margarida tentou evitar o confronto, puxando-o pela manga.

 

Ele nervosamente desfez o contato.

 

— Diga, Helena! Tua lealdade aos membros de tua família é assim tão grande que põe-nos em risco a nós, teus amigos? Por acaso não te lembras de como fomos largados para morrer?

 

Helena, agitada por ele, não respondia. Baixava a cabeça, vexada por ele perceber sua vontade secreta.

 

— Não a balance assim! Ela perderá sangue! - Margarida advertiu.

— Sei o que intentas, e, por amor a Margarida, tenho que abrir mão de toda gratidão que tenho por ti. Não a colocarei em risco novamente. Diante de tamanha decisão, uma imprudência deste nível não pode ser admitida.

— Sean...do que estás falando?

— Vamos embora, e deixar que ela siga o caminho que preferir.

— Sean, prometemos ajudá-la! Viemos aqui para isso! Ela conseguiu o antídoto que vai salvar minha vida! Sean!!

 

Ignorando Margarida, Sean a arrastou pelo braço. A garota estendia as mãos na direção de Helena, pedindo para ficar ao lado dela.

 

— Não importa o que ela decida! Devemos minha vida a ela! Pare! Solte-me! Eu odeio você! Se ela morrer, a culpa é sua!

 

Após muito caminhar, Sean olhou para trás, para verificar se sua tática de ameaçar deixar Helena sozinha tinha funcionado. Não tinha. Quando ele parou de arrastar Margarida e olhou para trás, viu que Helena não estava com eles e, muito provavelmente, foi mesmo em direção ao combate para ajudar a prima.

 

— Merda! O que ela tem na cabeça? Não era nada disso que eu queria! - ele explicou, para ninguém em específico.

 

Depois de bater nele até perder o fôlego, Margarida desfez o coque da cabeça de tanto puxar tufos de cabelo em desespero.

 

— Maldição! Maldição, olhe o que você fez! Eles irão matá-la!

— Eu imaginei que, ameaçando de ir embora, ela viria conosco!

— Você a deixou para trás! Temos que resgatá-la!

 

Sean apenas a seguiu, envergonhado para dizer qualquer coisa. Para começo de conversa, nem sabia em que direção ir.

 

— Eu não vou me perdoar se algo acontecer…- finalmente murmurou.

— Eu não vou TE perdoar se algo acontecer! - Margarida retrucou – Eu nunca dei a você poder nenhum para decidir sobre minha vida!

— Helenaaaaaaaaa! - ele começou a chamar.

— Você está louco? Se ficar gritando feito um idiota, seremos presas fáceis!

— Vamos por ali – sem saber, o ex-circense sugeriu um caminho totalmente oposto ao que Helena realmente tomou.

 

(…)

 

No quarto do vampiro, a luta continuava, agora sem Arthur presente para ajudá-lo. Com o esforço de Karl, Vincent e um outro aliado que chegou depois (este guerreiro não chegou a entrar em confronto com Arthur que, ao vê-lo, apenas fugiu), o vampiro finalmente veio ao chão, restando somente ao patriarca da família a obrigação de cravar no coração da fera uma estaca de madeira ou uma adaga de prata. Uma arma equivalente, que caiu durante o combate, havia acabado de ser repelida pelo inimigo. Ficou parada ao pé da porta, não indo além por causa da superfície macia do grande e ornamentado tapete que cobria todo o chão daquele cômodo. Angela ficou parada em seu canto, sem tomar partido nem de um lado, nem de outro. Nunca seu comportamento pareceu tão estranho aos familiares. Se os Lee Rush queriam comprovar de alguma forma que ela era outra, aquele era o momento. Agitados, todos se ocupavam em imobilizar o vampiro com itens benzidos e com a força do próprio corpo. Qualquer um que movesse um dedo, enfraqueceria aquela defesa e correria o risco de deixá-lo escapar. Karl ainda tinha uma arma descarregada no coldre e balas numa sacola de pano atada à cintura, mas sequer tinha a mobilidade para juntar os itens e pôr fim àquilo tudo.

— O que está esperando, Angela? Pegue a adaga que está ali junto à porta! - Vincent sugeriu.

 

Ela nem se mexia. Porém, sua apatia foi ofuscada pela presença de um outro elemento que havia acabado de adentrar naquele cômodo: Helena. Angela tratou de dizer o nome da prima para que qualquer responsabilidade fosse desviada dela. Funcionou.

 

— Helena, traga a adaga! - exigiam todos – Você está perto da porta! Traga-a!

 

Em algum estado catatônico que só poderia ser devido à perda de sangue, Helena não obedeceu aquele comando de pronto, atraindo a ira de todos:

 

— Por que ela não se mexe?!

 

Havia nela um dilema: porque Helena deveria, afinal, auxiliar aquelas pessoas? Aquele mesmo Karl que estava em cima do vampiro dependendo da ajuda dela para matá-lo era o mesmo que contaria a vitória aos hóspedes depois, excluindo qualquer traço de participação que ela tivesse. Ela, que doutrinou a si mesma para pensar que o bem coletivo valia mais do que suas vaidades individuais, não conseguia reconhecer nenhum senso de dever àquelas alturas. Esse era o exato momento em que ela poderia se rebelar e desobedecer, e causar impacto com sua rebeldia, pois um único movimento mal calculado deles poderia inverter todo aquele cenário de vitória.

