Vampires will never hurt you escrita por manasama677


Capítulo 7
Capítulo 7 - We're hanging out with corpses




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Pelo que ouvi dizer, muito antes de eu chegar a esta hospedaria onde meus parentes estão abrigados, eles já eram rivais dos Seingalts e a perseguição aos seus maiores inimigos trouxe todos eles para esta cidade. A obsessão de acabar com aquela família guiou os passos dos Lee Rush por muitos anos. Agora temos este cenário: eu, Helena Lee Rush, servirei de elo entre nossa família e o clã dos Martinellis.

 

Soube nesta semana de algo inusitado: meu tio e o pai de Julius Martinelli eram inimigos na juventude. Martinelli, a exemplo de seu filho, tomou o mérito de algumas caçadas que pertenceram ao meu tio, gerando uma grave discórdia entre as famílias. As baixas de ambos os lados ao longo dos anos os reaproximou. Essa aliança deu aos Lee Rush a confiança necessária para voltar a agir.

 

— Armas de fogo.

— Constam.

— Balas de prata.

— Constam.

— Estacas de madeira.

— Constam.

— Água benta.

— Consta.

— Material para fazer fogo.

— Consta.

— Crucifixos.

— Constam.

— Antídoto.

— Consta.

— Pólvora.

— Consta.

— Alho...nós precisamos mesmo disso?

— Qualquer lenda é válida agora.

 

É claro que todo esse vigor renovado tinha um preço.

 

— Hora de dormir, meu amor.

 

Afinal, considerando capacidade e quantidade, os Martinellis são infinitamente superiores a nós, os Lee Rush...Antes da morte de Richard, ele era o nome máximo entre caçadores. Apesar de tanto talento e força, ele só matava os adversários nos últimos casos, e esse foi o seu maior erro. Isso fez com que ele adquirisse muitas cicatrizes antes de morrer definitivamente.

 

— Ei, tome cuidado com isso! Está me machucando!

 

Ele sempre reclamava da minha falta de cautela para fazer curativos.

 

Richard era um cavalheiro. Ele respeitava meus desejos e angústias. Concordou em não me possuir antes do matrimônio, sequer me forçou um único beijo. Hoje percebo o quanto minha autopreservação foi uma estupidez.

 

— Se nos unirmos aos Martinellis, seremos numerosos como antes - eu não parava de escutar o dia todo esses comentários empolgados vindos de todos os lados. Uma forma dentre tantas outras para me forçar outra vez um destino que me contrariava.

 

— Só assim poderemos vingar a morte de Richard...

 

Oh, Richard!...Se eu fosse forte como você, nunca precisaria passar por isso...! Se eu fosse forte, acabaria com ele com minhas própria mãos! Os beijos que não entreguei a você, estou dando a ele agora. E eu não consigo mensurar o quanto você era superior a ele...

 

Eu só queria morrer.

 

(...)

 

Enquanto isso, Arthur Seingalt pedia para falar com um de seus irmãos mais velhos.

 

— Vince, agi fielmente de acordo com o plano. Por isso mesmo, encontro-me na liberdade de fazer um pedido.

 

O outro voltou-se para ele com um ar entediado, mas não fez nenhuma objeção maior.

 

— Ora, meu irmão...vejo que estás perfeito. Quando chegaste aqui, mal conseguia se por de pé. Tivemos trabalho para consertar o que os caçadores fizeram em ti. As meninas, especialmente, reclamaram bastante.

 

Arthur baixou os olhos e recordou com amargor seu último contato com os humanos. Helena assumindo compromisso com o sucessor dos Martinellis diante de seus olhos...

 

— Arthur - o irmão mais velho caminhou até ele e repousou a mão em seu ombro - Espero que tudo quanto tenha acontecido, tenha preparado o seu espírito para o que precisa ser feito.

 

Embaraçado por isso contrariar tudo o que ele pretendia dizer, o jovem meio vampiro fica em silêncio.

 

— Você não parece muito animado.

— Como eu disse, tenho um pedido a lhe fazer.

— É claro, meu irmão. Tudo o que quiser.

— Eu...

— Diga.

— Quando aquela isca caçadora dos Lee Rush vier acompanhando os outros, quero ter com ela pessoalmente. Eu me encarregarei de sua execução.

— Bravo! - aplaudiu Vince - Recuperaste os brios? Isto é algo maravilhoso de se saber. Eu poderia propor um brinde, se nossas taças estivessem cheias. Pois não estão! E sabes tu por que não estão? Porque nos faltam homens, mulheres, crianças, qualquer presa fácil que cruze os limites de nossas propriedades. Ah, meu irmão...se tu soubesses a ânsia que tenho de tornar a ver nossa bela metrópole...! Que angústia ficar aqui, guardado neste mausoléu!

— Aventurar-se em meio aos humanos nunca será uma opção segura enquanto estivermos à mercê de caçadores. Restaram apenas esses dois clãs que não podemos ignorar, os Lee Rush e os Martinellis. É caso de combatê-los para que a liberdade volte a sorrir para nós, como outrora! - garantiu outro de seus irmãos, que achegou-se à conversa praticamente sem ser notado.

— Ouvi um boato e espero não estar certo a respeito disso, meu caro Arthur - Vince continuou.

— Que boato seria?

— De que a caçadora a qual te referes causou em ti algum tipo de afeição.

— É falso – Arthur respondeu, hesitante.

— Fico feliz em ouvir isso. Não faz ideia de como eu me irritaria se todas as tuas feridas se devessem a ter caído na cilada de uma isca caçadora.

— Eles me atacaram em conjunto – Arthur disse de olhos baixos.

— Só para desencargo de consciência, por que desejas eliminá-la pessoalmente? Logo tu, que hesitas em caçar mulheres?

— Eu penso que preciso reverter esta minha fraqueza, irmão.

