Vampires will never hurt you escrita por manasama677


Capítulo 6
Capítulo 6 - Murder scene




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— Continue correndo, Arthur! Vamos lá…corra direitinho! - repetia a voz meiga da mulher que batia palmas discretamente, para incentivar o pequeno vampiro a saltar por cima de armadilhas para ursos ao longo de um trajeto semelhante a uma corrida de obstáculos moderna.

A criaturinha obteve êxito por algumas tentativas mas, ao perder o fôlego devido ao excesso de repetições, finalmente fora capturado pelo tornozelo direito. A armadilha fechava-se quase que de forma absoluta em torno de sua perna pequenina e rechonchuda; a dor era pungente, o que lhe arrancou lágrimas.

— Está doendo! Está doendo!

— Acalme-se, Arthur...Está tudo bem, não chore... - a mulher o abraçava, confortando-o - Mamãe está com você...

Naquele tempo, Arthur Seingalt ainda pensava que era uma criança normal. Mas...

— Humana, eu posso fazer uma pergunta?

— Eu já disse que pode me chamar de "mamãe", Arthur. "Humana", não. É feio chamar a mãe dessa forma.

— Desculpe-me, hum...mamãe. Posso fazer uma pergunta, ma...mãe?

— A pergunta que quiser, Arthur.

— Por que a senhora não come sangue?

A mãe mostrou-se surpresa diante da simplicidade dessa pergunta. Quase se sentiu grata por ter sido apenas essa a curiosidade do pequeno. Chegou a sorrir de alívio:

— Ora, querido...isso não tem importância. Eu não gosto, apenas isso.

— Então, por que eu não consigo viver sem comer?

— Já terminou sua janta?

— ...sim...

Arthur já conhecia os modos da mãe a ponto de compreender quando uma conversa não poderia ser continuada. Obediente como nunca deixara de ser, não insistira no tema anterior. Depois de colocar as roupas de dormir na criança, a bela mulher o acomodara num caixão apropriado para o seu tamanho reduzido.

— Eu quero dormir na cama com você, humana, quer dizer, mamãe.

— Não, Arthur. Você deve se acostumar ao seu tipo de acomodação, assim como eu também estou treinando você para que possa se defender sozinho no mundo lá fora, quando tiver que caçar suas próprias presas para comer - ela disse de maneira sombria, olhando para o machado que usou para cortar a cabeça da vítima com que alimentara seu filho.

Os membros superiores da vítima jaziam ao lado do fogão a lenha; ela literalmente as descartava um pedaço por dia, dentro do que conseguia carregar.

— Teremos que sair daqui em breve. Você deve estar sempre pronto para fugir, Arthur. Entendeu?

— Se ele estivesse aqui, estaríamos protegidos.

— Arthur...nós conseguimos ficar sozinhos até agora, não conseguimos?

— Sim...

— Eu não tenho conseguido comida para você? Então, você há de concordar que não precisamos dele aqui.

Ela se referia ao patriarca dos Seingalts, que Arthur era inocente demais para entender que não tinha uma relação nada boa com sua mãe.

— Mãe...a senhora disse que eu tenho irmãos. Quando irei conhecê-los?

 

"O destino de vocês é perder, porque tu és o mal, e o bem sempre vence."

 

A frase deixada por Martinelli ficou solta no ar, invadindo os pensamentos de Helena e Arthur. A colocação tinha sentido: Helena mesma sempre ouviu falar dos vampiros como uma ameaça, algo a ser vencido sem piedade, e antes de Arthur Seingalt sequer considerava humanizá-los. Arthur, por sua vez, refletia sobre sua mãe e ele: sempre fugitivos, combatidos, odiados, os criminosos que tinham que se deslocar de um lado a outro assim que começavam a sentir dos demais o peso da desconfiança. Eram eles os caçadores noturnos que vez por outra iam para a floresta provocar alguma tragédia, arrancar dos braços de uma mãe um filho, e de seus olhos as lágrimas. O meio vampiro ainda conseguia escutar o barulho da velha saca de lona sendo arrastada pelo chão, quando sua mãe perdia as forças para agarrá-la nos ombros, com os restos mortais do filho desaparecido de alguma família numerosa da região. Dada sua força reduzida de jovem mulher, ela se via obrigada a decapitar crianças cada vez menores. Atraía-as com doces; Arthur conseguia se lembrar do seu processo de fabricação, e recordava também de que o gosto dos doces não lhe apetecia, mas o sangue das vítimas atraídas sim. Uma vez questionou a mãe ao ver uma dessas mulheres debulhada em lágrimas pelo sumiço do filho:

 

— Se o que fizemos não é mau, por que ela está chorando?

 

A mãe de Arthur disse-lhe simplesmente que no verão seguinte a mãe teria um novo filho e ficaria contente outra vez. Meses depois, Arthur, então uma criança de seis ou sete anos, caçaria pessoalmente sua primeira vítima. Achou que traria orgulho à mãe pela sua demonstração de independência, mas ela lhe deu uma surra. Segundo suas controversas palavras, "não queria que o filho se tornasse um assassino como o pai". Porém, o tempo se encarregaria de mostrar que sua natureza era irrefreável.

 

(...)

 

Helena agitava-se ao perceber que o vampiro parecia dominado por uma distração que não condizia com o momento: havia um caçador pronto para matá-lo e ele sequer reagia! No entanto, o que ela faria para defendê-lo sem se expor? O que ela poderia fazer? O que ela poderia fazer? Ela percebeu, então, que o jovem Seingalt tentava agarrar um galho no chão para se defender. Pisou em sua mão:

 

— Deixe-me ajudá-lo, Sr. Martinelli. Eu os conheço bem: se acabar distraído perto de um desses, acabará morto.

— Ora, desgraçado! - Martinelli chutou Seingalt no flanco esquerdo - Bastardo, olha o que pretendia! Meus agradecimentos, Srta. Lee Rush.

— Disponha.

