Cracóvia escrita por Sensei Oji Mestre Nyah Fanfic


Capítulo 5
De um extremo ao outro




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Minsk, Bielorrússia

Janeiro de 1940

Os alunos do interno se reuniram no pátio escolar e ficaram enfileirados aguardando a chegada da comitiva de professores do Partido Comunista Soviético. Cerca de dezessete professores — dezesseis homens e uma mulher — entraram no pátio e se sentaram à frente dos alunos. A bandeira da União Soviética estendida bem na parede era chamativa e grande.

— Bem-vindos.

No púlpito, um dos doutrinadores dava as boas-vindas aos alunos. No mês de dezembro não ocorreu aulas devido ao atraso da escolha dos professores e também da dúvida sobre a relação de Moscou à Berlim.

— Quero apresentar a pessoa responsável por essa escola. Ela que participou da revolução russa, ela que já apertou a mão do grande Vladimir Lenin e até pouco tempo morou em Moscou ajudando no gabinete do partido. Deem as boas-vindas à diretora da Escola Interna Lênin-Stálin, doutora Agnessa Doris Falin.

Jacob testemunhou a entrada quase que triunfante daquela ex-revolucionária. Diferentemente da expectativa gerada pelo professor, a diretora Falin era uma realidade quase que piegas. No palco, uma mulher baixinha, rechonchuda, com bochechas rosadas de porco e um par de olhos pretos quase sem vida. Ela trajava um vestido muito parecido com a farda do exército russo, porém literalmente vermelho e um cinto que tentava a todo o custo esconder a proeminência da sua cintura... em vão. De longe a mulher era praticamente inofensiva não só por causa da altura mas também por ser uma bolchevique burocrata, que não descartava um bom laço vermelho no cabelo branco. E por falar no cabelo, a branquitude contrastava com a vermelhidão da roupa, e era nítido a possível influência da moda britânica — cabelos brancos, encaracolados e curtos. Nem de longe imaginava-se que aquela aparentemente doce senhora já foi uma revolucionária.

— Bem-vindos. Antes de tudo eu quero dar os parabéns a todos por estarem aqui e escolherem o comunismo como o único caminho para a salvação dos povos e trabalhadores. Como sabem, seus pais matricularam vocês a fim de servirem como a próxima geração à revolução do povo iniciada há vinte e três anos quando expurgamos a burguesia monárquica moscovita. Aqui vocês serão bem tratados, alimentados e ensinados com os valores da ideologia proletária. Todos vocês, crianças, serão bem-vindas, inclusive os filhos de judeus. No entanto, apesar de sermos compassivos, não se admitirá quaisquer questionamentos ao governo central, ao partido e qualquer ato, pensamento ou simpatia pelas ideologias capitalista e fascista. Enfim, as aulas começam em vinte minutos. Podem ir às suas classes.

Mesmo sendo baixinha, a diretora colocou pressão nas dezenas de alunos ali. Ainda era tudo novo para Jacob e os novatos, haja vista ficou quase um mês alojado no internato sem aulas. Durante os primeiros dias de internação, Jacob conheceu o jovem Petro Porochenko, um jovem filho de ucranianos católicos que imigraram para a Bielorrússia depois do massacre do Holodomor. Tal massacre, perpetrado por Stalin, matou milhões de ucranianos por inanição. Muitos foram expurgados e outros se mudaram. Petro e família saíram ainda no começo da perseguição e tiveram sorte mudando-se para vários lugares.

— Viu o jeito na nova diretora, hã? Parece uma leitoa troncuda. Tava bom demais para ser verdade — disse Petro já no quarto preparando-se para ir à aula.

— Você queria o que se refugiando nas asas dos comunistas? Ou segue suas doutrinas tal como Hitler impõe as dele na Alemanha ou é exterminado. E sinceramente eu prometi para os meus pais que faria de tudo para sobreviver.

— Quer dizer que vai aceitar a doutrinação calado?

— Meu desejo de sobreviver é maior do que picuinhas ideológicas, Petro. Não estamos no privilégio de escolher.

Jacob trocou de roupa. A farda era uma camisa social branca por baixo de um calção branco, meia, tênis e um lenço vermelho no pescoço. O judeu mudou a aparência do cabelo assim que entrou no interno, com seus cabelos loiros cortados no estilo militar. Na sala de aula, as crianças conheceram a professora de estudos gerais. Uma fiel seguidora marxista-leninista que se graduou como socióloga na Universidade de Leningrado e militante do Partido Comunista Soviético. Foi aceita para lecionar em escolas de Moscou e posteriormente em Minsk com a chancela da diretora Falin, sua madrinha.

— Escolham as suas carteiras, por favor. Cada qual tem uma numeração e esse número será seu por tempo indefinido.

Os alunos cochicharam algo sobre a professora ter cara de rato devido ao nariz fino e pontudo. Claro que Jacob sentiu vontade de rir com o cochicho atrás de si.

— Eu me chamo Chiara Komanev. Deixe-me ser bem clara: queiram ser os meus amigos e eu serei amiga de vocês. Não tolerarei desobediência na classe. Quando eu estiver dando o conteúdo no quadro negro, fiquem quietos. Buchichos poderão acarretar em sanção disciplinar. Entendidos?