Toda essa consciência se contradizia nesse único fato: ela tinha ido ali ao saber que a prima tinha sido carregada naquela direção. Seguira os ruídos do combate com a intenção de ajudá-los, ainda que seu corpo mal aguentasse dar um passo. Se ela estivesse preocupada com a própria segurança, seguiria os amigos em busca de uma rota de fuga, mas não era isso o que estava fazendo. Como se estivesse teleguiada, seu próprio corpo sabia dos passos que deveria priorizar.

Quando ela finalmente absorveu o comando e ia se abaixar para pegar a adaga, Angela abandonou o lugar onde estava encolhida e se antecipou a ela, apanhando o item. Bertrand disse coisas ininteligíveis, mas pelo pouco do que dava para entender, tentava insultar a ela e a Arthur simultaneamente. O resultado era um conjunto escasso de palavras sem sentido, limitadas pela prisão dos três homens que o seguravam. Ao perceber que o demônio tinha a intenção de delatar tudo o que acontecera minutos antes, Angela cravou na boca dele a adaga e largando-a por recomendação do pai, assistiu o patriarca dos Lee Rush encerrar a execução, apunhalando, mais uma vez com aquele item, o coração do monstro.

Todos se afastaram quando o corpo daquele Seingalt começou a se desfazer. Angela, abatida pela decisão que teve de tomar, viu-se lagrimar. Quando Vincent foi abraçá-la para comemorar a derrota do inimigo, ela o repeliu. Depois, para desviar dela o choque que aquela reação provocou em todos, ela simplesmente apontou para Helena e disse:

 

— Ela é irritante! Todos lhe pediram ajuda e ela simplesmente se fez de surda!

 

Às suas acusações, outras se somaram, inclusive partindo de Vincent, que costumava ser condescendente com a prima da noiva.

 

— Agindo desta forma, não há mais o que pensar – és aliada daqueles monstros! - acusou ele.

— Não… - Helena disse, abanando a cabeça de um lado para o outro – Eu só não entendia...o que estava acontecendo…

 

A voz dela deixava entrever sua exaustão, que era o possível motivo de seu quase estado de inconsciência, mas nem isso os compadeceu. Karl, que apalpou a cintura para dela retirar seu cinturão e agredir a sobrinha, acabou se lembrando de algo melhor: seu revólver. Rapidamente, ele catou algumas balas e a muniu com carga o suficiente para abater uma menina moribunda.

 

— Eu já vou morrer…o senhor não precisa fazer isso…!

— Insistes nessa história de que vieste nos ajudar? Sem mover um dedo para, de fato, fazer isso?

— Tio, não – Helena estendeu as mãos para frente, reação natural de quem se vê na mira de um revólver.

— Ela veio para cá logo que o sanguessuga mais novo partiu deste quarto – Angela alfinetou – Não é intrigante?

Karl deu um sorriso sinistro. Vincent e o outro guerreiro que os ajudou se entreolharam, concordando que esse fato era muito estranho.

 

— Eu vou mostrar a essa ingrata o que eu faço com traidores! - Karl anunciou, engatilhando a arma.

— NÃO!!! - Helena deu meia-volta e saiu correndo.

Um tiro de Karl acertou o batente da porta. Outro, a atingiu em cheio na parte de trás da coxa. Com uma velocidade que não poderia pertencer a alguém naquele estado, Helena disparou e só parou de correr quando viu que não tinha nenhum Lee Rush por perto. Mas, por parar de correr que se deu conta de que havia sido atingida.

 

— Ai…! - murmurou, lamentando que nem em seus instantes finais teria o reconhecimento da família.

Um desespero se apoderou dela, e uma vontade de viver até então desconhecida se apossou de seu espírito. Ela não queria morrer ali, naquelas circunstâncias absurdas e injustas. Sean estava certo sobre sua família. Por maior que fosse seu esforço, não havia como recuperar a confiança dos Lee Rush. E, considerando as circunstâncias anteriores e posteriores à sua chegada naquele castelo, não fazia sentido nenhum ela lutar por isso. Ela nunca seria tratada como Angela. Esse era o fato. Karl não a tinha espancado ou mandado ela dormir com um hóspede desta vez, ele havia atirado para matá-la. E antes mesmo disso, ela e seus amigos foram abandonados para servirem de iscas de carniçais enquanto a família fugia. Como Karl havia dito, quando a trancou para o lado de fora: sua família estava protegida naquela sala, e a família dele não a incluía.

Por maior e mais extrema que fosse a realidade que desabava sobre sua cabeça, Helena mentia para si mesma que a ira do tio poderia ser fruto de sua rebelião com os antídotos. Ou resultado de sua conduta promíscua, que sempre foi alvo de críticas. Ela queria se culpar, porque isso seria uma forma de não admitir para si mesma que se submeteu a anos de abuso físico e psicológico. A única família que ela tinha no mundo não poderia ser feita de pessoas tão crueis. Era desesperador para ela pensar que, saindo dali, não teria para onde voltar.