 

Arthur olhou para a amada chocado. Perguntou dela:

 

— Helena, por que está fazendo isso?

 

Helena virou o rosto, pensando nos seus motivos, que eram os mesmos da mãe de Arthur: não querer que ele, diante dela, matasse alguém.

 

— Por que, Helena? Por quêêêê?

 

Martinelli mais uma vez cravou a adaga de prata nas costas de Arthur Seingalt. Helena se esforçava para parecer indiferente, uma vez que era vigiada pela prima. O rosto dela contorcido pela dor do amado foi a última coisa que Arthur viu antes de desfalecer.

 

(...)

 

Ouviam-se batidas à porta. Arthur estava assustado; alguém parecia muito irritado com ele e sua mãe. Na verdade, escutando mais atentamente, ele percebeu que ali havia não apenas uma ou duas pessoas, mas dezenas delas.

 

— Saia daí, bruxa maldita!

— Abram a porta, sabemos que estão aí!

— Ela e aquele monstrinho!

— Tragam a bruxa e o pequeno demoninho para fora!

 

A mãe de Arthur, apesar do cenário caótico, manteve a postura. Abaixou-se diante do filho e ordenou, quase sussurrando:

— Filho, escute atentamente o que mamãe vai dizer: esconda-se direitinho, de modo que até eu tenha dificuldades para encontrá-lo!

— SAIAM DAÍ OU ABRIREMOS A PORTA PARA VOCÊS!

Arthur olhou para a porta, assustado. A mãe o agitou para que ele ficasse inteiramente focado nela:

— Vá até aquela tábua solta por onde você se escondeu outro dia. Lembra-se dela?

Ele assentiu com a cabeça. Mas colocou uma objeção:

— Mas se a senhora acabou de dizer para eu me esconder lá, então já vai saber onde estou.

— Não tem problema. Arthur, não importa o que passe a ouvir, fique quieto e só saia do esconderijo ao amanhecer!

— Mamãe vai me procurar?

— Depois, querido! Agora, vá!

— Mamãe, vire de costas. Assim, eu não vou conseguir me esconder.

Contrariada por sua lerdeza, a mãe de Arthur o obedeceu, para que ele fizesse de pronto o que ela disse. Assim que percebeu que ele a obedecera, ela abriu a porta.

— Ahá! Aí está você!

— Então, é esta maldita assassina que está matando nossos filhos para dar de comer ao seu filho demoníaco!

— Onde está aquele monstro que tu chamas de filho?

— Criaturas do mal não podem vencer os homens de bem! Estamos aqui para puni-los!

— Podemos ser "gentis" com você, se nos entregar aquele filho do diabo!

— Não se iludam - ela disse, com grande dignidade - Eu sabia que viriam, por isso me encarreguei de mandá-lo para bem longe, onde vocês não possam encontrá-lo!

— Sua vagabunda! - um dos homens a golpeou no rosto - Se era ele a quem nós procurávamos!

— Como você some com ele desse jeito? - manifestaram-se mais alguns populares, golpeando-a por todos os lados.

— Criaturas do mal e seus defensores devem morrer, porque vocês são o mal e o bem triunfa no fim de tudo!

De seu esconderijo, Arthur escutava os ruídos da luta da mãe com os caçadores e demais populares. Ela derrubou umas duas pessoas, mas depois disso Arthur escutou alguém xingando sua mãe, e o barulho seco do cravar de um punhal em carne humana. Gritos femininos, e barulho do que pareciam ser pessoas correndo. Mais xingamentos. Silêncio, seguido de um comando:

— Procurem o maldito vampiro por toda a casa! Rápido, antes que ele fuja!

Mamãe...o que aconteceu?, pensava a criança apavorada.

— Ele não está em lugar nenhum!

Mamãe não vai voltar para me procurar?

Arthur estava indeciso entre obedecer a mãe e questionar em voz alta as perguntas que fazia apenas mentalmente.

— Ela devia estar falando a verdade! O maldito não está aqui!

Assim que parou de escutar passos no assoalho acima de sua cabeça, Arthur saiu de seu esconderijo para saber o que tinha acontecido. Não esperou amanhecer. Estava munido dos piores pressentimentos que foram, afinal, confirmados: sua mãe fora morta a punhaladas e ele estava sendo procurado por toda a cidade. Vez por outra, a sua mãe falava em um castelo que ficava acima de uma colina, dentro da floresta. Era para lá que ele deveria ir se algo muito ruim acontecesse com ela. E era para lá que ele pretendia ir, para buscar os seus parentes que ainda restavam.

Após muito bater cabeça sobre que desculpa dar para salvar Arthur, Helena sugeriu que Julius Martinelli parasse tudo o que estava fazendo:

 

— Não sei o que meu tio fará se souber que eu não impedi o assassinato do item que ele pretende vender. E o senhor há de concordar que ele será muito mais disputado vivo do que morto! Se desfalecido assemelha-se a um ser humano como nós, morto convencerá ainda menos as pessoas de sua natureza. Façamos o seguinte: prendamo-no, para que esteja amarrado quando meu tio, o líder de nosso clã, aparecer. Eu não quero ser responsabilizada por não ter tomado qualquer atitude em favor de nossa família.

 

Mesmo Angela não se atreveu a tecer um de seus comentários maliciosos.

 

— A menina tem razão. Contudo, vivo, ele tende sempre a escapar. Trazê-lo dentro de nossa carruagem seria um risco inestimável, e a senhorita não parece ter trazido consigo nenhum item de caça para aprisioná-lo - Martinelli objetou.

— Não acredito que ele esteja em condições de fugir. Ferido, o sanguessuga não irá muito longe. Além disso, ele levará notícias nossas aos seus caso escape. Será útil de todas as maneiras.

 

Com o pé, Helena sacudiu o meio vampiro.

 

— Acorde, demônio assassino - disse ela, tentando vestir um sorriso confiante no rosto.