As aulas com Chiara não eram chatas, pelo contrário. A professora era bastante dinâmica nas matérias. Na data do seu aniversário, Jacob não conseguiu segurar a tristeza por viver muitos dias sem a presença da sua família. Decidido a seguir o seu rumo, o jovem sacrificou a companhia da sua família para escapar de vez da perseguição em Cracóvia, também deixou para trás o amor de sua juventude, Dorota. Perdeu a companhia de Pavel e está preso naquele reformatório servindo de cobaia para a doutrinação de outra ideologia mortífera. Aguentar. Tem que aguentar até conseguir uma maneira de sair daquela situação... e ajudar a sua família de alguma forma.

— O que cê tá lendo? — perguntou Petro ao ver o colega com o pequeno livro de contos. Ambos estavam deitados em suas camas.

— Este livro foi o meu irmão quem me deu pouco antes da minha partida. É de Kafka, um escritor judeu.

— Posso ler depois?

— Claro. Acontece, meu caro, que estou nostálgico hoje pois faço meus quinze anos.

— Uau. Meus parabéns.

— Com certeza a minha mãe preparou um bolo para comemorar a festa para o meu irmão. Pelo menos ele está vigiando os nossos pais. Tomara que esteja tudo bem por lá.

— É, amigo. Estamos no mesmo barco. Você com os alemães, eu com os russos. Sorte a sua se você ainda tem alguma esperança de um dia encontrá-los.

— Por que diz isso? E os seus?

— Meus pais servem ao exército vermelho. Eles são traidores, uns descomungados que decidiram abraçar o ateísmo e sair por aí matando gente.

— Eles são guerrilheiros?

— Eram militantes do partido comunista de Kiev. Eles deixaram o restante da família católica para trás e abraçaram Stalin. Eu não os culpo. O discurso extremista sempre é tentador.

Por um momento Jacob se levantou da cama e guardou o livro na gaveta da cômoda. Perguntou a Petro se ele desistiria de Deus para servir ao estado. O ucraniano foi categórico ao rechaçar o ateísmo.

— Bem, meu amigo, você vai precisar ser forte quando surgir deboches sobre a sua crença.

— Eu aguentarei.

Um outro colega bateu na porta e disse que um aluno de outra turma havia morrido na Sala da Inanição.

— Isso é besteira. Estou há um mês aqui e nunca vi essa sala.

— Meu caro Jacob, a sala fica num local fora de vista dos alunos. O cara ficou uma semana desaparecido e de repente vimos um corpo saindo num tipo de ambulância hoje pela manhã.

— Parece que temos um Sherlock Holmes aqui.

— Fala sério, Eike, o que quer?

— Bora ver?

Petro negou qualquer companhia para ver o tal local secreto. No entanto, Jacob decidiu ir junto.

— Fala sério, Jacob. Vai se arriscar mesmo?

— O que tem de bom para fazer nesta escola todo santo dia à noite? Se quiser ficar, fique.

O ucraniano suspirou e decidiu seguir os dois. Durante a noite, a segurança não era tão reforçada, porque simples alunos nem eram ameaças para guardas armados. Foi fácil sairem do corredor da ala em que dormiam, passarem pelo pátio e um jardim com um chafariz.

— Eu nem sei se foi uma boa ideia acompanhar vocês.

— Deixa de ser maricas, Petro. O local que eu vi sair a ambulância fica naquela casa.

Ele apontou para uma casa relativamente menor que a mansão principal. Ficava num bosque pelo menos duzentos metros da casa maior.

— Você viu o corpo de onde? — indagou Jacob.

— Daqui.

— Estamos centenas de metros daquela casa. Como pode ter tanta certeza que foi um corpo a sair dali?

— E que outra explicação você teria ao ver algo enrolado num lençol branco e sendo jogado numa ambulância?

O trio saiu de perto da mansão, andou pelo bosque e ficou atrás de uma árvore, perto uns vinte metros da casa. Era de alvenaria e bem menor que a sede do internato.

— Aqui é onde os empregados dormem. Deve ter sido um empregado que morreu doente ou sei lá o quê. — Murmurou Petro.

— Alôô... Eu sei muito bem que aqui é a casa dos empregados, mas acha mesmo que eu faria uma acusação dessa magnitude se eu não tivesse provas, hum? Por duas semanas eu observei aquele local e descobri que os empregados já não dormem mais aqui. Quem me contou foi a professora Chiara antes de eu averiguar com os meus próprios olhos que a faxineira nem pisa mais ali.

— Falou o puxa-saco ateu... Oh, Jacob. Aonde vai, cara?

— Ficar parado aqui não vai resolver nada. Vou tentar entrar.

— Eu sou ateu sim, mas sou hebreu assim como o Jacob. Você, meu bom Petro Porochenko, é quem está sobrando aqui. Gentio de bosta.

— Os dois podem parar? Não posso acreditar que vamos entrar num debate numa situação dessa? Petro, se quiser vir conosco, venha. Eike, melhor parar com as provocações se quer tanto que a sua teoria de conspiração seja confirmada.

***

Em algum momento de 1941...

Perto da fogueira, num acampamento militar nazista, um dos soldados riu alto com a história contada pelo seu colega.