Helena se arrastou por mais alguns passos. O que ela faria? Procuraria Margarida e Sean? Não. Se ela se juntasse a eles, só os atrapalharia caso eles precisassem fugir. Margarida, com sua lealdade exacerbada, seria a maior prejudicada. “Margarida”, pensou Helena, “seria bom estar junto dela”. Era estranho e desgastante pensar que dois desconhecidos a trataram melhor do que todos os seus familiares juntos. Mas agora até Sean havia se cansado dela. Ela também não poderia se juntar a eles. Olhou para baixo e viu, um andar antes dela, a amiga e seu companheiro. Escondeu-se. Deu um passo no sentido de buscar outra direção, quando percebeu que sua saia estava presa em algo. Ela se preparou para puxá-la, mas o esforço a fez cair. Até ali, ela achava que a roupa tinha engatado em alguma farpa. Mas não. Seu vestido estava preso ao pé de um homem que ela conhecia muito bem: Julius Martinelli.

 

— Boa noite, Srta. Lee Rush.

 

(…)

 

Atraídos pelos ruídos do combate, mais membros da família Lee Rush se achegaram ao quarto onde Angela fora encontrada. Vincent tentava convencer Karl Lee Rush a abaixar a arma, agora que Helena tinha escapado.

— O que houve aqui? - Bernard perguntou, esbaforido, pelo esforço de muito correr – Escutei tiros.

— O mestre Lee Rush atirou em Helena, por suspeitar que ela tem acordo com o inimigo.

— Mas que disparate é esse? Helena está ferida de morte! Me parece que…

— Tu vieste lá de fora, não é? - Karl o interrompeu e apontou mais uma vez a arma para a cabeça do filho.

— Mestre – Vincent, com dificuldade, tentou erguer a mão na direção dele. Desistiu ao se lembrar do ferimento a flecha que tinha no ombro – O que tem de mais Bernard ter vindo lá de fora?

— Vocês, que demoraram a entrar, podem ter tido contato com os vampiros – Karl respondeu, com uma expressão alucinada, referindo-se a Bernard e alguns aliados que entraram junto com ele.

— Mas que maluquice é essa, meu pai? - Bernard deu de ombros e avançou um passo, ao que Karl segurou a arma de balas de prata com mais firmeza, apontando-a para ele. O jovem sorriu, sem levar aquilo a sério, mesmo sabendo que uma cena idêntica tinha acontecido há pouco menos de uma hora.

— Para trás! Todos aqui são inimigos! Todos! Todos vocês!

 

Angela estremeceu de medo ao constatar que, em meio a esse turbilhão de acusações, não demoraria a ela ser um alvo, senão o alvo maior, por estar a sós com o vampiro Seingalt minutos antes. Karl Lee Rush não estava em seu juízo perfeito, e cada segundo se tornava pior do que o anterior no sentido de mostrar que ele estava sendo completa, ou quase completamente, guiado pela demência.

 

— Você! - o líder dos Lee Rush apontou a arma na direção de Vincent – Verifique se Angela foi mordida.

— Pai! - ela protestou, lembrando de seu pescoço maculado pelo toque excitante dos lábios do inimigo morto – Eu estou bem! Ainda sou eu!

 

Vincent deu de ombros e meneou a cabeça, expressando de maneira não verbal o quanto achava que aquele cuidado era desnecessário.

 

— Verifique o pescoço dela! É uma ordem!

 

Vendo que ele falava sério mesmo e que correria o risco de machucar alguém se não fosse obedecido, Vincent fingiu checar o pescoço da noiva.

 

— Nada.

— Não viste bem!

— Veja o senhor mesmo – o rapaz respondeu, afetando uma despreocupação que não lhe pertencia. Apontou a noiva com a mão: - Intacta.

 

O pavor demonstrado por Angela não minimizava sua intuição de que algo não contado por ela tinha acontecido, mas, para protegê-la, ele se mantinha impassível. Quando Karl deu um passo na direção da filha, ela correu para trás do noivo e começou a chorar.

 

— Papai, por que quer me machucar? Entregue a arma ao Vincent – sugeriu – O senhor não está bem!

— O que fizeste com aquele sanguessuga, sua vadia? - ele olhava diretamente para a calçola dela aos pés da espreguiçadeira.

— Eu já disse, vocês conseguiram impedir que o pior acontecesse! - a moça insistiu.

— Sr. Lee Rush, isso é inadmissível! Não vou permitir que o senhor ofenda Angela! É sua filha, e o senhor a conhece! - Vincent tomou seu partido.

— Meu pai, pela graça de Deus – Bernard também a defendeu – O senhor está sendo vítima de algum delírio, alguma ilusão? Dê-me a arma, é mais seguro.

— PARA TRÁS, TRAIDORES! Não entregarei a arma a ninguém! E agradeçam que eu não acabe com cada um de vocês, agora mesmo, que se voltaram contra mim para defender aqueles que têm parte com o inimigo!

— Papai! - Angela tentou botar para fora algumas lágrimas, mas justamente naquele momento sua capacidade interpretativa a traiu.