 

Ele se ergueu muito rapidamente, considerando seu estado. Arfou de desespero, mas sorriu esperançoso em seguida, ao ver que era ela.

 

— Tu serás nosso todas as vezes que quisermos. Gostaria de, em nome dos Lee Rush, transmitir um recado.

 

Confuso, Seingalt recuou ao perceber que ela não estava amigável. Suas memórias sobre as últimas traições vieram gradativamente, como se ele quisesse recusar a lembrança daqueles momentos. Martinelli impediu sua fuga, posicionando-se atrás dele. Colidindo suas chagas nas pernas do inimigo, ele se lembrou do que tinha acontecido: fora golpeado miseravelmente pelas costas, como sua mãe anos antes. A alusão a este acontecimento o fez mostrar as presas. Helena deu um passo em sua direção, continuando o que ia dizer:

 

— O monstro deu sorte que estamos separados dos demais e que não temos interesse em matá-lo. Permitiremos sua fuga hoje, para que transmita aos demais que estamos chegando.

 

Tomando Martinelli pela mão, ela acrescentou:

 

— Eu e o Sr. Martinelli temos coisas mais importantes a pensar do que entrar em conflito com sanguessugas como você. Mas o que temos a dizer também pode interessá-lo: nós, os Lee Rush, e os Martinellis, uniremos forças contra vocês, pragas assassinas. Este acordo será firmado através de nosso casamento.

— O...o quê? - balbuciou a criatura.

— Estou tão cansada - Helena dirigiu-se ao então noivo, manhosa - Leve-me para casa…

 

Martinelli segurou Helena pela cintura, como se, de maneira sádica, quisesse levar ao entendimento do vampiro apaixonado a nova informação: Helena era a noiva dele.

— Helena, não pode ser...

— O que não pode ser? - Helena o questionou duramente - Nós somos caçadores, era natural que estivéssemos juntos. Seu choque não faz sentido. É previsível, é a natureza das coisas; os pares se unem.

— Eu não acredito nisso! Eu não consigo ver a verdade em nada do que você está falando!

Helena encarou com preocupação esta última afirmação. De canto de olho, verificou seu nível de credibilidade junto a Martinelli. Este ria do meio vampiro, confiante de que a criatura equivocava-se em sua demasiada estima pela caçadora.

— Como são ridículos! E pensar que eu, quando mais jovem, também perdi a cabeça assim por uma meretriz da zona do meu vilarejo! Estes dias lhe farão vergonha, rapaz! Conforme-se - Helena nunca foi sua!

Helena, de cabeça baixa, pensava em algo definitivamente cruel para dizer. Manifestou-se ao fim da primeira ideia que lhe veio à mente:

— Não entendeu ainda, vampiro? Vá embora e aproveite bem o último tempo de vida que estamos dando a você, pois tu não serás poupado quando eu estiver com minha família ao lado, qualquer que seja a serventia que eles te derem! Torço para que o queiram morto, mas, em dúvida quanto à vontade deles, não posso eu mesma fazê-lo.

— Ele parece não nos compreender, então temos que colocar mais clareza em nossas palavras - Martinelli sugeriu. Dito isto, ele tomou Helena nos braços e a beijou.

A caçadora não resistiu, e até correspondeu. Talvez, pensou ela, Seingalt ficasse irritado o bastante para ir embora e pensar na própria segurança, em vez de devanear um futuro com eles dois juntos.

— Eu já entendi - o jovem disse, com dificuldade - Helena, neste primeiro momento providenciarei a cura de minhas feridas, mas na próxima vez que nos encontrarmos, será como inimigos mortais!

Com dor no coração, a caçadora viu o amado se distanciar, em rápidos saltos de encontro à mata, até desaparecer. Era como se um pedaço dela tivesse ido embora, mas ela teve que fingir o melhor sorriso quando Martinelli olhou para seu rosto outra vez.

— Vejo que tu és bem diferente das outras moças de família que já tomei em meus braços...ainda que esta diferença não seja, de todo, negativa. Muito pelo contrário...

(...)

Ao amanhecer, todos estavam outra vez na estalagem. Angela não pôde exagerar seu testemunho para prejudicar a prima. Martinelli até amenizou alguns detalhes. Disse, por exemplo, que ele e Helena juntos, e não apenas ela, decidiram permitir a fuga da fera. Trocando olhares com o noivo, Helena sabia que tal ajuda não seria gratuita. Ele tinha, antes disso, entregado a ela um bilhete dizendo que a queria em seu quarto naquela noite. Ciente das coisas que ele poderia revelar, ela sabia que não poderia se dar o luxo de recusar. Por isso, quando o último hóspede se colocou para dentro do seu quarto e todos os Lee Rush se recolheram, Helena batia discretamente à porta de Julius Martinelli.

 

— Sr. Martinelli - Helena o cumprimentou assim que ele abriu a porta.

— Eu sabia que viria - ele avançou em cima dela de imediato.

Como das outras vezes, Helena não ofereceu resistência, mas agora também não correspondeu. Martinelli percebeu isso, e investiu nela com um pouco mais de insistência. Discretamente, ou dentro do que ela acreditava ter sido discreta, Helena baixou a cabeça. Por mais vulgar que fosse, ela odiava a aproximação gratuita. Preferia que à conquista antecedessem as palavras estudadas, sensuais, tateadas. Queria ser preparada, e não somente tomada como uma cidade ao ser saqueada por bárbaros! Martinelli não parecia disposto a atender esta sua condição, e seu descontentamento ficou visível.

— Que há contigo? Faz-se puritana agora? Não sabes o que busca um homem quando chama uma mulher para a sua alcova?

Contrariada, Helena deu passos de modo a ficar de costas para ele. Tomou os cabelos e tentou fazer com que eles ficassem presos no alto da cabeça. O peso os fez escorrer em direção aos ombros outra vez. Martinelli a tomou pelo braço e a virou de forma assustadora para si.

— Anda, mostra o que tem para mim. O que há consigo?