— Olha, Ralph, o que você me contou aqui foi hilário. Sério. E achar que existia uma escola para comunistas.

— Eles eram bem autoritários. Esse meu novo amigo penou na mão daquela mulher.

— E foi por isso que resolveu se vingar daquele outro judeu?

O soldado mexeu a pequena fogueira com um espeto enquanto pensava no que o outro dizia.

— Ele mereceu, entendeu?

— Entendi.

— Só porque ele era judeu não quer dizer que automaticamente poderia fazer qualquer barbaridade e sair impune.

O outro soldado sorriu e deixou-o sozinho. Ralph lembrou da vez em que foi desmascarado pelo colega alemão durante um banho no acampamento. Por ser judeu, o loiro não podia desfazer a circuncisão no seu pênis. Por vários momentos escapou de ter o seu membro visto por algum outro soldado, ora no banho, ora quando fazia xixi numa árvore — e para isso tinha que ir até um canto isolado. A noite estrelada era o contraste imediato do que ocorria na Terra. Depois de rasgar o armistício com a União Soviética, Hitler resolveu chutar o balde e declarar guerra contra Stalin. O objetivo do chamado "Espaço Vital Alemão" era conquistar toda a Polônia, boa parte da Europa Oriental, os balcãs e parte da Rússia — lado europeu. Essa campanha arriscada fez com que muitos soldados alemães saíssem da Polônia e Alemanha para irem ao leste como Ucrânia e Bielorrússia. Minsk foi completamente sitiada, apesar de ser um foco da resistência comunista.

Durante mais um dia de guerra nas trincheiras, os soldados alemães alcançaram bastante território soviético, mas chegaram num ponto que não podiam mais prosseguir.

— Droga, Ralph. Esses malditos comunistas são como ratazanas. Eles se enfiaram naquela trincheira e não querem mais sair. O que foi, garoto? O que cê tem? Levou um tiro?

— Não... é que a minha mente está confusa e estou com medo de morrer.

O soldado encorajou Ralph, pedindo que ficasse calmo. Ele pegou o rádio para perto e tentou explicar ao superior que havia somente dois soldados alemães. No entanto, a transmissão não pegou de imediato e soldados soviéticos começaram a se aproximar.

— Seguinte, Ralph, quinze metros tem uma trincheira. Precisamos chegar até lá.

— Nesse tiroteio?

— Se ficarmos aqui com certeza seremos abatidos. Pegue o rádio e eu darei cobertura.

A dupla se arrastou em meio à lama, explosões e tiros. Conseguiram chegar na outra trincheira, mas um russo alcançou os dois e logo pegou a sua metralhadora.

— Cuidado! — empurrou Ralph que caiu com tudo no buraco. O russo atirou várias vezes no alemão, mas foi morto por Ralph logo em seguida. O jovem puxou o colega, porém esse morreu logo.

— Joseph! Droga!

Ralph ficou lambuzado de sangue e lama, acuado dentro da trincheira. Era o único daquele pelotão que continuou vivo.

— O que vocês fazem aqui?

***

Uma luz assustou o trio de estudantes. O segurança pegou-os no flagra tentando arrombar as portas da casa.

— Meninos, o que pretendem aqui? — perguntou o segurança.

— Só estávamos brincando, senhor — respondeu Eike.

O segurança não engoliu a desculpa esfarrapada elevou o trio para a detenção escolar. Um supervisor que dormia no internato apareceu como autoridade para lidar com o assunto. Na sala de detenção pegou uma cadeira e ficou sentado de frente para os três.

— Se quiser culpar uma pessoa, culpe a mim, senhor — disse Eike.

— Não será preciso ficar culpando ninguém, afinal não cometeram crimes para serem julgados. Eu só quero saber mesmo o motivo de irem para a casa dos empregados.

— Senhor, os empregados já não dormem naquela casa...

— Se você falar mais uma vez, eu darei o que você merece. Virou advogado deles? — repreendeu para Eike.

— Como ele disse, soubemos que não havia ninguém morando naquela casa e decidimos investigar — respondeu Jacob.

— Prossiga.

— O nosso colega aqui nos disse que um dia desses viu algo sair numa maca para dentro do que parecia ser uma ambulância. O suposto corpo saiu daquela casa. É por isso que fomos investigar.

Claramente Eike ficou muito incomodado com a afirmação de Petro.

O supervisor sorriu para os três, levantou-se e foi para o basculante da janela. Viu um pedaço do gramado do lado de fora.

— Vocês conhecem a sensação de estarem na mesma situação que muitos dos de seus grupos sociais durante a guerra? Você é ucraniano. Passou fome na vida?

— Não.

— E por que não?

— Meus pais me trouxeram para Minsk. Eles são comunistas e foram beneficiados.

— Exato. Eles lutam pelo que é justo. Lutam pelos mais necessitados e assim manterem a ordem. Em troca, eles cuidam do filho que tem. Vocês dois são judeus. Os comunistas perseguem os judeus?

— Não — respondeu Jacob.

— Claro que não. Os fascistas são os que perseguem. Eles foram colocados lá pelo racistas religiosos e conservadores. Aqui vocês desfrutam de uma boa liberdade. Podem viver suas vidas... normalmente, sem ameaçarem o estado. Entretanto, desertores e traidores merecem uma punição severa do povo. Vocês querem ser julgados pelo povo? 