— Eu sei o que vi de ti! - Karl acusou, o que a pôs imediatamente em silêncio – Eu sei o que te vi fazer, vagabunda!

— Do que ele está falando? - Bernard perguntou de Vincent, que não soube dar resposta.

 

Um dos guerreiros que os acompanhavam tomou o braço de Angela e se colocou em sua frente, para que ela pudesse escapar pela porta em segurança.

 

— Pai, vamos em frente – Bernard insistiu, após se aproximar dele com muita cautela e guiá-lo pelos ombros – Vamos sair daqui, pela nossa segurança é melhor que todos nós fiquemos em espaços abertos.

 

Vincent, muito desconfiado do que o velho disse, seguiu em frente silencioso e reflexivo. Ele, que abriu a porta no mesmo segundo em que Angela pulava para trás da espreguiçadeira, também teve certeza de ter visto algo, mas sua cabeça trabalhava arduamente para elaborar teorias que a inocentassem. Como se adivinhasse o que ele estava pensando, sua noiva evitava encará-lo. De repente, todas as atenções se voltaram para o líder da família, que do nada atirou em um aliado:

 

— Não me toque, bastardo! Pensas que eu não sei que tu tens acordo com os vampiros? Tu colocaste aqueles carniçais para matar a mim e a meus hóspedes, não foi? Mas eu sou mais esperto. Eu sou mais inteligente do que todos vocês, que pensam em me trair! Eu não tenho como saber quem é vampiro aqui – disse, sob o olhar atento e chocado de todos – Mas este era um traidor, eu sinto! E, enquanto eu não souber quem é vampiro aqui, vou passar a bala em quem se atrever a me tocar ou aparecer na minha frente!

— Eu não vou ficar aqui! Eu vou embora! – um dos homens que acompanhavam Bernard quando ele entrou no quarto que era de Bertrand exclamou.

Bernard moveu as mãos em reflexo para a frente, tentando desviar o amigo da trajetória da bala do pai. Não teve tempo. Um tiro certeiro acertou o olho da vítima que, desequilibrada pela dor, deu com o corpo no parapeito de uma sacada e em seguida emborcou de uma altura de sete ou oito metros, espatifando o crânio no fim do trajeto.

 

— Vampiro! Era um deles! Você viu? Ele virou pó com o tiro de uma bala de prata! Agora falta matar o líder deles, aquele mau amigo Louis! Looooooooooouuuiiiis, seu canalha covarde! Onde está que não dá as caras por aqui?

Antes que alguém conseguisse impedir, Karl avançou disparatado pelas câmaras obscuras do castelo. Temerosos do perigo, mas, antes de tudo, temerosos dele, seus aliados e parentes não ousaram segui-lo à mesma velocidade. Bernard, recentemente ameaçado, foi um dos últimos a seguir em frente, só perdendo para Angela, que não queria ver o pai nem pintado. Independente do luto que carregasse com a morte do patriarca da família, ela agora torcia secretamente para que uma das feras o dilacerasse em combate. Não lhe ocorria mais que, sem um líder no clã, os Lee Rushs estariam mais vulneráveis. Ela só queria não ter que prestar contas das declarações acusatórias do pai para ninguém.

 

— Venha, Angela! Seu pai não está em seu são juízo. Deve estar sendo vítima de algum delírio! É uma das habilidades dos monstros, afinal, não? Ele não tem culpa do que está fazendo, temos de ajudá-lo! - Vincent a convidou a avançar, tomando-a pela mão, porque ela não se mexia.

Sua fala era mecânica, Angela percebeu que o noivo não falava espontaneamente. Ela calculou que aquele comportamento se devia a ele estar suspeitando dela e estar tentando mudar o foco de suas ideias. E era bem isso mesmo o que estava acontecendo. Vincent estava muito desconfiado, mas agora não tinha tempo para colocar as cartas na mesa. Aliás, seu interesse demasiado no mestre tinha como um dos motivos querer saber o que o seu futuro sogro estava querendo dizer. Teria ele visto algo que o próprio Vincent não viu?

 

Karl percorreu uma longa metragem até perceber que estava sozinho. Tudo estava escuro à sua volta, pois quem andava com tochas e lanternas eram os homens que acompanhavam seu filho mais velho.

— Para onde foram todos? Onde estão vocês? - perguntou, sem resposta.

 

O castelo era tão amplo e tão fácil de se perder que tudo o que ele conseguia ouvir era o eco de sua própria voz. Aquela algazarra de passos, advertências, arrulhos de casais, chacoalhar de armas, esvoaçar de morcegos, tudo aquilo estava muito distante dele, como se ele tivesse chegado a uma misteriosa zona segura esquecida pelos vampiros. Experiente que era, ele sabia que aquilo, na verdade, era um motivo para ficar duplamente preocupado. E essa preocupação o fez primeiro, apostar em gritos autoritários de que seus aliados voltassem logo para perto dele. Depois, berros absolutamente descompostos de quem estava desesperado para valer.