— Acreditei que fôssemos conversar, em primeiro lugar.

— Que tenho eu a falar contigo? "Conversar" sobre o quê? Sobre teu interesse naquele sanguessuga?

Helena arregalou os olhos. Não achava que ele seria capaz de dizer algo assim abertamente.

— É o que há! Achas que não percebi? Tuas intervenções, teu desespero? Tua prima silenciou-se ao ver que eu te protegia, mas ponha-se desobediente para veres o que te apronto!

— O senhor equivoca-se; não é nada disso que estás pensando.

— É mesmo? Então, o que tens a me dizer sobre o que houve mais cedo?

— Foi tal como eu argumentei. Nem mais, nem menos. O líder desta família tinha interesse especial nesta caça, não perderia a oportunidade de buscá-lo novamente com vida e vendê-lo a outro comprador assim que soube que a fera estava livre do primeiro comprador!

— Falsa! - Martinelli a agarrou pelos braços e a empurrou de encontro à cama - Verás que serventia darei a esta tua boca mentirosa!

Forçou um beijo, mas Helena virou o rosto e tentou empurrá-lo para longe dela. Não obteve grande êxito.

— Solte-me, por favor! Tornarei a meu quarto, e fingirei que nada disto aconteceu.

Ela tentou se levantar, mas Martinelli logo se posicionou por cima, impedindo sua movimentação.

— Que quarto? Por acaso te referes àquele estábulo onde descansas a cabeça e amanheces cheia de feno pelos cabelos? Eu te darei meu nome, não é o que tu esperas? Quem mais achas que há de fazer isso por ti, hein?

— Solte-me, deixe-me em paz... - ela soluçava, sentindo-se abruptamente invadida.

Com medo de uma violência maior, ela se resignou aos fatos. Escutava da mãe que resistir era pior, pois somaria a violência física à dor da violação. Ao longo de seus dezesseis recém completos anos, Helena havia obedecido esse preceito um sem-número de vezes, mas nesta sentia-se especialmente horrorizada. Pela primeira vez na vida, encarava a violência que sofria não como parte de um ofício, mas como algo que a ultrajava como mulher, como alma viva. Ninguém vivo ou morto neste mundo merecia passar por semelhante coisa, e se conformar com isso era algo próximo de autorizar que a prática se perpetuasse. Helena queria feri-lo, rasgá-lo com alguma adaga, golpear seu rosto, cuspi-lo, fazer algo que denotasse seu repúdio e reprovação. Mas, impotente, fez o que não se permitia fazer das outras vezes: chorou.

Helena fechou os olhos, tentando se esquecer do que era feito dela. Antes de Richard, sua tática para lidar com esse tipo de situação era pensar em algum amante muito atraente, ou que sabia realizar bem a função. Após conhecer o nobre rapaz, conseguia ir para o leito de estranhos imaginando seu rosto durante a ação. Imaginava-se na lua-de-mel deles, longe das garras do tio e de sua família. Mas agora, naquele momento, sua imaginação era uma tela em branco, e ela conseguia beber à força cada mililitro do presente. Sentia-se lacerada a cada movimento brutal do oponente, que ultrapassava com suas formas adultas o corpo quase impúbere da ninfeta. Cada segundo que passava era pior que o anterior, e não havia distração que valesse para ocultar aquela dor. Nem quando deflorada sentiu-se atacada com tanta vileza e ódio.

Pela primeira vez na vida, deu asas a um pensamento que costumava evitar: como deveria ser confortável a superproteção imposta a Ângela! Karl Lee Rush não concedeu sua mão a Vincent sem antes estudar o comportamento do pretendente da filha, até entender que ele era um homem incapaz de violentá-la ou agredi-la de qualquer maneira. Quão agradável deveria ser, ser tratada com reverência, respeito, ser vista como adequada, virtuosa, merecedora de cuidados! O que ela, Helena, tinha, jamais poderia ser qualificado como liberdade; ela não era dona de si. Enquanto sua família tentava convencê-la de que ela, por iniciativa própria, ia para o leito dos viajantes que usufruíam de seu corpo, ela tentava ignorar os objetos novos que apareciam pela casa, as moedas a mais que apareciam no pote de economias de Angela. Quando ela não era atirada nos braços de algum parasita assassino, era negociada por alguns trocados por aqueles que deveriam protegê-la. Era tão cara assim a pureza de uma mulher? O que havia de tão ínfimo e leviano nela que a impedia de ser tratada com as mesmas regalias de Angela? Logo ela, que era apenas uma criança!

(...)

Helena conseguiu, enfim, ser transportada ao passado, mas as lembranças não foram exatamente felizes. No colégio interno, lugar onde ela tinha esperanças de refazer a vida, também começara a escutar boatos acerca de sua conduta:

— Aquela?

— Sim, é melhor se afastarem dela...Ouvi dizer que ela tem um monte de "amigos", mas você sabe que essas coisas são impossíveis entre homens e mulheres...

— Sim! Fora os boatos! Ainda que não tenham envolvimento algum, é um absurdo que uma mulher se sujeite a ao menos cumprimentar homens longe da presença dos responsáveis! O que pretende alguém que faz isso com a própria reputação?

— É verdade.

— Achas tu que ela tem envolvimento afetivo com esses "amigos"?

— Amigos? Quem dera! São os homens que caem na sua teia de perdida. Dizem que ela procura um bom casamento.

— Desta forma?

— Sim, desta forma.

— Coitada, nunca há de conseguir! Que homem sério a desposaria?

— Lógico que não conseguirá. Não sabem do pior: há moços comprometidos na sua lista de amantes, alguns que só esperam ganhar o diploma para contrair matrimônio com moças respeitáveis que estão à espera de sua formação!

— Verdade?!

— Se tens um noivo em vista, especialmente destes que estudam do outro lado da lagoa, jamais se aproximem dela, pois compartilharão de sua fama e jamais serão levadas a sério, é o que digo!