— Muito bom, muito me agrada ouvi-lo. Creio que, agora sim, estejas a falar como um de nós.

Uma coisa que Arthur Seingalt esqueceu de explicar a seu irmão mais velho era que não tinha planos de matar Helena. Mas talvez isso fosse um mistério para ele próprio.

 

(...)

 

Dias se passaram, e os Lee Rush ainda não tinham chegado a um consenso com os Martinellis sobre as posições de cada guerreiro na ação de caça aos Seingalts. Os Lee Rush reclamavam da excessiva presunção de liderança da família aliada; os Martinellis queixavam-se de sua teimosia suicida e planos repletos de falhas. Toda essa tola disputa de egos, na verdade, fez com que o clã de vampiros ficasse duas vezes mais precavido para a chegada dos caçadores. A batalha prometia ser árdua.

 

Ultimamente, todos andavam fora de casa. Os afazeres domésticos caíram todos nos ombros de Helena e Angela. Esta última, especialmente, estava irada por ter que cuidar de hóspedes voluntariosos, vulgares e grosseiros enquanto a parte divertida ficava com os homens. Por mais delicada que ela pudesse parecer, Angela adorava lutar. Matar e ferir, para ela, tinha um efeito terapêutico. Se não o fazia com maior frequência, era por falta de oportunidade, e porque os homens da família a protegiam muito mais do que ela precisava durante os combates. Com Helena tomando conta da cozinha, restou a ela fazer a lavagem semanal do pátio principal da estância. Já estava exasperada por ter derrubado um balde d'água por acidente, o que a obrigaria a buscar outro, quando começou a escutar batidas na porta.

 

— Helena! - bradou, com imensa descompostura - A porta!

 

Mas Helena estava ocupada demais para atender. E a cozinha era demasiado distante para que ela conseguisse chegar ali antes da prima. Angela se lembrou, então, de que o pai tinha avisado que um ambulante iria cobrar iguarias que ele fiou no mês passado. Rapidamente, enxugou as mãos no avental e foi até uma caixinha abaixo dos pés de uma estátua, pegar no fundo falso da escultura de santo o dinheiro para pagar o credor. Abriu a porta tentando refazer a expressão endurecida pela má vontade. De início, não viu ninguém, olhou para os dois lados e nada. Quando ia fechando a porta de volta, conseguiu vislumbrar um menino cuja presença não havia se dado conta antes.

A criança estendeu a palma da mão como se pedisse uma moeda pela entrega do recado. Angela bufou e colocou as mãos na cintura.

— Ora! Poderiam estar aqui Tio Karl, os Martinellis, Anthony, um hóspede! Os circenses, Bernard, Helena! Mas de quem cobram o recado que nem sei se é de meu interesse? De mim, que nada tenho a entregar! Era só o que me faltava - ela prosseguiu resmungando, olhando para trás de si, na intenção de ver se alguém se aproximava para pagar por aquela cobrança.

Mas sua ira se transformou em pavor quando o menino de recado levantou o rosto, deixando escorregar o capuz que cobria sua cabeça. Sem acreditar no que estava vendo, Angela percebeu que o garotinho tinha os dois olhos arrancados. Sua reação foi imediata: ela soltou um grito estridente.

— O que houve? Tem algo errado no meu rosto? - perguntou a criança, com uma voz morta e inexpressiva, de quem apenas lê um bilhete, sem entonação vívida - Eu trouxe um recado dos Seingalts.

Rapidamente, Angela fechou a porta, gritando mais e mais vezes para aquele menino sair dali. A criança bateu e bateu nas paredes, como se buscasse uma abertura por onde entrar. Quando sua mão golpeou uma janela, pedaços de vidro caíram para dentro. Angela correu para dentro, agarrando a vassoura com que esfregava o pátio, para se defender.

— Vá embora! Vá embora daquiiiiiiiiiii!!!

— Eu tenho um recado. Eu tenho um recado - repetia a criança morta.

— Não é possível que isso esteja acontecendo! Afinal...o que é isso? - Angela, que ouviu falar largamente das técnicas de ilusão dos vampiros Seingalt, tentou retornar a si. Mas, diferente do que ela esperava, o cenário que se apresentava diante dela ainda era o mesmo.

— Eu tenho uma mensagem...deixe-me entregá-la - a criança encaixou o rosto na parte quebrada do vidro da janela.

Angela, apavorada, tomou um vaso e atirou naquela direção.

— Nããããão! - ela gritava, ensandecida.

Helena veio correndo para ver o que estava acontecendo, e encontrou sua prima numa posição inacreditável: encolhida, com os olhos molhados, os cabelos desgrenhados e o rosto vermelho de tanto chorar. Contemplou o cenário: a janela quebrada, os cacos de vaso no chão, o sangue da criança que cortou sua mão ao bater no vidro. Mas não havia mais nem sinal do menino ali quando Helena deu as caras.

— O que aconteceu? - a caçadora tentou fazer com que a prima se levantasse, mas Angela, de maneira hostil, golpeou sua mão e continuou no mesmo lugar.

A passos lentos, Helena foi até a janela, e por pouco algo que foi arremessado de fora para dentro não atingiu o seu rosto. Era uma pedra com um pedaço de papel atado com uma corda. Contrariando a prima, que gritou histericamente para ela não tocar naquilo, a jovem quis verificar o que tinha ali.

— É um recado. Tem o nome do tio Karl escrito.

— A sua roupa...está aberta - Angela não pôde deixar de observar - O que fazias antes de vir para cá, suja?

— Os laços se soltaram porque vim até aqui correndo - Helena se explicou, desatando o nó que lacrava o recado - Se cair, não grite mais dessa forma. Você me assustou!

— E...eu vi...era sangue!

— Do que estás falando? Da janela? Algum vândalo a quebrou? Viste de quem se tratava?