 

— Onde estão vocês? Eu estou aqui! Vão me deixar sozinho? - gargalhando, refletiu melhor: - É, pensando bem, significa que eu corri para onde nenhum deles pode me encontrar! Nenhum deles! Eu não sei quem dentre eles é aliado ou inimigo! Nem a minha filha…nem ela. Ela que não me ouse negar! Eu a vi...sentada por cima de um deles como aquela puta da prima dela! O pobre Vincent podia estar focado em acertar aquele outro morcego que escapou! Mas eu, que estava atrás dele, vi tudo!...Que descarada, que desgosto…! E agora, o que devo fazer? O que devo dizer?

 

Um ruído atrás dele o fez rapidamente interromper o monólogo de lamúrias. Suas mãos ágeis e precisas agarravam o revólver de balas de prata, sacando-o para todos os lados.

 

— Quem está aí? Quem está aí? Fale, ou eu vou atirar!

 

Caminhando cautelosamente pelo cômodo de modo a não ser pego de surpresa por qualquer coisa que surgisse das quatro paredes e até do teto, Karl apertava com força as mãos ao redor da única arma que poderia defendê-lo. À meia luz, todos os apetrechos que tinha em volta da cintura ou cruzando o peito eram inúteis, se ele não via o inimigo claramente.

 

— Está com medo? Claro que está...eu tenho comigo uma arma que pode matá-lo! É lógico que você não vai aparecer, não é, seu verme?

— Falando sozinho, Karl?

 

Karl Lee Rush voltou-se para aquele cuja voz conhecia muito bem. Era seu antigo amigo, rival e companheiro de caça Louis Martinelli. A forma inaudível com que o inimigo chegou o deixou alarmado. Seus olhos acesos em vermelho, mais ainda.

 

— Então, eles estavam falando sério? Vocês estavam mesmo aqui?

— Vim aqui como mercador, ou caçador de raridades, como preferir. É bom revê-lo. Pensei que todos na hospedaria estivessem mortos.

— Então, foi você mesmo que infestou a hospedaria de mortos-vivos? Ainda tem a coragem de admitir que foi você que nos isolou com a intenção de que fôssemos mortos naquele lugar?

— Compreenda, Karl, que me interessava muito testar meus novos poderes. Você não irá me derrotar desta vez, nunca mais tomará nada de mim. Nem caçadas, nem mulheres. Tenho tudo o que preciso para nunca mais fraquejar.

 

Martinelli executou um movimento com a mão, e então Lee Rush percebeu que não conseguia mais se mexer. Pior: começava a flutuar do chão.

 

— Tu nunca conseguiste esquecer, não é mesmo? - sua voz estremecia diante da possibilidade de se ver completamente indefeso perante o outro.

— Minha pobre noiva se deslumbrou contigo. Ela, amante da força como era, não ficaria ao lado de alguém fraco como eu. Me preteriu para tê-lo ao lado. Ah! O escândalo...eu me lembro bem de tudo o que diziam! A todos, eu disse que conservava antigo interesse em Sabina, aquela que se tornaria a mãe dos meus filhos, como tu o sabes! Tudo para não admitir a humilhação! Mas Emma…a desfeita que tu e ela me fizeram, isso eu nunca consegui perdoar! Nunca consegui esquecer!

— Louis…

— Quieto, eu ainda não terminei! Eu tive que me tornar um desses monstros que tanto combatíamos para me vingar de você, para vê-lo prostrado como agora… Para conseguir aquilo que deveria me pertencer!! Para vê-lo onde você está agora! Imóvel diante de mim e tremendo de medo! Incapaz! Vulnerável! Pronto para ser abatido!

— Quando você disse que ia se afastar de nós para procurar seu próprio caminho, eu nunca pensei que… Eu nunca imaginei que houvesse qualquer ressentimento entre nós! Pensei que a rivalidade que tínhamos se baseava na disputa pelas caças, e nada mais! Que todo esse passado tivesse sido superado!

— Por que eu não me ressentiria? Porque nunca dei a entender que não superei a perda de Emma? Achas tu que haveria alguma possibilidade de eu me esquecer de uma mulher como Emma e me contentar com alguém como Sabina? Sabina nada mais foi do que o instrumento de que eu necessitava para passar meu nome adiante, aumentar meu clã, fazer dos Martinelli uma temida dinastia! Meus filhos, uns vivos, a maioria hoje mortos, foram memoráveis caçadores! Acabaram com os Levithans, abateram os Galleghers, seguraram em suas mãos a cabeça do último Moriarty e exterminarão da face da terra todos os que restaram desta família Seingalt ainda esta noite!

— Então, por que insistes nesse assunto, se os teus foram grandes e deram bons resultados para ti?

— Porque nenhum de meus filhos, por mais valiosos que fossem, eram filhos de Emma! Tu a perdeste antes que ela pudesse ser minha! É isso o que eu nunca pude perdoar! Não espere de mim a menor piedade! Eu acabarei contigo aqui e agora! Hoje enterrarei a ti e ao teu nome!

 

(…)

 

— Parece que estás um pouco ferida, não é? - Julius, com um sorriso no rosto, cercou uma acuada Helena que, sem mais espaço para recuar, recostou-se à parede – Mas que coisa surpreendente, que vitalidade! Eu não esperava vê-la com vida! Não com todo aquele exército que deixei para persegui-los…! O que lhe pareceu o bilhete assinado com teu nome? Gostou da homenagem?