Balançaram a cabeça.

— De fato era uma pessoa naquela maca, e o povo setenciou-o à morte por ter perdido o foco do caminho certo. Façam-me o favor, não aprontem como se fossem espiões prontos para darem o bote. Não desejem estar na lista negra da diretora. Falo como amigo. Agora voltem para os seus dormitórios, durmam e dediquem as suas vidas à luta do povo contra a burguesia. Dispensados.

O sermão do supervisor serviu de alerta para Jacob sobre a convivência com os comunistas na escola. À primeira vista o que ele havia dito sobre a ideologia fazia sentido, mas a parte "punir severamente" deixou a entender que os vermelhos eram tão extremistas quanto os nazistas.

— Depois a gente conversa, Eike. Vamos, Petro.

Os colegas de quarto entraram e deixaram Eike para trás. O judeu ficou descontente com a interferência de Petro na conversa sobre o corpo na maca, também sua inveja aumentou depois que Jacob, outro judeu, preferiu ficar mais íntimo de um católico. No seu quarto ficou pensado nas palavras do supervisor e como poderia usá-las a seu favor.

O ano de 1940 passou tranquilamente para Jacob. As doutrinas serviram para a conversão da maioria dos alunos a servirem aos pensamentos Stalinistas e ateístas. Outros como Jacob preferiram não se incomodar com o assédio dos professores aos alunos religiosos, ficando neutro nesse assunto. Uma minoria resistiu fortemente e permaneceram firmes com as suas crenças religiosas, e Petro era desse grupo. Mal visto pelos professores e a maioria dos alunos, eram frequentemente discriminados pela sua fé. E mesmo depois de saberem da morte do casal Porochenko, os professores continuaram o assédio a Petro.

— Como foi o enterro?

— Eles morreram fazendo o que gostavam, não? Nunca os apoiei pela traição ao povo ucraniano, mas não posso remoer o passado.

— É. É isso o que você tem que fazer. Minha família sempre me tratou bem, porém as circunstâncias na Polônia me fizeram seguir em frente sem olhar para trás. Não é a mesma situação, mas o sufoco é o mesmo.

— Betina e Fritz Porochenko. Talvez eu até coloque esses nomes nos meus filhos.

Os alunos ficaram encarando feio para Petro e Jacob por causa da amizade deste com o religioso. No final daquele ano, a escola de Minsk já separava muitas coisas entre ateus e religiosos. O ateísmo de estado era poderoso e converteu praticamente todos na sala de Petro.

— Senhor Porochenko, venha cá.

— Sim? — o ucraniano se levantou da carteira e foi falar com Chiara.

— Entregue-me o seu caderno, por favor?

O rapaz deu o caderno para ela. Imediatamente Chiara arrancou as páginas com alguns versículos do Salmos.

— Isso é proibido nesta escola.

— Mas nem é Bíblia. Será que nem versículos posso...

— Não pode.

Na semana do Natal, Petro ficou relembrando as reuniões familiares que tinha no dia 24 de dezembro. As tradições natalinas, o padre que era muito amigo do seu avô. Tudo estragado pelo comunismo.

— Eu entendo a sua frustração. A gente celebrava o Chanucá em família, mas agora não podemos. Eu aqui não posso e minha família lá também não. Somos escravos da opressão desses governos — disse Jacob com uma caneca de chá na mão.

— Não aguento mais. Meus pais devem estar no inferno agora. Eles me colocaram nessa situação.

Jacob ofereceu o chá para o amigo e pediu que ficassemais calmo. A maioridade logo seria alcançada e os dois poderiam sair da escola.

— Conte-me mais do seu avô. O meu acho que ainda está vivo em Cracóvia. Ele mora com os meus pais.

— Meu avô era um senhor muito legal, gentil e religioso. As reuniões familiares sempre eram boas e divertidas. Tudo mudou quando os revolucionários invadiram a fazenda com o consentimento dos meus pais e permitiram que lá virasse um tipo de refúgio comunista. Meus avôs se opuseram, foram expulsos da própria moradia.

— Isso foi no tempo da fome?

— Depois. A gente havia saído de Kiev e morávamos no interior mais ao sul. Os comunistas eram da Criméia e haviam invadido boa parte da Ucrânia.

— Sinto muito.

Do lado de fora, Eike ouvia escondido a conversa dos dois. Ele havia denunciado sobre o caderno de Petro.

Minsk, 1941

O ciúme de Eike chegou a um nível tão elevado que seu desejo de despachar defitivamente Petro para longe de Jacob virou uma obsessão. Das outras vezes, porém, não conseguiu atingir o rapaz. Na aula sobre política, a professora Chiara humilhou a religião e exaltou o ateísmo como a nova fórmula para a felicidade humana.

— Alguém quer refutar? Eike.

— Eu só queria dizer que concordo com tudo o que a senhora disse. A religião é um grande mal assim como Karl Marx falara. Mas a gente não pode excluir totalmente o que pensam os religiosos. A senhora deveria dar uma chance para deixá-los falarem o que pensam.

— É mesmo?

— É. Não é, Petro? Diga para todos nós o que você pensa sobre tudo isso. Não se acanhe. Seja sincero.