— Na carta...!

Quando Helena olhou para o papel que tinha em mãos, foi que se deu conta de que Angela se referia à correspondência. No centro da página, seu nome estava escrito com sangue. Desesperada, ela correu para a entrada, abrindo a porta com ligeireza. O que seria aquilo? Obra de Arthur Seingalt? Por que ele estava fazendo isso? Desejava que eles todos a descobrissem?

 

— O que está escrito no papel?

Helena o recostou junto ao peito e disse:

— N-nada...apenas um borrão de sangue...uma ameaça, talvez.

Angela, muito astuta, percebeu que a isca caçadora escondia algo e foi averiguar. Um curto combate onde as duas brigaram pela posse do papel foi encerrado com Angela cravando as unhas nas mãos de Helena, machucando-a até a jovem abri-la, e depois punindo-a com um tapa seguido de um soco que a fez cair no chão, assoando o nariz machucado.

— O que significa isso? É o teu nome! O que tens tu com eles?

— Não o sei...! - respondeu Helena, aos prantos. Mas argumentou com rápida inteligência, por questão de vida ou morte: - Eles talvez saibam que eu fui a caçadora que esteve com o patriarca dos Seingalts antes de ele ser morto pelo Richard...

— Mentirosa!

— Nada tenho com eles, creias! Ainda sou eu, sou humana como tu!

— Nada tens, nem mesmo com o meio vampiro?

— Não!! Essa ameaça é dirigida a mim, não vês?!

— Se estás falando a verdade, isto só quer dizer uma coisa... - anunciou Angela, com sua expressão mais diabólica - A guerra começou. E, se não chegarmos a eles, eles virão até nós...

(...)

— E o que vamos fazer? Mudar de hospedaria? - perguntou um dos mercenários contratados para compor o bando de caçadores. Um hóspede que o acompanhava acenou positivamente à sua pergunta.

— Se eles já sabem quem nós somos e onde estamos, isso não seria prudente. Eles nos seguiriam e teríamos mais vítimas em potencial. Mas entenderemos se vocês quiserem partir. Ninguém é obrigado a permanecer. Fica quem quiser ficar.

— Não podemos ficar trancados aqui, papai! - Angela protestou à afirmação de Karl Lee Rush - Temos que fazer alguma coisa, e rápido, ou os cidadãos serão mortos em retaliação!

— Por isso que falei " fica quem quiser". Quem não estiver preparado para ficar e enfrentar os monstros, pode se mandar daqui. Já somos o alvo, não temos mais nada a perder. Mas qualquer Martinelli ou Lee Rush que puser os pés para fora desta hospedaria deve ter em mente uma coisa: que as pessoas que os abrigarem em qualquer parte da cidade poderão acabar mortas. E isso será de sua inteira responsabilidade.

— Desculpem-nos - disse o dono do circo - Nós somos apenas artistas, não podemos fazer nada contra monstros, não temos nenhuma habilidade guerreira...

— Eu vou ficar - Margarida se posicionou corajosamente.

— Como é? - o seu suposto pai a agarrou violentamente pelo braço.

— Que diferença faz eu morrer aqui ou por tuas mãos, vagarosamente?

— Senhores, sem agressões, por favor - Bernard intrometeu-se, colocando Margarida atrás de si.

O pai adotivo de Margarida rapidamente desfez a mão que erguia para agredir a garota. Bernard o encarou como uma fera, até que o velho tomou assento no outro lado da sala, impotente diante do tamanho daquele gigante.

— Obrigada - Margarida, comovida, tentou ocultar as lágrimas. Pela primeira vez, escapava da violência daquele homem, que nem Sean, seu melhor amigo, conseguia evitar.

— Eu também ficarei - Sean posicionou-se ao lado da amiga.

— Ora, seu!! - o dono do circo conseguiu ficar ainda mais irritado, mas Bernard protegeu os dois como uma parede.

Aquilo que Helena disse sobre o Sean tomou a mente de Margarida de supetão.

— Está tudo bem, Sean. Você não precisa vir comigo.

— Se é verdade que esta noite será a última de todos que estiverem aqui, eu quero estar ao seu lado.

— Então, que vão aos diabos, os dois! - o dono do circo saiu batendo a porta.

 

— Estão errados! - Bernard se intrometeu - Só será a última noite de nós todos se não lutarmos! Vamos combatê-los com todos os recursos possíveis para que a vitória seja nossa!

— Bernard... - Angela suspirou.

— Porém, se ficarmos aqui, estaremos fazendo o jogo deles. Em nenhum momento, foi dito que eles nos atacariam diretamente. E se, por exemplo, eles colocarem fogo na estalagem?

Karl, em silêncio, contraiu o rosto a essa possibilidade. Vincent continuou o raciocínio do futuro cunhado:

— É verdade, não temos nenhuma garantia quanto ao seu modo de ataque. E aqui fica longe demais do esconderijo deles. E se a batalha se estendesse até o amanhecer? Eles não se arriscariam a vir aqui. Não acho que nos atacarão vindo para a cidade. A não ser que eles mandem ghouls para cá.

— O que faremos, então?

— Podemos nos dividir - o velho líder dos Martinellis sugeriu - Seria melhor que nós fôssemos até o castelo enquanto os Lee Rush ficavam aqui, tomando conta da hospedaria.

— Como se atreve?! Por acaso o senhor está subestimando nossas habilidades?

— Não se trata disso, companheiro Karl. Deixaremos nossos homens aqui. Iremos como espiões. Só quero que três pessoas me acompanhem: Dieter, Robin e você, Julius.

Helena empurrou o punho fechado contra a boca, para evitar dizer uma besteira. O homem só tinha escolhido gente de seu próprio clã para acompanhá-lo!

— Eu? - Julius Martinelli fingiu surpresa.