— Maldito…! O recado vinha para o meu tio, com certeza intentavas causar uma intriga…! - Helena mostrava-se cada vez mais arfante pelo esforço contínuo e pela dor atroz dos ferimentos antigos e os mais recentemente adquiridos – Querias que ele pensasse que eu tinha acordo com os Martinellis!...ou com os Seingalts!

 

Julius Martinelli riu ao constatar que sua pequena travessura teve o efeito desejado.

 

— Apenas uma galhofa qualquer. Não se aborreça, minha querida.

— Ele quase me matou! Deixou-me amarrada à disposição dos carniçais, acusou-me de traição!

— Querida Helena, lamento por ti. Mas, conhecendo a descrição que meu pai fez de teu tio, os atos dele seriam por este motivo ou qualquer outro. Nunca importaste para nenhum deles; eis os fatos. Neste episódio, apenas te revelaste como és para eles: uma isca, um aperitivo com que os inimigos perdem tempo enquanto os que realmente importam na família dele vão embora em segurança! É dura, mas é a realidade. Estou aqui para mudar isto.

— Do...do que o senhor está falando?

— Apesar de nossos últimos dissabores, e de nossas famílias serem evidentemente inimigas, não vou negar: eu me afeiçoei a ti. És atraente; tens a carne fresca, o corpo diminuto. Uma ninfa personificada, materializada diante dos meus olhos! Isto apraz meus sentidos e enrijece a minha masculinidade.

 

Ao ouvir isso, todo o corpo de Helena estremeceu de medo e de repulsa.

 

— Creio que tu já faças uma ideia do que irei propor, mas serei claro para que não reste dúvidas: quero que sejas minha. Quero que sejas minha companheira nesta nova fase de minha existência.

 

Sem querer ouvi-lo, a jovem virou o rosto. Ele voltou a face dela para si, obrigando-a a encará-lo outra vez.

 

— Agora, tu sabes bem, vives tuas últimas horas, quiçá últimos minutos. Mas eu posso reverter esse cenário.

 

Helena compreendeu que ele falava de transformá-la em vampira.

 

— Nunca! Eu nunca farei isso!…

— Oh! Minha doce Helena… Por que te afastas? Não estavas tu, há não mais do que duas ou três luas, enlaçando-me com tuas pernas?

— Afasta-te de mim! Não me responsabilizo por tua segurança...se insistires nessa sandice...

— Que ameaça representas? - ele pôs-se novamente a rir – Veja como eu posso dominá-la.

 

A jovem foi içada do chão em um segundo. Seus membros, débeis e fartos da dor e do esforço, mal se moviam. Aproveitando-se de sua incapacidade de reagir, Julius recostou a caçadora em uma coluna, pressionando sua pélvis entre as coxas abertas da vítima, agora suspensa por ele pelos quadris.

 

— Não era você que se rendia às minhas carícias? O que a faz tão resistente hoje?

— O senhor me tomou à força...Solte-me! Dói tanto!

— Calada – ele disse abrupto, perdendo de repente o seu tom bajulador – Não a suporto. Tu só me serves de uma maneira. Junte-se a mim, não me invente objeções. Apenas sirva-me.

 

Helena escolheu não reagir. Teve uma ideia. Não lutou quando ele a colocou de volta ao chão para levantar sua saia e terminar de remover sua peça íntima. Seu corpo a traiu um momento, perdendo a sustentação e caindo para a frente. Martinelli a empurrou de encontro à coluna com uma mão enquanto a outra desatava os cordões de sua própria ceroula. Livre, tomou a menina mais uma vez pelos quadris. Realizou seu intento com uma rapidez que só não foi maior do que sua brutalidade. A única reação possível à vítima foi cravar nele as unhas e morder os próprios lábios para não dar ao agressor o prazer de sabê-la sofrendo. A dor era muito maior do que ela podia calcular, porque a violência agora se somava ao fato de ela estar ferida de morte.

 

— Você inteira cheira a sangue…isso só a deixa mais sedutora.

 

Helena não conseguia respondê-lo. Apenas sua respiração entrecortada dava pistas do seu esforço e sofrimento. Mas ela ainda estava disposta a não desistir do seu plano.

 

— Não precisa se conter. Grite! É tudo o que pode fazer. Nenhum deles está aqui para ajudá-la.

Ignorando toda a dor, a caçadora sobressaiu à vítima indefesa, e Helena empunhou uma arma para, com ela, atacar a carótida do ofensor. Mas, com a velocidade comprometida após a vultosa perda de sangue, tudo o que ela conseguiu foi deixar essa peça de seu arsenal cair, despertando a ira imediata do inimigo:

 

— Sua vadia!

 

Helena foi covardemente golpeada no rosto. Ia cair, mas Martinelli não permitiu, agarrando seus cabelos e aí sim lançando-a de encontro ao chão. Ela caiu sentada, ao que o vilão, insatisfeito, investiu mais uma vez contra ela repetindo o mesmo processo, puxando-a pelos cabelos, mas a esta sua crueldade foi adicionado mais um item: uma joelhada no ventre. Grossos fios de sangue escorreram dos lábios de Helena, e sua roupa, até ali tingida de um sangue pálido, tornou-se rubra. Suas pernas trêmulas molharam-se inteiras com o conteúdo que ela trazia na bexiga. Desta vez ela caiu, e sem esperanças de tornar a levantar.