Petro era o único da classe que era religioso. No momento que Eike o chamou, os demais alunos viraram para encará-lo.

— O que eu penso é que proibir o ser humano de se conectar com Deus é uma perda de tempo.

O rosto de Chiara mudou assim que obteve a resposta. Respirou fundo, piscou algumas vezes e tentou ser cordial.

— Meu bem, os religiosos acreditam num amigo imaginário. Quer que levemos a sério isso?

— Não é amigo imaginário. Deus não precisa provar para os nossos olhos que existe. A fé do homem pode vê-lo.

Eiko e Jacob apenas observavam.

— Deixe-me ser clara. Se a ciência não prova que esse deus existe, ele não existe.

— Nem tudo o que é invisível é imaginário, professora. O problema é que vocês não querem respeitar a liberdade do indivíduo exercer a sua fé. Por que eu tenho que ser fiel ao estado opressor?

— Não viu o que houve na Alemanha, Petro? Os religiosos puseram um fascista racista no poder. Como posso ter respeito com vocês? Se não fosse pela revolução de 1917 ainda estaríamos sendo saqueados pelo czar, pela igreja e os burgueses. Você não é religioso? Pois saiba que Jesus era um socialista.

— O Senhor Cristo nunca foi um socialista! Ele sentiria nojo dos governos da Europa. O estado era o pior inimigo dele. Jesus amava as pessoas, não o estado!

— Fascista! Já para a sala da diretora. Aqui você não fica, moleque. Um extremista na minha classe é o fim da picada.

Sem poder fazer nada, Jacob viu o amigo sendo levado para a sala da diretora. Era a primeira vez que aquilo acontecia com ele.

A sala da diretora Agnessa Doris Falin era bem aconchegante e luxuosa. Havia mogno em quase todos os móveis. No chão um tapete com a pele de algum animal selvagem, além de cabeças de cervos nas paredes.

— Entre. Sentada numa confortável poltrona roxa, Falin mandou o garoto sentar na cadeira do outro lado da mesa.

— Quer beber alguma coisa? — disse ao levantar para pegar uma bandeja com um bule e xícaras.

— Não, senhora.

— Adoro chás. Adoro café também. Pena que ultimamente está em falta por aqui.

Olhando bem para ela, Petro percebeu uma forte semelhança dela com uma leitoa. Além de ser baixa e gorda, Falin tinha bochechas rosadas e um nariz um pouco arrebitado, dando a impressão de ser nariz de porco. Dessa vez a ex-revolucionária vestia uma roupa militar.

— Eu soube que você falou mal do governo. Poderia se explicar?

— Não falei mal do governo. Eu somente disse que o estado não podia cercear o direito do cidadão de exercer a fé, e fui taxado de fascista.

— O senhor sabe que o governo socialista repudia a prática da religiosidade por causa do risco de surgir um novo Hitler ou Mussolini, e na maioria das vezes eles ficarem ao lado dos endinheirados? É a síntese dos religiosos. Nada pode ser feito. E você achando que o estado seria compassivo com a religião? É como confiar numa cobra venenosa — a diretora retirou um documento para o rapaz assinar.

— Assine aqui e renuncie à sua religião.

— Nunca.

— Bom, seria melhor assinar. Estávamos dispostos a perdoar os seus erros, mas você preferiu continuar no mesmo erro. Suspendido das aulas por uma semana.

No decorrer dos dias Eike se aproximou mais de Jacob, sobretudo nas aulas. Contudo, o loiro continuou a falar que Petro era o seu melhor amigo dali, deixando Eike bastante irritado. Para ele era inconcebível um judeu e um católico serem mais amigos do que dois judeus.

— Ele me paga.

O judeu polonês se aproximou de um guarda vermelho e ofereceu dinheiro para ele contrabandear uma Bíblia Sagrada — proibidíssima naquela escola. O guarda aceitou o suborno e prometeu levar. No dia seguinte, aproveitando a ausência de Petro, colocou o objeto embaixo do colchão. Horas depois uma denúncia "anônima" de um bilhete deixado por debaixo da porta da diretora fez com que outros guardas fossem atrás da Bíblia. Assim que encontraram o objeto, Petro foi acusado injustamente e levado outra vez na sala da diretora.

— Meu filho, parece que gostou mesmo de me visitar. Duas vezes essa semana.

— Eu já disse, senhora diretora, eu não pus aquela bíblia lá. Alguém fez isso sem que eu soubesse.

Agnessa pegou o telefone e ligou para o chefe da segurança. Diferente da outra vez, a megera não falou muito.

— Aposto que dessa vez eu te faço esquecer esse seu deus.

A diretora foi pessoalmente acompanhar o aluno e os guardas para fora da escola e dali para a antiga casa dos empregados. Destrancou a porta e caminhou pelo corredor e abriu uma outra porta, de ferro.

— Alguns alunos quiseram saber o que havia neste local. Venha.

Havia um quarto simples com uma cadeira, uma mesa e um colchão. Um banheiro era conjuntado. As janelas possuíam grades de ferro, a porta de ferro possuía uma abertura pequena com grades como de prisão.

— Sirva-se — Agnessa foi até a mesa e mostrou uma bandeja.