Vendo o semblante desolado de Helena, o caçador achou que por acaso sua ausência a magoava:

— Ficará bem aqui sem mim?

— Sim, senhor. Não se preocupe comigo.

Enquanto os caçadores ganhavam distância, Helena só conseguia torcer para que Julius Martinelli morresse naquela batalha.

— Vamos - um homem do clã chamava o outro.

— Helena, ajude-me a fechar a porta - Julius pediu.

A moça tomou na mão uma grande tramela para isolar todos Lee Rush do lado de dentro. Enquanto encaixava-a no suporte, pensava consigo mesma que todo aquele medo generalizado não a atingia; a morte não a assustava mais, pois ela não tinha mais motivos para viver. Causava estranheza a ela que sua família, tão passivamente, aceitasse a determinação dos Martinellis. Para um caçador, isso era uma coisa humilhante.

— Helena, saia de perto da porta; é perigoso - Bernard a alertou.

Vagarosamente, ela se dirigiu ao porão, apática. Sentada diante das correntes e da cadeira que ora aprisionaram Arthur Seingalt, Helena não conseguia parar de pensar que agora aquele rapaz que lhe jurou devoção e lealdade estava agora no meio dos outros, coordenando ataques covardes onde crianças eram usadas brutalmente como objetos. Apreensiva com o novo rumo que as coisas estavam tomando, começou a pensar no significado daquele bilhete onde seu nome estava escrito.

Angela, como sempre buscando um motivo para persegui-la, apontou seu distanciamento e sugeriu que Vincent e Bernard a seguissem e vigiassem. Lembrou os dois sobre o bilhete que continha o nome da prima, coisa que eles já tinha apreciado na sala, na companhia de todos.

— Ela esconde algo, estou certa disso! Não tenho como provar ainda, mas tenho certeza de que aquela perdida arquiteta alguma traição! Essa não me engana!

Os dois, de ponta de pé, seguiram Helena conforme o recomendado, porque àquelas alturas não podiam se dar o luxo de ignorar qualquer especulação. Quando desceram a escada para o porão, depararam-se com uma cena inusitada: ajoelhada diante das correntes que pendiam do teto, Helena chamava repetidamente o nome de Arthur Seingalt, o meio-vampiro.

 

— Arthur! Arthur! Por que você está sangrando?

— Helena! O que está fazendo?

Num estado que só poderiam classificar como delírio, a menina agarrava as correntes que cativaram o meio-vampiro e parecia tentar subi-las, como uma pessoa ajoelhada que agarra as vestes de outra em busca de amparo, socorro ou satisfação.

— É uma alucinação - Angela concluiu.

— Helena! - Bernard deu um passo para a frente, mas foi impedido de avançar pela irmã.

— E se houver alguém com ela? Para estar alucinando, não deve estar sozinha! Ela se encontra com ele, eu sabia!

— Deixe de tonterias, mulher! Não há ninguém com Helena! - bradou seu irmão mais velho.

— Eu também tive uma alucinação mais cedo! Eles querem nos confundir e nos enlouquecer!

— Helena! - Bernard tomou a moça pelo braço e fez um esforço no intuito de levantá-la.

 

A cabeça dela caiu para a frente, e seu corpo, do mesmo modo, não apresentava firmeza nem sustentação. Desfez-se num segundo em direção ao chão.

 

— O que houve? Ela desmaiou? - Vincent se colocou de prontidão caso Bernard precisasse de ajuda para carregar a menina.

— Parece que sim. Ajude-me aqui.

Helena foi carregada até a esteira que usava ora para dormir, ora para receber homens.

— Deixe-me examiná-la - Bernard tomou o pulso de Helena e, sem senti-lo, colocou a mão no pescoço da jovem - Ela está com febre! Helena! Consegue me ouvir?

— ....Arthur...!

— Arthur?

— Só pode ser o nome do meio-vampiro com quem ela se encontrava às escondidas!

— Impossível! - Bernard e Vincent disseram em coro.

— Nossa! Por que ninguém me escuta nesta casa, mesmo quando eu estou certa?!

De repente, Helena se levantou em meio a muita agitação.

— Pelas horas que são, o que houve? - Vincent perguntou com a mão no coração, pois ela o tinha assustado.

Helena levou a mão às costas, onde reclamava uma chaga. Bernard, que não era comprometido, prontificou-se a afastar seus cabelos e verificar do que se tratava. Angela não deixou de expressar um comentário moralista sobre o ato. Do ombro à cintura de Helena, havia um conjunto de arranhões semelhantes a garras.

— Pelo visto, não é apenas a mente das pessoas que eles sabem manipular. Será que é isto que querem dizer?

— Machucou muito? - Vincent se aproximou com curiosidade. Angela o puxou pelo braço, para que ele não visse as costas nuas de sua prima.

Helena olhava em volta como se buscasse alguém.

— Ele estava aqui - balbuciava - Era tão real...!

— O quê? Do que está falando?

Foi então que ela se deu conta de que disse coisas que não deveria falar.

— N-nada. Eu estou bem.

— Por que eles fazem isso conosco e não aparecem de uma vez? - Bernard levantou-se e vociferou, indignado. Não sabia ao certo para onde olhar e proferir sua acusação, então rogou aos céus como se tivesse algum vilão pregado no teto. - Todas as outras vezes, lidamos com inimigos que podíamos ver, tocar. O que acontece agora? É esse o poder dos Seingalts contra o qual ninguém consegue lutar? Quando foi que nós ficamos tão indefesos? Isso é irritante.

— O que pretendem com isso? - Vincent acompanhou o futuro cunhado nas lamentações - Que covardia!

— Inferno! Eu não vou perder minha tranquilidade por causa desses infelizes! - Angela assegurou.

 

(...)

— Eu não tenho nada contra a ideia de morrer jovem e bela - Margarida disse despreocupadamente ao seu amigo Sean, enquanto fitava sua figura espalhafatosa e petulante diante de um espelho de mão.