 

(…)

 

Karl, prostrado após uma longa tortura ministrada pelo inimigo, tinha o corpo coberto de cortes semelhantes a chicotadas. Louis Martinelli os produzia com um reles movimento de mão, que causava uma agitação misteriosa e agressiva do ar em volta. O efeito era preciso, profundo e doloroso. Após feri-lo à exaustão, o ser vampirizado o largou no chão num baque surdo. Karl gemeu por alguma avaria no braço; que fosse, ele não teria tempo de conferi-la.

 

— Reconheça que não podes fazer nada contra mim com meus poderes atuais! Tu, que me aviltaste ao andar de braços dados com aquela traidora que desposaste! Que chamaste os filhos dela de teus! Tu, que zombaste de minha força ao longo dos anos, o que pensas disto?

 

O líder dos Lee Rushs pensava no que poderia falar para prolongar sua existência até a chegada de um aliado. Contar sobre o amor que tivera por sua falecida esposa e sobre o quanto os dois se apaixonaram genuinamente só enfureceria o ex-amigo. Propor que os dois caçassem juntos como nos velhos tempos e esquecessem daquilo seria patético, uma vez que a discrepância de poder entre os dois era evidente e o passado onde ele roubou a vida do amigo não poderia ser apagado. E Karl estava velho, fraco e ferido, enquanto Louis movimentava-se impunemente como um garoto de 15 anos.

 

— O que acontece com minhas pernas? Não consigo senti-las … - o caçador rosnava, enquanto tentava febrilmente se mexer.

— Karl… eu posso fazer o que eu quiser com você. Não adianta tentar nada. Tu estás perdido.

 

Naquele momento, Karl percebeu algo estranho na voz do ex-aliado. Ela ecoava pelo ambiente como se não estivesse exatamente naquele ponto, como se sua voz viesse de uma caixa amplificada, e não de um inimigo diante dele. Então, percebeu que deveria estar sendo vítima de uma ilusão como a que arrebatou sua sobrinha Helena mais cedo.

 

— Ah! Eu já entendi… É uma ilusão…! O que pensavas? Que me tomaria por estes truques baratos? Que me derrotaria assim?

 

Ao se dar conta do que estava acontecendo, imediatamente as amarras imaginárias que prendiam o caçador foram desfeitas, e então ele se viu livre.

 

— Não há possibilidade de tu me venceres, nem nesta vida e nem na próxima!

 

Dito isto, Karl se armou de um dos últimos punhais de madeira que atava à cintura e ao redor das coxas e o lançou próximo ao coração do inimigo. Este material apareceu mesmo na base do deux ex machina: se não fosse ele estar tão enrascado e ter tão persistentemente tentado se livrar da prisão que o outro lhe infligiu, este item jamais teria espetado sua carne a ponto de ele percebê-lo e dele recordar.

 

— Tu, Louis, e tua família que vendeu a honra de caçador ao inimigo...vocês sempre serão perdedores condenados a serem derrotados pela minha família!

— Como pode ser? - balbuciou o outro, afogando-se no próprio sangue.

— Eu percebi… Logo que eu me deparei contigo, teus olhos brilhavam ardentemente…! A luz deles foi se dissipando, e então percebi a farsa de teus poderes! O tempo da poção feita de sangue de vampiro! Ele está se encerrando!

— Não pode ser! Garantiram-me muito mais tempo!

— Mentiram a ti! Ou usaste demasiado teus poderes, não o sei! Também, não me interessa! Agora, é a minha vez de dar a si a lição de que necessitas!

— Espere! Dê-me um tempo! Uma última chance… ! Eu admito que perdi de ti outra vez, Karl. Que posso eu fazer? Por isso Emma o amou muito mais do que a mim. Tua força é incomparável. Não é qualquer um que escaparia assim de um inimigo que usa a ilusão dos Seingalts!

 

Karl não conseguia acreditar que aquele que há não mais do que um minuto torturava-o com tamanha crueza era agora essa figura degradada e aduladora que se ajoelhava aos seus pés pedindo clemência.

— Tu és meu valioso amigo! Sabe? Estive muito irado, quis apenas assustá-lo! Diante da possibilidade de fazê-lo morto, eu certamente não conseguiria, tão preciosas que são as lembranças de nossa mocidade! Tu te lembras, não lembras? Como éramos? Como tu sempre me livravas de minhas trapalhadas? Oh, meu caro amigo Karl! Que saudade senti de estar diante de ti!

— Solte-me, diabos! - Karl puxou a capa do alcance das mãos do outro – Do que pretendes me convencer? De que estavas dominado por uma força maior e não tinhas livre arbítrio sobre teus atos? Por acaso sou eu uma mocinha imprudente a cair nas garras de um conquistador? A quem pensas enganar, seu bode velho? Um minuto a mais e eu estaria morto! Veja os vergões em minha pele! Os danos que me causaste não foram ilusão; intentavas ferir-me de fato! Demônio!