— Deus nos livre! - disseram Elizabeth e Joanna, então colegas de Helena, benzendo-se.

Naqueles tempos, Helena achava mesmo que suas amigas não deixariam de falar com ela por causa disso. Mas, na manhã seguinte a esta conversa, a caçadora percebeu que as colegas abruptamente e sem nada avisar, mudaram de lugar. Por solidão, ela também tentou ignorar o fato de que não foi defendida em nenhum momento por elas durante a conversa com as garotas que espalharam as notícias sobre sua conduta fora dali. Tentava negar a si mesma a percepção do que estava acontecendo; ela estava sendo excluída do grupo.

— Juntem-se em equipes de três para tomarem as notas sobre o trecho que lerei a seguir - orientou o professor.

Helena, que não tinha dinheiro para adquirir os caros livros escolares, dependia das meninas sempre que aconteciam as leituras. Não era a aluna mais brilhante, pois diferente das outras não tinha como treinar sozinha o que aprendia em sala. Seu caderno consistia numa pilha de folhas usadas que ela usava o lado limpo. Quando uma colega borrava a página e irritava-se, Helena pedia que, por favor, dessem-lhe a folha em vez de amassá-la. Escrevia com uma caligrafia muito miúda para poupar espaço. Hoje tinha páginas para escrever, amanhã não sabia se teria a mesma sorte.

— Posso me sentar com vocês? - ela pediu, após atravessar de uma ponta a outra da sala, atrás de suas possíveis ex-amigas.

— Não! - Joanna elevou a voz. Corrigiu-se em seguida, aplicando na voz um tom conciliador: - Nossa equipe já está completa.

Helena olhou para o lado e viu que com elas estava uma estudante que ela conhecia apenas como Martha. Sabia que, em outras circunstâncias, Elizabeth e Joanna jamais dirigiriam a palavra a ela. Muito sentida, voltou ao seu lugar em silêncio. Por onde passava, as demais alunas recolhiam suas pernas como se não quisessem nem encostar nela, e fingiam estar de cabeça baixa com os olhos fitos em seus livros, forjando distração para não socorrê-la. Quando estava a um passo de alcançar sua cadeira, duas garotas acenaram de uma mesa no fundo da sala.

— Venha ler conosco! - chamaram.

— Obrigada. - Helena agradeceu timidamente, antes de se sentar.

— Não se preocupe. É um prazer.

— Meu nome é Nanette.

— E o meu Marton.

— Eu...sou Helena.

Nanette e Marton eram moças de boas famílias. Lee Rush não entendeu por que se aproximaram dela, uma vez que os boatos circularam por aí sem dar chance de alguém desconhecê-los. No entanto, essa aproximação também criaria problemas para suas novas amigas.

No liceu das meninas, era terminantemente proibido se enfiar no lago que ficava nas cercanias da instituição. Essa proibição se devia ao fato de os rapazes praticarem nado e realizarem pequenas orgias ali, com prostitutas do baixo meretrício que vinham para aqueles lados garantir uns trocados. Em suma, as garotas tinham que ficar presas e escondidas porque os rapazes estavam à solta. Nanette e Marton, embora virgens, eram garotas muito travessas que gostavam de violar essa regra, pois achavam mais divertido mergulhar apreciando a natureza ao redor do que se espremer dentro de uma banheira estreita na privacidade de seus quartos. Sem falar que consideravam a proibição injusta em toda linha.

Um certo dia, estavam elas na lagoa praticando o nado, quando subitamente se viram cercadas de rapazes nus ou em trajes menores. Eram cerca de cinco deles.

— O que fazem aqui? - perguntou Nanette, assustada - Não deveriam estar nesta margem.

— E vocês, pombinhas do lado de lá, sequer deveriam estar aqui! Não sabem o tipo de mulher que adentra estas águas?

Marton, um pouco mais velha do que Nanette e mais segura das coisas, a escondeu com seu corpo. Ciente da superioridade estética da amiga, tentou poupá-la de algum apuro.

— O que querem? - perguntou.

— Queremos apenas nadar na companhia de duas belas senhorinhas.

— É inadequado! Vão para a margem de vocês! - Marton contrapôs.

— Melhor: deixem-nos ir embora! - atalhou Nanette.

— Ir embora, assim impunemente? Não somos tolos; sabemos que em colégio de senhorinhas, há uma regra sobre não sair da propriedade, tampouco enfiar-se em lugar que é de mérito dos homens!

— Esta é a nossa margem! A do senhores é aquela outra!

— A nossa margem é tudo isto aqui - o rapaz fez um círculo com o dedo, numa representação do que seria a lagoa completa.

— Estamos com pressa - Nanette quis tomar a frente, mas um dos rapazes a cercou.

— Ei, quem disse que permitimos que fossem embora?

— O que querem de nós? - Marton perguntou, mais uma vez tentando esconder a amiga, não que a valente Nanette tenha permitido.

— Queremos vossa honorável companhia.

— Não estamos dispostas, sim? Não nos impeçam; queremos ir.

— Ah, pois não irão.

— Nanette! Marton!

As meninas olharam para cima, pois reconheciam aquela voz aliada. Era Helena.

— Soltem-nas! Elas estão pedindo "por favor". Eu não serei tão diplomática.

Uivos e assobios subiram em resposta.

— Oras! Vejam de quem elas são amigas!

— Pois estas inocentes não me conhecem. Deixem-nas ir! Já lhes disseram que não lhes querem a companhia; por que insistem?

— O fato de serem amigas da famosa Helena já diz muito sobre quem são! - um dos rapazes exclama, a rir.

— Estão enganados. Embora estejam infringindo uma regra tola, nada fazem além disso. Se não quiserem ter confusão com nomes poderosos, liberem-nas e não teremos o que dizer a respeito de nenhum de vós. Cada um tomará sua direção como se nada tivesse havido.

— Mentirosa! Que fidalga teria coragem de se enfiar aqui? Assumam de uma vez que estas daqui não prestam da mesma maneira!