— Margarida, por favor - ele a censurou, ao observar o pânico generalizado em volta.

Helena, que acabava de expor suas costas para cada um dos curiosos da hospedaria, voltava a se acomodar em uma espreguiçadeira no canto da sala, vexada da própria fraqueza. Sentia-se febril como de fato estava, e as compressas não melhoravam sua disposição.

— A hospedaria é grande, o que não falta são aposentos para esses visitantes indesejados se esconderem. Eles devem estar pelas proximidades, dado o que têm feito. Contudo, onde estarão escondidos? Aqui ou acolá? - Margarida continuou tagarelando, adorando ver no rosto dos demais o assombro. Estava gostando de ser o centro das atenções.

Vincent recolheu Angela junto a seu peito, pois a noiva não conseguia esconder o seu pavor à hipótese levantada pela garota do circo. O silêncio de todos foi cortado pela rudeza de Bernard, que atravessou a sala de uma ponta a outra para agarrar o braço de Margarida e repreendê-la:

— Escuta aqui, sua ninfetinha desfrutável! Se você continuar falando alguma coisa, eu juro que vou arrancar seu queixo fora!

Dito isto, ele desfez o contato com o membro delicado dela em um empurrão, e Margarida quase caiu sentada em cima de Helena.

— Aih...! - Ela gemeu, ao cair em uma pose desconfortável por cima das unhas compridas - É um poldro, o senhor! Machucaste-me a mão, demônio!

Sean tentou afagá-la, mas ela o empurrou de perto dela.

— Nem para enfrentá-lo a espada! Nada tens de um homem! Estrupício!

— Tu te metes em contenda e desejas que eu interceda por ti? Pois espere sentada, porque em pé cansa!

— Estou mesmo bem servida de homens, vejam só!

— Calem a boca e me deixem em paz! - Karl Lee Rush trovejou - Ou boto todos para fora!

— Eu acredito... - Helena começou, e naquele silêncio tumular sua voz ganhou destaque. O tio fez um som para assentir que ela poderia continuar seu raciocínio - ...que os vampiros estão tentando nos manipular para que tenhamos medo de sair daqui. É uma ideia lógica que qualquer um teria, ao contemplar o cenário diante de nós. Nos mantendo presos e temerosos, poderão livremente atacar qualquer pessoa na cidade.

— É plausível - Lee Rush concordou.

— Eu não pretendo mais ficar aqui escondida, esperando eles decidirem o que farão conosco. Os Martinellis já partiram há um bom tempo e corremos o risco de que eles não tornem a vir. Nesse caso, eu vou até o castelo dos Seingalts, e quem fizer gosto na ideia, que me acompanhe!

— Helena...Reconheço sua coragem, mas suas habilidades são limitadas - disse o seu tio, em um tom contemplativo, apático, que não lhe pertencia usualmente. Sua reação natural diante de ideias tolas era a ira.

Por fim, ele disse:

— Eu vou com você.

 

 

— Pai!! - gritou Angela, em protesto - Isso é um absurdo! Ela delira! Não vê que Helena está febril? Perdeu a capacidade de raciocinar com clareza! É isso! Se não ficar aqui, vai acabar morrendo e você - ela apontou para a prima - será a única responsável!

— Se eles estão atrás de nós, morreremos da mesma maneira. E Margarida está certa: eles podem estar aqui.

— Helena... - Vincent comoveu-se com sua coragem. No fundo, confessava a si mesmo que não estava encorajado a irromper nesta batalha final.

— Eu não pretendo ficar presa aqui, assustada com cada barulho, amanhecendo em claro enquanto sei que lá fora pode ter gente contando com a nossa proteção! Somos caçadores ou ratos?

Margarida discretamente se aproximou de Helena e perguntou:

— Mas...e ele?

Helena inspirou fundo e respondeu:

— Se ele levanta armas contra nós, é só mais um inimigo a ser combatido.

A caçadora lembrou do que ela mesma disse a Margarida tempos antes, que Arthur não lhe inspirava medo algum. Por que justamente ele estava fazendo aquilo com ela?

— Helena - disse uma voz que ela mal conseguiu assimilar de quem se tratava, tamanha a sua descrença - Você está certa. Nós vamos com você. Afinal, somos os Lee Rush, a grande família de caçadores de vampiros.

— Obrigada, Angela - Helena respondeu com hesitação - Eu não esperava por isso - gesticulou exageradamente. Estava desconcertada, até cética com o gesto da prima.

— Vamos todos juntos ao castelo dos Seingalt - um dos homens de Martinelli deu um passo à frente.

Sem desconfiar de nada, Karl Lee Rush se posicionou de forma a convidar os demais à ação. Queria conduzir o grupo, quando Helena estendeu seu braço entre os Lee Rush, os membros remanescentes do circo que optaram por ficar com eles, os mercenários contratados pela família e os homens de Martinelli.

 

— Um momento - ela impediu os últimos. - Não julgo conveniente que venham conosco.

— Do que está falando? - Angela, que já tinha se conformado com a ideia da batalha, ficou indignada com sua postura.

— Não estou entendendo, Helena. Que descortês - Vincent disse, a segurar a noiva para impedir que ela avançasse na direção da prima e a cobrisse de bofetes.

— Eu sabia que não seria uma escolha completamente errada da minha parte aceitar o envolvimento com o mestre dos senhores.

— Do que está falando? Somos os homens de Louis Martinelli!

— Sim, estou ciente. Por um acaso, testemunhei com meus próprios olhos uma batalha entre Arthur Seingalt, o meio-vampiro, e Julius Martinelli, sucessor deste, e, em condições normais, não há como um ser humano comum confrontar um meio-vampiro, não seria páreo...

— O que está insinuando? - eles pareceram se aborrecer.