— O que é isso?

— Tire a tampa da bandeja.

Ele o fez. Dentro da bandeja havia um prato farto de comida de boa qualidade com frango e muitos temperos, uma jarra de suco e um copo.

— Pode comer. Não está envenenado. E sabe por quê? Porque essa será a sua última refeição como uma pessoa religiosa. Enquanto você não renunciar sua religião, não poderá comer. Alguma dúvida?

— Não.

— Que bom. Porque o senhor sabe que pessoas da sua laia merecem ser punidas pelo povo. Com licença.

Ela trancou Petro na sala e deixou dois guardas armadas na frente da casa.

Passaram alguns dias desde a prisão de Petro no Quarto da Inanição. Impossível que Jacob pudesse ficar de braços cruzados e pediu uma reunião com a diretora.

— Como não pode fazer nada? O meu amigo tá há quatro dias sem comer nada. Isso é tortura.

— Não posso fazer nada, senhor Jacob. Eu fui clara que ele só sairá dali se renunciar à religião definitivamente. Eu tenho um documento que reconhece a conversão do indivíduo ao ateísmo, e fica no registro do governo. Mas ele não quer largar o osso.

— Eu sei das suas preocupações, mas não seria melhor respeitar o livre arbítrio?

Pôs açúcar no chá e bebericou um pouco.

— Não. Ele tem que respeitar o comunismo, o estado, Stalin e a revolução. Se ele não o fizer, positivamente morrerá de fome. Estou fazendo muito dando água para ele.

O rapaz saiu da sala de Agnessa com a certeza de que o corpo que Eike viu há um ano sair na ambulância fora de uma vítima da diretora que morrera de inanição. Agora o mesmo destino sombrio aguardava o seu melhor amigo.

Uma semana se passou. Os soldados vermelhos levaram opositores e religiosos para a Sibéria a fim de trabalharem em campos de trabalhos forçados. Em Minsk houveram rumores de um possível confronto entre a URSS e a Alemanha Nazista.

— O que houve? — perguntou Agnessa assim que viu dois soldados entrarem na sua sala.

— Senhora Falin, o seu filho pediu para que a senhora retornasse a Moscou imediatamente.

— Por quê?

— Desculpe, senhora. Ele não deu detalhes sobre isso, mas disse que ficar aqui seria perigoso à sua vida.

— Esse meu filho... tão preocupado. Sou uma mãe muito sortuda, não?

Não demorou para que a diretora arrumasse as coisas para sair da Bielorrússia imediatamente. Nem mesmo os professores foram avisados da sua saída.

— Por favor! A diretora se mudou, mas deixou Petro lá. Pelo amor que você tem para a sua família, tire-o de lá.

— Tentarei ser legal da última vez contigo, por respeito ao Andrej que é o meu amigo e te trouxe. Venha.

O guarda destrancou a porta do quarto. A visão de Jacob: Petro deitado no chão, quilos mais magros e muito fraco. Pediu ajuda do soldado para carregá-lo até a enfermaria.

— Trouxe o traidor?

— Traidor de quê? Hein, Eike? O cara ficou vários dias sem comer por puro capricho da diretora.

— Desculpa por ter dito aquilo. É que o Petro já tem uma reputação manchada e a escola inteira vive falando dele.

— Besteira!

Sem muita paciência para ouvir Eike, Jacob saiu imediatamente do dormitório e foi para a enfermaria ver o amigo. Petro recebia soro na veia e seu estado era grave.

— Oi, amigo. Como vai?

— Não muito bem... mas continuei firme. E pensar que o meu povo sofreu isso no holodomor.

— Você foi salvo. Sem o Wolfram aqui, você é o meu outro irmão. Agora descansa. — Petro segurou no braço do outro.

— Foi uma armação. Alguém colocou... colocou a Bíblia embaixo da cama e disse para a diretora. Tem alguém... alguém com tanta inveja que foi capaz de forjar aquilo pra mim. Tenha cuidado.

— Eu vou ter.

Soldados russos invadiram a escola e pediram para que a maioria fosse transferida para o leste. Um deles foi justamente Petro Porochenko. Infelizmente nenhuma resposta significativa foi dada.

Junho de 1941

Poucas semanas após a dramática partida da maioria dos estudantes, o resto teve que continuar estudando normalmente. A professora Chiara servia como uma espécie de plantonista e enchia o saco de quem ficou. No refeitório, por volta das nove da manhã, os alunos e professores se reuniram para mais um dia normal que teriam. Todos os dias, por um ano e meio, Jacob aguentou calado as piadas de mau gosto da professora Chiara sobre as religiões, até agora.

— A senhora acha certo brincar com isso depois do que aconteceu? Petro quase morreu de fome. Ele foi torturado por causa da sua convicção em exercer o livre arbítrio. Isso para a senhora é motivo de graça?

A exaltação de Jacob pegou todos de surpresa.

— Deixe-me explicar que o seu amigo era um fascista...

— Não era!

— Era sim. Quem exerce a religião que for é fascista. Eu já disse que não adianta ter fé e fome. Se servir ao estado, terá muita prosperidade. Por exemplo, se deus existe, por que ele não não aparece e realiza nossos desejos? Peça a deus que faça chover bombons de chocolate nessa sala. Não? Agora peça a Stalin que faça chover bombons. Ele fará.