— Solte-me, por favor! - Marton gritou, aterrorizada, ao ter um dos seios apalpado por um dos infratores.

— Helena, vá embora, ou eles te pegarão também! - Nanette pediu - Corra e chame ajuda!

— E vai dizer que quebrou uma das regras da instituição? - um dos rapazes observou, com ares de chantagem.

Helena balançou a cabeça, indecisa. No fim, negociou:

— Eu no lugar das duas! É isto: coloco-me à vossa disposição! Agora, libertem-nas!

— Tamanho estupor que nasceu para servir aos homens acredita ter valor maior que duas virgens?

— Elas têm nome! Isso faz toda a diferença - Helena os lembrou.

— Eu aceito a troca - disse o que aparentemente era o líder do bando.

— Tem certeza? - protestaram os outros - Que graça tem Helena se todos aqui já a possuíram?

— Eu ainda não a tive, mas estou curioso a respeito do que ouvi.

Dito isto, os demais abriram passagem para a saída das meninas, um tanto contrariados. Elas se apressaram rumo à saída.

— Ainda que usada, devo admitir que a sua beleza supera a das outras duas.

— Helena, você não vai... - Nanette balbuciou, temerosa.

— Marton, leve-a - Helena determinou, consciente de que ela era a mais prudente das duas.

— Helena, NÃO! - as duas imploraram, mas a jovem desceu rumo à lagoa assim mesmo.

— Voltem para a escola, imediatamente. Saiam daqui sem olhar para trás! Seus olhos e mentes não estão preparados para o que vai acontecer.

— Não podemos deixá-la! Você é nossa amiga!

Helena, que tinha dado as costas para as duas, voltou-se para elas um momento e sorriu tristemente.

— Não se preocupem, eu só vou me divertir um pouco. Vocês não entenderiam.

Marton e Nanette se entreolharam, tentando absorver como algo que as tinha assustado tanto poderia divertir aquela misteriosa colega de classe.

— Vão agora, ou eu nunca mais vou falar com vocês!

— Isso, meninas...não se preocupem. Para Helena, é muito fácil dar o que nós estamos pedindo! - riram-se os moços.

— Isso não é verdade! - Nanette questionou.

— Vão embora agora! Obedeçam! - Helena exigiu duramente.

Apreensivas, desconfiadas, empacadas pela indecisão, as duas conseguiram a muito custo se arrastar para longe dali. E Helena, à disposição daqueles jovens lúbricos, satisfez cada um deles até sentir nojo de si mesma. Diante das lembranças desse dia, traumático até para alguém como ela, a caçadora não conseguiu disfarçar suas emoções para Julius Martinelli, cuja brutalidade se assemelhava à daqueles rapazes.

— Por que choras, afinal? Muito disseram de ti, mas vejo agora que me enganaram. Como és entediante!

— Perdoe-me - disse Helena, em tom conciliador - Eu tive um dia ruim.

Helena estava ciente de que havia traído sua família para que Arthur Seingalt fugisse, e se entregar a Julius Martinelli era a única forma de garantir seu silêncio a este respeito. Sua credibilidade com a família já estava por um fio, mas que diferença havia entre a intriga e a realidade se ninguém de fato acreditava nela? A única coisa que a moça poderia desejar àquelas alturas era que o filho de seu maior inimigo tivesse escapado em segurança, como suas amigas fizeram no passado.

(...)

Arthur Seingalt havia acabado de chegar ao castelo. Estava mais desgastado pelas recordações do que vira Helena fazer do que necessariamente pela longa caminhada.

— Estou de volta.

— Ora, oram vejam só! - disse sua irmã que fora vista por Helena a um de seus irmãos - Ian, me deves uma moeda! Ele apareceu!

De olhos baixos e com o semblante carregado de ira, Arthur disse:

— Estou de acordo com vosso plano, e tudo farei no sentido de concretizá-lo. Vamos dar fim aos malditos caçadores.

(...)

Na hospedaria, ao contrário do que Helena e Martinelli imaginavam, pares de olhos curiosos os seguiam. Eram Margarida e um de seus colegas do circo.

— Hmmm...voltaram.

— Quem?

— A garota com o caça-vampiros.

— Helena?

— Sim, a que chegou mais recentemente.

— E?

— Ele parece ter saído do quarto dela. Ela demorou mais alguns minutos lá dentro, antes de ir no rumo do lavatório. Preciso ser mais óbvia?

— Teria ela fugido para se encontrar com ele?

— Talvez.

— Ela foi mas rápida do que pensei - disse um homem por trás dos dois, fazendo a ruiva dar um pequeno gritinho de susto. - Parece que todos pegaram a noite para acordar hoje - ele continuou.

— Não me parece algo que incomode ao tio da moça - disse o circense - Outro dia, ele a ofereceu a mim.

— E você? - Margarida indagou, com sincera curiosidade.

— Disse-lhe que estimava outra pessoa que aqui se hospeda.

 

Margarida baixou a cabeça e corou. Não era a primeira vez que aquele seu companheiro de número chamado Sean dizia algo que a encabulava. Prevendo nisso algum inconveniente, não reuniu coragem para perguntar se aquilo era realmente com ela. Em vez disso, tentou puxar assunto com a própria Helena, que passou de propósito por aqueles que, ela percebeu, falavam dela.

 

— B-boas noites - Margarida gaguejou, afetando visível constrangimento pelo flagrante.

— Boa noite - Helena respondeu em um tom firme de pessoa ilibada de qualquer ato de que pudesse se envergonhar.

— Terminaram suas rezingas? Digo, da senhorita e do senhor caçador Martinelli?

 

Helena a encarou como se não tivesse entendido sua pergunta.

 

— Ouvi dizer que estava aborrecida com o caçador por ele ter assumido por inteiro o mérito da captura do meio-vampiro da outra vez. Mas agora, até reúnem-se. Imagino que tenham se reconciliado.