— ...a não ser que o infeliz - prosseguiu Helena - também fosse um vampiro, ou tivesse os poderes de um de alguma forma.

Um dos homens de Martinelli começou a rir, atraindo a atenção de todos.

— Vejo que a mocinha é observadora. Mas saber detalhes acerca de nossos poderes não a torna capaz de nos vencer!

Os Lee Rush imediatamente se posicionaram em base de luta. Os inimigos estavam entre eles!

— Eles foram transformados em vampiros? - Bernard não conseguia acompanhar a conversa.

— Agora que sabe sobre nós, não temos escolha...este lugar será a sepultura dos Lee Rush!

O guerreiro rapidamente avançou na direção de Helena, mas como ela estava desconfiada de sua essência, armou-se de imediato, ferindo-o no ventre.

— Muito bem, Helena! - comemorou Karl, que tomou a frente, escondendo-a atrás de si como se tivesse sido o responsável por aquela ação.

 

— Não consigo entender! - Karl Lee Rush lamentava - Como isso pode estar acontecendo? Como Louis e seus herdeiros conseguiram, durante todos esses dias, nos enganar? Eles vieram aqui com o dia claro! Como isto pode ser possível?!

— Isso não importa agora! - Helena, armada com a foice que feriu o guerreiro anterior, lutava agora contra um segundo homem.

— Por que Louis fez isso, se quando éramos jovens, combatíamos os vampiros em parceria? Agora, ele e sua família se tornaram nossos adversários tanto quanto os Seingalts!

Helena acabava de derrubar mais um dos homens dos Martinellis. Ela percebeu que eles não eram exatamente vampiros, pela facilidade com que os derrotava. Talvez fossem ghouls ou algo semelhante. Ou quem sabe humanos controlados. Mas a força deles era desproporcional à de um ser humano, então essa hipótese estava descartada.

— Não é o momento certo para fazer essas divagações, meu pai! - Bernard atacou com um grande facão um homem que ia saltando por cima do velho Karl. - Preste atenção na batalha! Na batalha! Não é hora para cenas - vamos lutar!!

— Bernard! - Angela chamou, apreensiva, ao ver o irmão avançar com tudo em cima de um dos guerreiros adversários.

— Ele está certo! - Vincent foi ajudar o cunhado - As mulheres, entrem todas no quarto!

— Mas...!

Helena quis protestar, mas foi empurrada por Margarida e a prima.

— Não se meta nisso! Você principalmente, precisa se poupar!

Bernard lutava a sério com um dos guerreiros Martinelli, e Helena acabou perdendo a oportunidade de atravessar para o outro lado. O primo viu uma oportunidade que ela sequer tinha se dado conta e pessoalmente a empurrou para a entrada do quarto que seria seu esconderijo.

— Entra!

Em vez disso, ela foi agarrada pelos cabelos pelo homem que lutava com Bernard.

— Arrrgh! Não! - ela gritou, ao tentar se desvencilhar.

Por fim o socou, abandonando os modos de moça.

— Bastardo! - xingou, ao ver nas mãos dele um punhado de seus longos e cacheados cabelos negros.

— Desgraçada! - trovejou a criatura.

O monstro não se conformou com o ataque e quis avançar, mas Bernard o deteve com um golpe da foice que tomou das mãos de Helena. Um guerreiro que tinha acabado de ser derrotado pela jovem tornava a levantar e pretendia atacar Bernard pelas costas, mas corajosamente Angela correu para fora do quarto e, num salto inacreditável para seus pesados trajes femininos, ela o acertou com um chute no rosto.

Bernard percebeu que, independente do quanto ele, Karl e Vincent atacassem aqueles três ou quatro homens do grupo de Martinelli, eles ressurgiam sempre do zero, como imortais. Não valia a pena continuar lutando, só restava a eles fugir. Por isso, quando ele viu sua intrépida irmã avançar em um dos homens com clara intenção de lutar, ainda que sem chances, não se permitiu fazer outra coisa: tomou-a pela cintura e saiu correndo com ela nos braços.

— E Helena? - Angela perguntou, ao ver a prima ficar para trás.

— Venha, Helena! - Sean, o rapaz do circo, lhe estendeu a mão. Margarida, aos berros, a incentivava a aceitar a ajuda.

Quando Helena estendeu sua mão para agarrar a do rapaz, ela foi arrancada bruscamente de sua posição e lançada contra uma parede, quebrando vários retratos que ali estavam. Fraca, ergueu os braços à frente da cabeça para evitar os golpes que estava certa de que viriam, quando subitamente um aliado quebrou uma cadeira nas costas do agressor, contendo-o nem que por um instante.

— Perfeito, Charles! Leve-a para fora - Vincent orientou a um de seus mercenários.

 

O rapaz chamado Charles tomou Helena pelo pulso e correu com ela para fora da hospedaria. A garota mais tropeçou do que correu, mas conseguiu escapar em segurança para fora. Um dos homens de Martinelli agarrou a saia de Margarida no intuito de atacá-la, mas Sean pegou a madeira que servia de tramela para a porta e o agrediu com ela. Foi como se nada tivesse acontecido: para espanto do circense o homem dominado pelo poder vampírico tomou o pedaço de pau da sua mão e o partiu em dois como se ele fosse um simples hashi. Depois, tentou assassinar Sean cravando nele a estaca que a peça quebrada se tornou, mas mesmo sem nenhum instinto guerreiro o jovem conseguiu se desviar, e de quebra salvar sua amada assistente de palco.