Pelo teto, centenas de doces de chocolate caíram. Os alunos foram correr pegar no chão.

— O estado é o grande provedor, não um amigo imaginário.

Assim que terminou de dizer aquilo, Chiara foi surpreendida por uma explosão. Aviões nazistas bombardeavam Minsk com o ataque surpresa perpetrado por Adolf Hitler e a sua cúpula militar. As paredes e o teto desabaram, obrigando os alunos a fugirem para fora da instituição. A professora Chiara foi esmagada por um pedaço de concreto. Os guardas foram mortos sem exceção e os alunos que ficaram para trás foram presos pelos alemães. Nesse grupo de alunos, professores e funcionários estava Jacob.

— Vamos! Subam logo.

Um guarda alemão gritou para que todos subissem no caminhão. Dois grupos, cada qual em um caminhão, partiram para o oeste, num acampamento militar nazista. Durante a viagem, Jacob segurou a identidade — parecida com uma carteira de trabalho — e o velho livro de contos.

— Saiam.

Foram horas de viagem até chegarem no acampamento na fronteira.

Sujo do pó do concreto e com as roupas rasgadas, o judeu sentiu-se no fim da linha para si. Os nazistas provavelmente matarão os dois grupos de prisioneiros mesmo não sendo judeus, apenas pelo fato de serem comunistas... doutrinados pelos comunistas. Enfim, para os nazistas aquilo não importava muito, apenas conquistar o leste da Polônia e a Bielorrússia.

— Todos fiquem aglomerados aqui. Mais prisioneiros virão. Quem correr, atire.

O guarda principal saiu por alguns metros e e entrou numa tenda militar. Voltou para os reféns e disse que matariam quaisquer judeus ali. Para a sorte de Jacob, havia mais uns dez judeus, incluindo dois professores comunistas e dois zeladores.

— Você. Traga-o aqui — dois soldados levaram um professor judeu para perto do guarda principal.

— Sou o tenente Wolkner. Você conhece todos os judeus daqueles dois grupos?

— Sim... mas eu juro que eu não sou um!

— Hum, eu não o acusei de nada. Aliás o comandante ali vai recompensar os que disserem a verdade. Qual é o seu nome?

— Louis Fritz.

— País de origem.

— Tchecoslováquia.

— Você não tem fisionomia de tcheco. Que mentira! Abaixem as calças dele. A prova irrefutável de que você não é cristão.

Os soldados deixaram o professor nu da cintura para baixo. Obviamente o tenente viu a circuncisão e concluiu que ele era judeu. Para completar a desgraça, decobriu que o homem era comunista.

— Um comunista e judeu ao mesmo tempo, hein? Coloquem-no na área dos presos que mandaremos aos campos de concentração.

No grupo, Jacob escondeu o documento e ficou observando os demais serem levados. Na sua vez, era iminente o seu destino nas mãos dos nazistas, mas havia uma possível saída.

— Nome?

— Ralph... Trutzinsky. Senhor, vocês são alemães?

— Claro.

— Eu sou também. Sou ariano como vocês.

O soldado foi ao tenente e revelou o ocorrido, este se aproximou de Jacob e pediu para provar. De cara o loiro provou ser da Baviera e logo o sotaque foi percebido pelo nazista.

— Só um momento. — Foi até a tenda e voltou. — O comandante está chamando-o. 

O guarda largou o seu braço e respeitosamente o levou para dentro da tenda. Um homem por volta de seus cinquenta anos, por trás de uma mesa, apareceu.

— Esse é o ariano?

— Sim. Acredito que precise ouvi-lo — respondeu o tenente.

— Senhor, sou alemão de sangue puro. Chamo-me Ralph Trutzinsky, sou da Baviera. 

O comandante analisou a aparência física do rapaz, o seu sotaque, fez perguntas sobre o básico de história alemã. Por incrível que pareça o meio-judeu passou e foi saudado pelos nazistas.

— Meus pais eram católicos. Eles tinham uma fazenda no leste da Polônia, mas os comunistas se apropriaram de tudo. Fomos obrigados a ceder. — Inventou um choro.

Os nazistas ficaram indignados com o tratamento que "Ralph" havia tido com os comunistas e prometeram matar todos eles e recuperar a Europa por completa.

— Nós não perdoaremos os russos por isso. Muitos alemães como você estão sofrendo. Mas eu garanto que esse sofrimento é passageiro.

Depois de algum tempo, ofereceram um cesto com frutas e roupas novas para ele. Na hora de trocar de roupa pensou no tamanho da sorte que teve. A sua aparência física contou bastante para enganar os nazistas e assim evitar a sua morte.

O livro de Kafka caiu no chão numa página dobrada. Aquilo foi uma surpresa para ele, pois não fizera isso. Escrito à lápis a frase "Foi Eike quem me...". O conteúdo escrito estava claro, um pouco borrado e faltando uma parte. Jacob deduziu que Petro havia escrito aquilo na pressa, momentos antes de ser deportado. Mas o que ele queria dizer era o mais importante: Eike havia armado tudo e feito a diretora torturá-lo.

— Meu Deus — as deduções deixaram Jacob desnorteado.