— Não, que é isso…! Karl, meu estimado Karl! O Seingalts estão aí! Eles são numerosos e são fortes! Aqueles malditos morcegos estão sequestrando nossas crianças e meninas! Precisamos fazer algo, não concorda? Hein? Juntos…proteger a metrópole.

— Tu te aliaste a eles em troca do maldito poder que tinhas há pouco!

— Não! Não é isso! Comprei um frasco de um colecionador de antiguidades e o diluí em vinho, servindo-o entre meus guerreiros! É verdade!…

 

Mas Lee Rush apelou à memória e não se deixou enganar:

 

— Tu mesmo o confessaste, mentiroso! Eu não confio em ninguém, e isso inclui você!

 

Esticando o braço armado com o revólver de bala de pratas, Karl deu um tiro certeiro no olho esquerdo do ex-aliado. Este ainda lhe disse, munido de um fio restante de vida:

 

— Karl, existe algo que eu ainda não revelei e que tu precisas saber… Julius é muito mais forte do que eu!

 

(…)

 

Helena sentiu um intervalo de tempo entre sua queda e o momento presente. Calculou que talvez tivesse desfalecido. Despertou com um sapato masculino pressionando sua cabeça. A cara sinistra e sádica de seu algoz tinha um sorriso que só poderia ser qualificado como macabro. Daquele ângulo, ele parecia vinte anos mais velho. As sombras faziam sulcos horrorosos em seu rosto. Na claridade matutina, Julius Martinelli poderia até ser confundido com um homem garboso, mas ali, na escuridão daquela passagem, assemelhava-se a um demônio ensandecido e decrépito.

 

— Olá, Helena! Que estratégia batida, fingir-se de morta… Sei que não morreste; teu corpo ainda pulsa deliciosamente.

 

Ela se apoiou nos cotovelos. Queria levantar, mas o ferimento no ventre e agora o da perna consumiam suas forças. A cada vez que ela respirava, sentia-se afogar com o próprio sangue. Mas, ao enxugar o nariz, percebeu que isso era resultado de um golpe que ela havia levado no rosto. Sua boca, igualmente inundada de sangue, também estava assim porque ela mordeu sem querer a parte interna das bochechas na ocasião em que foi golpeada – um recurso para não dar ao inimigo o gosto de vê-la gritando.

Martinelli não permitiu que ela se levantasse. Um pisão em suas costas a fez cair com o queixo no chão, além de machucar seus braços, que escorregaram sem aviso e ficaram muito ralados.

 

— Eu não esperei que acordasse para que tentasse escapar, minha querida. Estou aqui apenas para esperar sua decisão acerca da proposta que fiz. A morte te acerca e temos pouco tempo. Se demorar muito, pode não resistir à transformação.

 

Helena arfava com a rapidez de quem sentia que os pulmões já falhavam; o sangue que tomava suas narinas provavelmente geraria um edema nos próximos minutos. A ideia de morte lhe causava terror, ainda mais naquela época em que alguém com o seu comportamento tinha como certa a danação eterna. Ela sempre falava de morrer para se encontrar com Richard, mas agora que a hipótese batia-lhe à porta, ela sentia que havia mais a ser explorado, mais a ser dito, a ser vivido. Precisou chegar àquelas condições para perceber que Margarida estava certa: a caçadora não queria morrer ali, nunca quis se colocar numa situação onde sua vida fosse tão vilmente desperdiçada. Por outro lado, sabia que ali era a morada dele, daquele jovem que a abraçou e lhe disse coisas ternas sem nenhum interesse a mais além de sua companhia. Morrer sem vê-lo incomodava-a, como se ela tivesse deixado de cumprir uma promessa feita para si mesma. Ela de fato precisava estar ali.

Mas, como tudo na visão de Helena perdia a glória e inundava-se em trevas com muita facilidade, característica comum aos pessimistas do seu tipo, ela avaliou a situação pela pior ótica: aquele doce rapaz que a iludira com palavras melosas e todos seus parentes eram aliados de alguém como Julius Martinelli. Isso a encheu de uma raiva revigorante que a fez levantar, e então ela decidiu que iria sair daquela situação, custasse o que custasse. Sob aplausos sarcásticos e assobios do inimigo, ela começou a ganhar os degraus de uma escada. Olhava para trás estranhando a facilidade do empreendimento; Martinelli não a seguia. Mas ele logo deu a resposta para este inesperado proceder:

 

— Dar-te-ei um minuto, e nada mais, para que consigas fugir! Que graça haveria em tê-la debaixo dos meus sapatos sem que me pudesses resistir? Mas, atenção: se eu a alcançar, tu serás minha, e eu não admitirei contestação. Dou-te esta nova chance; considere-a como a um mimo de alguém que lhe tem bastante apreço.

 

Ao ouvir essas palavras, Helena disparou na corrida. Mal conseguiu capengar cinco passos e caiu. Suas mãos tocaram os sapatos reluzentes de alguém. Ao levantar a cabeça, ela se deparou com ninguém menos do que Arthur Seingalt.

 


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