Os dois correram alguns metros xingando todos os palavrões que conheciam, e pedindo proteções a Deus, tudo isso junto; ao se depararem com o muro que encerrava a propriedade, viram que não dava mais para correr e que o jeito seria brigar. Sean já se preparava para morrer ao ser derrubado pelo vilão quando Margarida, com um chutão daqueles, arrancou o monstro de cima dele. Tomando-o pela mão, ela o guiou, mas como estava focada demais em olhar para ele e ver se ele estava seguro, não prestou atenção em outro homem que vinha diante dela. Ela colidiu acidentalmente com um dos Martinelli fazendo-o cair de traseiro no chão, o que salvou Bernard sem querer.

— Obrigado, senhorita! - ele disse bem alto, enquanto continuava lutando.

Margarida teve que olhar em volta duas vezes para saber do que ele falava, e quando entendeu não gostou do que viu. Desesperou-se em um grito agudo, clamando pelo amigo Sean. O inimigo já estava em seus calcanhares quando Bernard retribuiu seu "favor", derrubando-o com uma machadada na cabeça.

— Jesus! Maria! José! - Margarida gritou, a beijar uma medalhinha da santa que tinha ornamentando seu volumoso decote oval.

Não prestar muita atenção no cenário ao redor a fez tropeçar e cair em cima de Sean de uma forma bem sugestiva.

— Estamos bem agora - ele tentou murmurar por entre os peitos dela - Já pode sair de cima de mim agora.

Só de galhofa, ela pegou a cabeça dele e balançou o busto de um lado para o outro, de forma que ele sentisse toda a maciez de seu colo.

— Pare com isso, sua doida! Nós estamos para morrer!

— Oh, é verdade.

— Obrigado por me salvar - ele tentou esfregar o nariz para justificar o rosto completamente corado.

Margarida se levantou devagar e estava pronta para correr atrás de algo para se armar quando sentiu algo circular seu tornozelo. Era uma corda com uma pedra na ponta, utilizada para capturar uma pessoa em fuga. Naturalmente, o usuário do artefato era um dos homens de Martinelli.

— Seaaaaaaaaaaan! - ela gritou, enquanto era arrastada em direção ao inimigo.

Sean pulou de bruços no chão e agarrou Margarida pelos antebraços, o que não surtiu muito efeito, já que para o adversário os dois juntos eram leves como penas.

— Quem está gritando? O que houve? - perguntavam Vincent e Angela, sem ampla noção dos acontecimentos por estarem lutando bem longe dali. A possibilidade de perder a isca da família, pelo grito feminino que podiam ouvir, era desanimadora. Precisariam de Helena na batalha final.

— Margarida! - Sean murmurou, enquanto tentava impedi-la de ser arrastada. Agarrou-se em uma das estacas que sustentavam um varal de roupas no terreno - Daqui você não passa!

— Sean, estou com medo!

— Eu seguro você!

Parece que foi ele dizer isso que a estaca se partiu e os dois seguiram sendo arrastados.

— Mas você está sendo arrastado junto comigo! - ela observou.

 

— Então, eu acompanho você! - ele respondeu seguramente, como se isso quisesse dizer algo - Segure-se em mim!

 

Quase que ao lado deles, Karl Lee Rush lutava contra um guerreiro franzino que parecia ser mais forte do que todos os outros e que estava dando um baita trabalho. Num golpe giratório de pernas, o adversário do caçador o desarmou, o que fez um punhal embebido em água benta cair do lado de Margarida.

 

— O...o quê? - Margarida não entendeu nada quando Sean olhou para aquilo do lado dela.

 

Sean apanhou o punhal e o cravou no chão, na tentativa de criar um ponto de estabilidade. Não deu certo. À essas alturas, Margarida já tinha uma das pernas suspensa pelo guerreiro dos Martinelli, e gritava a plenos pulmões que agora não interessava mais morrer jovem e bela.

 

— Corte a corda! - Sean instruiu, ao dar na mão dela o punhal.

 

Em vez de fazer isso, ela aproveitou a posição para apunhalar a parte íntima do suposto vampiro, que se dobrou grunhindo palavrões, queixando-se de que se sentia como se estivesse sendo queimado. Depois, aproveitando que ele não conseguia fazer nada além de urrar e se lamentar, Margarida chutou sua cara para fazer com que ele se virasse de peito para cima e, assim com o acesso facilitado ao punhal, o puxou novamente.

 

— Acho que eu estou pegando jeito para esse negócio de ser caçadora - disse, enquanto libertava a perna da armadilha.

— Mais uma dessas e eu morro do coração - Sean comentou, esbaforido.

— Parece que eu estou em débito com o senhor mais uma vez - Margarida observou, enquanto o ajudava a se levantar. Sean tinha raladuras por todo o antebraço, e ela não estava muito diferente - Eu exijo um banho de rosas quando sairmos daqui.

— Não há de quê - o rapaz respondeu, sobre o primeiro comentário - Vamos embora daqui.

 

Margarida não precisou escutar duas vezes antes de obedecer. Sem muito saber o que fazer para ajudar, os dois contemplaram os demais lutando. Helena, quase cercada, digladiava contra dois homens portando uma lança medieval que aparentemente era um artefato de coleção da família, pois havia várias dela na entrada da hospedaria.

 

— Ela está em apuros! Vamos ajudá-la! - Margarida pediu.

 

Helena conseguiu cravar um dos homens no braço e detê-lo por um momento, mas o outro agarrou sua arma de defesa e ataque e ela, febril, oscilava. Sentia que ia desfalecer e não conseguia atacá-lo como fez ao outro.

 

— Que pena que eu não tive tempo de brincar com você...quem a experimentou, só teceu elogios!

— Seu pulha mentiroso! Eu nunca dormi com nenhum dos teus!

— Ah, dormiste sim! Com o líder! E ele me garantiu que eras deliciosa! Vamos brincar um pouco enquanto o chefe não chega?

 

Contrariando todas as recomendações de Sean, Margarida apanhou um grande balde de metal no canto do quintal e investiu contra aquele homem, acertando-o dolorosamente na parte de trás da cabeça.