 

Sean, desesperado de vergonha por sua postura indiscreta, a cutucava com cotoveladas, mas ela ignorava seus sinais.

 

— Ah, então é isto - a jovem caçadora assentiu - Não é sábio nos colocarmos uns contra os outros agora. Não podemos nutrir sentimentos de vaidade quando temos inimigos maiores a enfrentar.

— Bem pensado! - aplaudiu a circense - Vejo que pensa no bem de sua missão a despeito de qualquer coisa! É uma mulher muito forte!

— Seria bom que todos pensassem dessa forma - foi a última coisa que Helena disse antes de dar as costas a ela.

 

Um silêncio tomou conta de Margarida e seus companheiros de conversação até o momento oportuno que Helena dobrou o corredor. Isso foi o sinal que buscavam para continuarem:

 

— Eu fico impressionado em como esta menina encontra facilidade para mentir - comentou o misterioso acompanhante da dupla de circenses.

 

Margarida ficou sem entender aquela observação, mas ficou intrigada o bastante para decidir conversar com a caçadora na primeira oportunidade em que a visse sozinha. Isso aconteceu na manhã do dia seguinte, após Helena servir sopa com pão para o reforçado café da manhã dos hóspedes. Martinelli avançou sobre ela para lhe dar um afetuoso beijo na testa, como se nada tivesse feito de repulsivo antes. Helena, seguindo seus passos, interpretou um simulacro de sorriso. Separaram-se sem trocar palavra, como se um gesto amistoso minimizasse os desvios peçonhentos da noite passada.

 

(...)

 

Helena ia em direção ao seu quarto para mudar de vestido, pois estava suja de tisna, poeira e iguarias culinárias. Ao segui-la e vê-la se despindo, Margarida quase conseguiu se envergonhar de suas formas voluptuosas. Ela se queixava às vezes de não ter isto ou aquilo de sua preferência para comer; Helena tinha contornos infantis de subnutrida. Os seios modestos mal se projetavam para a frente, e as costelas insinuavam-se a cada movimento. Helena tinha braços e pernas magros, pequenos, finos. Leves contornos ondulados davam pistas de sua feminilidade, embora fosse mais fácil confundi-la com uma menina do que com uma mulher. Soou chocante a Margarida lembrar do que Sean disse: que Karl Lee Rush, o patriarca daquela família, havia oferecido aquela frágil criatura a um desconhecido. Incomodava-a, especialmente, ser conhecedora do parentesco de Helena com ele, fato que ela descobriu ao conversar com os demais.

Sem esperar que Helena terminasse de se limpar e mudar de roupa, Margarida sentou-se à beira de sua cama e, silenciosamente, esperou que a caçadora a notasse. Quando isso aconteceu, Helena tomou um susto ao acreditar que seu quarto estava sendo invadido por um homem.

 

— Posso conversar com você um instante? - inquiriu a menina do circo.

 

Helena, apesar de surpresa, ficou aliviada com a presença dela.

 

— Como você deve saber, eu sou a Margarida, do circo.

— Desculpe, ainda não assisti nenhuma apresentação sua.

 

Margarida deu de ombros, sem entender aquele redirecionamento brusco da conversa. Mas ela percebeu que isso era uma tática de Helena para fugir do assunto, qualquer que fosse.

 

— Bom, isso não tem importância.

— E você faz o quê por lá? - Helena quis parecer recíproca, mas o desinteresse despontou em sua voz.

— Eu sou a...assistente! Eu ajudo o mágico na apresentação, sou o alvo das facas, também faço números de contorcionismo, essas coisas. Lá, as pessoas não têm uma função só.

— Entendo. E você não tem medo das facas?

— Bom, medo é uma palavra meio forte. Não é que eu seja corajosa, mas...bom, eu confio no talento dos meus amigos. E você pode não acreditar, mas sou uma pessoa muito fervorosa, também. Entrego minha vida a Deus. Além disso, o medo da morte não é nada perto da ameaça de perder meus amigos. Se eu não concordasse em me expor às facas, meu velho amigo Robinson seria expulso. Fora ele, eu também sou essencial nos números de Sean, o mágico.

 

Ao perceber a variação de entonação ao passar do nome de um amigo para o outro, Helena esboçou um sorriso irônico.

 

— Ele é um pouco estúpido, mas é um ótimo rapaz. Ele me trata como a uma irmã mais nova.

 

Percebendo que Helena não parava de reagir de forma cômica ao nome de Sean, Margarida passou para os nomes seguintes:

 

— Os equilibristas, os palhaços, todos são pessoas que me querem muito bem. E eu sou, para eles, como um membro da família. Só não o dono do circo, que é um insuportável!

— Eu não estou entendendo...ele não é o seu pai?

 

Margarida rapidamente mudou de tom:

 

— Eu me perdi nas recordações, desculpe-me! Acabei fugindo do que vim falar.

— E qual é o assunto? - Helena, vendo que a conversa ia durar, ajustou velozmente o vestido no corpo de novo.

— Desculpe minha intromissão...é que eu percebi que você não foi muito verdadeira com sua família ultimamente.

— O quê?

— Você sabe. Com o seu relacionamento com Julius, dos Martinellis.

— Ele corresponde às expectativas de Angela e dos outros, logo, é natural que eu...

— Você sabe que não estou falando disso.

— É mesmo? Do que seria, então?

— Você o ama?

 

Helena meneou a cabeça nervosamente, levantou-se e passou a andar em círculos pelo quarto.

 

— Ele pretende se casar comigo, ou assim diz. E eu vou aceitar...é melhor assim.

 

Margarida suspirou.

 

— É duro, não é? Ficar com alguém de que não gostamos.

— Você disse que gostava de todos no circo.

— Eu também disse que o dono do circo era um insuportável.

 

Helena baixou a cabeça, tentando digerir aquelas palavras.