Na manhã seguinte, ainda no acampamento, um caminhão com mais prisioneiros chegou. Wolkner chamou Jacob para traduzir os prisioneiros do russo para o alemão.

— Jacob! Jacob!

Vendo de soslaio a pessoa que gritava o seu nome, o loiro notou a presença de Eike. Uma dupla raiva aumentou em seu peito: primeiro por causa da traição de Eike, segundo porque não podia tirar satisfação ali na frente dos soldados.

— Jacob!

— Quem é Jacob? Quem é esse garoto escandaloso? — indagou Wolkner.

— Não sei. Não o conheço...

— Quê? Mentiroso. Ele se chama Jacob e é judeu também.

— O que ele fala?

— Que me conhece e que sou judeu.

— Aposto que ele fala mentiras, certo? Vá e fale com ele.

— Eu me chamo Ralph Trutzinsky. Sei lá quem é Jacob. Por que faz isso?

Eike foi pego de surpresa com a atuação de Jacob.

— Traidor... — cochichou. — Sei de toda a verdade. Incriminou falsamente Petro.

— Mas... mas é porque somos judeus e você só vivia com aquele ucraniano maldito. Eu fiz por nós.

— Cala a boca, judeu nojento! Você não me conhece!

— Conheço sim! Vou revelar pra todos agora mesmo quem você é.

Sem hesitar, Jacob deu um soco na cara de Eike. Os guardas aplaudiram. Depois o judeu polonês pulou para cima de Jacob e acertou alguns golpes. Soldados partiram pra cima dele, mas ele foi rápido e correu para longe do acampamento, sendo atropelado por um caminhão.

— Uhull. Menos um judeu no mundo. Você tá bem, amigo?

— Si-sim...

Jamais pensou que brigaria com outro judeu e que haveria morte ali. As coisas saíram fora de controle por um instante, mas depois da morte de Eike que tudo voltou ao normal. Mais ou menos.

***

Duas semanas depois.

Jacob Wilczogórski sob o nome falso de Ralph Trutzinsky foi recrutado pelo exército alemão para lutar contra os comunistas na fronteira. Durante os exercícios militares conheceu o soldado Joseph Bernhardt. Juntos fizeram uma ótima dupla, apesar de terem dez anos de diferença.

— Ralph, não vai se juntar a nós? — perguntou Joseph assim que viu-o só na fogueira. Momentos antes o loiro havia queimado a sua identidade.

— Eu sempre gostei da solidão. Não me leve a mal, Joseph, mas quando eu faço uma amizade... ela é desfeita com a morte ou partida do meu amigo. Eu tive dois amigos, um morreu e o outro foi levado pelos comunistas.

— Parece que você é uma pessoa complexa. Bom, vou para o alojamento.

Aguardando todos os demais soldados dormirem, Jacob se meteu dentro de uma banheira com água morna. Ficou relaxado por alguns minutos até sentir uma mão segurar o seu órgão genital. Imediatamente pulou para fira e só depois viu que se tratava de Joseph.

— Sai fora, cara. Oush!

— Você é circuncidado. Arianos não são circuncidados. Você é judeu.

Jacob, enrolado numa toalha, tentou correr dali, mas foi impedido por Joseph. O soldado acalmou o jovem e disse que não falaria para ninguém o seu segredo. Eles foram ter uma conversa franca.

— Não se preocupe, eu guardarei segredo tanto do seu nome quanto da sua origem. Confia, eu tenho os meus segredos também. Sabe... eu gosto de outros homens.

— Isso deu pra notar. Você quase arranca o meu saco. Tá doendo até agora.

— Desculpa. É que foi a única maneira de tirar a prova da sua real identidade. Você era sempre esquivo quando o assunto era ficar nu. Mas na real você é perfeito de rosto e de corpo. Como um judeu pode ser assim? 

— Talvez porque a minha mãe seja ariana e o meu pai judeu. Sou meio a meio.

— Então tá explicado. Escuta, eu juro que não falo que você é judeu e você não fala que sou gay. Combinado?

Os dois apertaram as mãos e se tornaram amigos. Era o terceiro amigo que Jacob fazia fora de Cracóvia e foi o segundo que morreu perto dele. Na trincheira e com o rádio perto de si, Jacob decidiu entrar em contato como exército russo e se render de uma maneira nada convencional.

— Aqui é Jacob Wilczogórski. Eu me rendo! Eu me rendo! Sou um espião do Exército Vermelho que estava com os alemães para espioná-los. Por favor não atirem.

— Saia da trincheira, levante os braços segurando o fuzil sobre a cabeça. Vamos te buscar aí.

— Certo.

A intenção de Jacob era clara: voltar para o lado que vencia, ou seja, os comunistas. Ele se aproximou da trincheira russa e os russos saíram para capturá-lo. Mal sabiam, inclusive Jacob, que os nazistas escondidos ficaram de tocaia e saíram quando viram os russos saírem. Eles abateram os mais de dez russos sem nenhum esforço.

— Vencemos! É incrível.

— E graças ao nosso colega, Ralph!

Os nazistas seguraram Jacob nos braços e jogaram-no para cima. Todos eles consagraram Ralph Trutzinsky como o soldado alemão perfeito.


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