 

— Brinca com isto daqui, seu filho de mil putas!

 

Enquanto o homem coçava a nuca reclamando da avaria, Margarida tentava apanhar a mão de Helena para correrem juntas. Porém, quando viu que o homem se erguia furiosamente para avançar em Margarida, Sean priorizou salvar a amiga, e as mãos das duas não tiveram tempo de se tocar.

 

— Corra, Margarida! - ordenou, empurrando-a para a frente, enquanto tentava bloquear o acesso do inimigo a ela.

 

Helena, que havia caído de joelhos após o esforço para alcançar a mão da amiga, ainda teve tempo de ver Sean corajosamente protegendo Margarida com o próprio corpo antes de eles dois conseguirem escapar com segurança da morte certa.

Todos uivaram de espanto. A Helena, que era causa de muitos deles voltarem aos cenários mais perigosos, a isca que metia a todos eles em terríveis enrascadas, aquela que nunca tinha se machucado de forma significativa em combate, a que precisava ostentar uma beleza irretocável para ter alguma serventia, agora estava danificada por uma bala! Como algo assim poderia ter acontecido?

 

— Ela quis nos defender! - Sean intercedeu por Helena, apoiando-a de modo que ela se sentasse no chão com o mínimo de conforto. - Ele iria nos matar! Ela foi ferida por nossa causa!

 

Enquanto eles se distraíam nessas explicações, um pequeno grupo de sinistras crianças adentrava os portões da propriedade. Assemelhavam-se ao primeiro menino, aquela criança que entregou o recado dos vampiros a Helena.

 

— Isso não é o que eu estou pensando que... - Angela não conseguiu terminar a frase, foi imediatamente puxada pelo noivo para dentro da estalagem.

— Vamos correr para dentro! - ordenou Karl - Bernard! Vincent! Preparem as armadilhas!

 

Todos os Lee Rushs, guerreiros, mercenários e até hóspedes involuntariamente metidos na confusão, obedeceram o comando de entrar. Sean estava pronto para correr e arrastar Margarida, mas se lembrou de Helena. Ela sorriu amargamente e disse:

 

— Eu acho que vou demorar aqui. Podem ir na frente.

— Aquilo na Helena era uma ferida? - Vincent, hesitante em socorrer Helena ou não, teve a porta trancada na cara antes que pudesse se manifestar - Espere, temos que socorrê-la! - ele protestou.

 

Para seu choque, Karl Lee Rush ficou bloqueando seu acesso à saída.

— Todos de nossa família já estão aqui - o líder da família sentenciou.

— Mas...e a Helena?

— Ela sempre dá problema! - Angela resmungou.

— A Helena... - o líder dos Lee Rush murmurou, pensativo.

 

Bernard, que já tinha se omitido ante as piores maldades cometidas contra a prima, também estava alarmado com o que iria ouvir. Um silêncio se fez para melhor escutar o que o patriarca da família tinha a dizer.

 

— Acaso não percebeste o que ela acabou de fazer? Em sã consciência, jamais faria algo semelhante. Deve estar contaminada.

Vincent não pareceu certo desse argumento, e tentou ultrapassar a porta, sendo detido pelo futuro sogro mais uma vez. Bernard, mesmo indignado com a resolução, escolheu não se opor ao pai, e agarrou Vincent pelos ombros, impedindo-o de avançar.

 

— Tens algo com aquela rameira? - Karl questionou, rilhando os dentes.

— O senhor sabe que esta acusação é injusta! Preocupo-me com o bem de todos, apenas isto!

— Tu ouviste, o senhor meu pai está certo. A quem estiver lá fora, não devemos permitir a entrada - Angela deu o braço ao pai, num gesto de lhe demonstrar apoio - Não importa se é a isca da família ou não. Se ela morre, providenciaremos uma outra órfã qualquer! Mas, dentre nós, todos somos insubstituíveis!

— E as pessoas do circo? - Bernard inquiriu.

 

Margarida e Sean agarraram qualquer coisa que acharam pelo caminho para se defender das crianças-ghouls que começaram a brotar de todos os lados: dos derredores da casa, saltando dos muros e vindas do portão principal, já somavam umas vinte. Algumas aglomeravam-se em cima do corpo do dono do circo. Helena tomou para si um punhal que achou caído. Apoiando-se nele, levantou. Viu que o casal, relutante em acertar de maneira fatal as crianças, estava na desvantagem.

 

— Devem matá-las - ela disse - Só assim escaparão daqui com vida. Elas não viverão mais, são apenas corpos se arrastando.

 

Sob a orientação de Helena, os três cruzaram a multidão de minizumbis. Margarida e Sean os tiravam do caminho a pauladas ou golpes laterais de lança; Helena rasgava a garganta dos pequenos.

 

— Corre! Corre! Corre! - Margarida gritava, como se não fosse o óbvio a fazer.

 

Helena, que era quem abria caminho, caiu de joelhos à porta da hospedaria primeiro.

 

— Abram a porta, estamos vivos! - pediu, com tanta sofreguidão que sua voz saiu grave.

 

Sean e Margarida se juntaram a ela:

 

— Abram a porta, por todos os anjos do céu! Vamos ser devorados vivos! Há mais de vinte deles aqui! - Margarida exagerou a situação para comover os que estavam do lado de dentro, mas o efeito foi inverso.

— Vão embora! Não há mais como abrir! Se são tantos assim, não temos como enfrentá-los!

— Mas o que diabos o senhor está falando, homem? - Sean respondeu, irado com Karl Lee Rush - O senhor não é um caçador?

— Tio, abra a porta! - Helena, mais uma vez, implorou - Nós já derrubamos a maioria deles. São poucos, mas ainda resistem e estão a nos perseguir!

— Qual a nossa garantia de que vocês todos não foram mordidos ou contaminados de qualquer forma?


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