 

— Eu sei o que eles fazem com você porque também passo por isso. Eu fui vendida para ele quando eu era bem pequena. Para que as pessoas não o julguem, ele diz a todos que somos pai e filha. Eu já tentei fugir algumas vezes, mas ele sempre me encontra. Eu simplesmente parei de tentar.

— Você vai desistir?

— E você já se fez essa mesma pergunta?

 

Margarida prosseguiu:

 

— Para mim, está muito claro que você gosta de qualquer pessoa, menos daquele Sr. Martinelli. Aliás, fico curiosa para saber quem é essa pessoa que te fez amar verdadeiramente, porque isso é algo que nunca consegui.

— Eu amei e ainda amo Richard.

— Richard é o seu noivo que morreu, certo?

 

Helena ficou inconformada com a forma literal e pouco cautelosa com que ela disse algo que deveria ser tratado com cerimônia.

 

— Escutei algumas pessoas dizendo que Richard tentou tirá-la das garras de sua família. Nessas condições, eu também pensaria gostar incondicionalmente dessa pessoa.

— Aonde você quer chegar com isso? - Helena aumentou um tom na voz.

também pode ter sido apenas gratidão.

— Não faz ideia do que vivemos juntos!

— Realmente - a circense deu de ombros - Mas, já que o ama ainda, acho que poderias me responder uma coisa sem temer.

— O que seria?

— O que pensas daquele meio vampiro da família Seingalt?

 

Era uma coisa muito perigosa que uma pessoa aleatória como Margarida estivesse consciente dos sentimentos de Helena pela criatura ora capturada. Ela não teve como disfarçar o espanto e o medo que essa pergunta lhe causou.

 

— Serei discreta acerca da resposta; o assunto não me traria benefícios, é apenas uma curiosidade vã e despretensiosa, acredite.

— O que te parece certo responder? Nada tenho a dizer sobre isso. Ele é a caça, e nós os caçadores. Isto é tudo.

— Quando eu olhei para ele pela primeira vez, ele me pareceu alguém com quem eu pudesse me divertir de fato. Entende? Como um homem e uma mulher devem se divertir: sem obrigações, o prazer carnal puro e simples. Não negues; ele é muito bonito, de um garbo que não se vê em um homem barbado.

— Ele é demasiado jovem para esse tipo de aventura. Inexperiente que beira o patético; qualquer um na idade dele já seria homem!

— E isso é desdém ou ciúme?

— Por que me tomas?

— Tu só não vês porque não queres. Mas, creias, este sentimento já te tomou por inteira. Se não tens condições de assumi-lo, vim aqui alertá-la do quanto deves trabalhar com a própria discrição, pois eu o percebo e, assim como eu, outras pessoas haverão de fazê-lo.

— Projetas teus sentimentos e expectativas em mim, por temer teu protetor; buscas que eu realize teu intento para compensar em mim a coragem que não possuis. Acerca-te dele, se assim desejas. E pare de me maçar com este tema.

— Quem diria que tu arrancarias ele de mim.

— E vocês tiveram algo?

— Tive vontade de beijá-lo logo que ele chegou, mas confesso que o temi, apesar de toda sua graça. Resolvi deixá-lo em paz, e à disposição das mais corajosas.

— Ele não me inspira medo algum - Helena explicou, com um olhar vago - Chamam-no de "meia espécie", "meia espécie"...a mim, ele parece muito mais humano do que todas as pessoas que eu conheço.

 

Discretamente, Margarida enxugou uma lágrima, pois entendia no seu íntimo o que a caçadora quis dizer.

 

— Eu posso abraçar você?

 

Helena não entendeu o pedido inesperado, mas também não disse nada em protesto. Por longos minutos, as duas ficaram agarradas uma à outra. Elas não se conheciam, não eram amigas uma da outra, mas a tragédia e a violação de seus direitos fundamentais à honra e à liberdade as aproximavam.

Margarida quebrou o silêncio:

 

— Seja feliz, qualquer que seja sua escolha.

 

Levantou-se rapidamente, e, com seu jeito espevitado, alisou as anáguas e ajeitou o busto do vestido, demasiado decotado e farto.

 

— Bom, acho que já dei minha modesta participação na sua história de amor. O resto é com você.

 

Suspirando e fingindo ajeitar a maquiagem borrada, acrescentou:

 

— Chega de choradeira e vamos dormir.

— Só mais uma coisa - Helena se manifestou, antes que sua mais nova amiga atravessasse a porta - Eu acho que o seu "irmão mais velho" gosta de você.

 

Margarida deu de ombros e riu exageradamente.

 

— Eu acho que você não tem muito talento para cupido, queridinha! Ele é e sempre será o meu melhor amigo, nada mais do que isso!

 

Quando Margarida e toda sua alegria foram embora, Helena tornou a sentir sobre si o peso da solidão. Apenas um calorzinho em seu peito anunciava o conforto por aquela conversa. Aquela garota, embora muito diferente de Nanette e Marton, lembrava suas melhores amigas do internato em espírito. Era uma pena, pensou Helena, que assim como ela própria, aquela moça chamada Margarida não se permitisse ser feliz.

 

Talvez este fosse o mal maior da perda da virtude, ela também refletiu. Raparigas na mesma situação que elas se achavam impuras, puníveis, alheias a qualquer projeto de felicidade, impuras para merecer qualquer homem. Desgraçar seu corpo e seu espírito em diferentes oportunidades, com companhias inconstantes, era a forma que encontravam de se mutilar como punição ao erro crasso de exercer a própria feminilidade em uma idade muito tenra e um momento não planejado. Ainda que belas, nunca seriam vistas com seriedade. O passado, esse espectro impiedoso, viria persegui-las em cada discussão com o cônjuge. Elas se obrigariam a estar sempre vigilantes, sempre trabalhando para compensar ao marido o dissabor de não tê-las descoberto. Entregar-se a um único homem seria também conviver com as acusações, com a desconfiança e quem sabe até com a tragédia.

 

O casamento poderia restituir-lhes a reputação, mas nunca a verdadeira dignidade.


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