Cracóvia escrita por Sensei Oji Mestre Nyah Fanfic


Capítulo 4
Gueto




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Em algum momento do ano de 1941...

Ilona continuou a chorar na beirada da cama hospitalar, ao lado do seu pai, baleado duas vezes nas costas horas antes. Em coma induzido, Henrich Scherzinger lutava para continuar vivo e escapar da morte.

— Vamos, querida. O médico pediu para que saíssemos do quarto —disse Antje, pegando a mão da filha e levando-a ao corredor do hospital.

Na recepção, uma jovem madame, trajando um vestido branco e chapéu, pediu informação sobre o estado do militar baleado.

— Você tem alguma identificação? Oh, só um instante — atendeu ao telefonema.

A misteriosa mulher subiu as escadas calmamente, sempre segurando uma bolsa. No andar da UTI, caminhou quase que imperceptível, entrou no quarto onde os empregados colocavam as fardas e jalecos. Vestiu-se como enfermeira, colocou uma droga potente na seringa e saiu com a bandeja sem ser notada como uma intrusa.

Aproveitando-se da ausência de uma enfermeira no quarto, ela entrou e injetou o veneno na veia do paciente. O coração do homem teve um colapso cardíaco e consequentemente a sua morte.

— O que houve? — perguntou o médico para as enfermeiras.

Já era tarde demais. O major nazista faleceu em pouquíssimo tempo. A causa e a causadora não foram reconhecidas.

 

Vamos rebobinar a história para um passado próximo a esse fatídico acontecimento.

No ano de 1939, ao comemorar a sua promoção, Grimsley transou com a garçonete de uma cervejaria em Berlim. A moça de nome Olga Hermann Ribentropp se apaixonou pelo caçador de judeus e piloto da força aérea. O tapa que levou fora um pedido seu, ou seja, seguramente era uma amante do masoquismo e sentia prazer numa bofetada.

Num reencontro no início dos anos 40, mais uma vez eles fizeram sexo. A partir desse dia a dupla entrou em um acordo comum e benefícios próprios.

Na cervejaria, o dono, um coroa barrigudo, pediu explicações sobre a sua ausência de dois dias. Claramente constrangida, a loira jogou charme para cima dele, levando um tapa no rosto.

— Vagabunda. Tá saindo com algum macho por aí? Diz logo.

— Sim. Ele é forte e jovem. Muito diferente de um porco como você.

O homem tentou se aproximar, mas levou um tiro na barriga e caiu. Ela apontou o cano da arma na altura do seu pênis e descarregou o revólver ali.

 

Nome: Olga Hermann Ribentropp

Idade: 20 anos

Ocupação: garçonete/mercenária

Afiliação: Grimsley Forchhammer

Maior feito: Matar o Sturmbannführer Scherzinger.

 

Ela se filiou ao partido nazista apenas como observadora, pois era raro uma mulher ter visibilidade dentro do partido. Contudo, ganhou proteção de seu amor, Grimsley. Desde então a dupla cometia crimes com teor sexual, ela se prostituía, matava o acompanhante com uma seringa com veneno.

— Como foi a minha Víbora Vermelha? — perguntou ele quando a moça entrou no carro.

— Aquele lá está morto e no lugar onde não se volta mais. A não ser que ele vire um fantasma e nos assombre.

— Você foi perfeita. — Deu um beijo nela.

Foi a primeira vez que o impiedoso piloto se envolvia na morte de um outro nazista. Todavia, esse não foi o seu ápice da covardia.

...

Rebobine outra vez a história. O jovem Wolfram contrangeu-se ao encontrar duas moças no banheiro masculino. Claramente notado como judeu, a sua preocupação era que fosse castigado. Ele só não esperou que uma série de eventos, incluindo um acontecimento naquele banheiro, chegasse a uma trágica conclusão.

 

Teatro de Cracóvia

— Preciso tomar um ar fresco.

Scherzinger foi seguido por Grimsley sem saber. Viu o tio levar uma moça bonita para dentro do banheiro, minutos depois sair apressadamente.

— Tome. Enxugue as suas lágrimas com isso.

— Perdão?

— Desculpe-me pela minha indelicadeza, senhorita. Grimsley Forchhammer. Sou sobrinho daquele homem que esteve contigo no banheiro. Lembra de mim? Nuremberg?

Ela recusou o lenço e tentou sair, mas seu braço foi segurado com uma relativa força. O jovem nazista ameaçou prendê-la.

— Vamos caminhar pela rua aqui da frente. Espairecer as ideias.

Sem muita saída, contou a verdade para ele. Seu relacionamento amoroso de três anos com Scherzinger. Foi prometida em casamento, mas que na última hora o comandante a dispensou por causa do escândalo que seria e do futuro da carreira dele. Vivien percebeu que o rapaz sequer se chocou com a atitude do tio, mas ficando feliz e até beijou-lhe a mão.

— Meu tio não é o príncipe encantado que você imagina. Traiu a minha tia várias vezes e até mesmo é um cônjuge agressivo.

— Ele nunca foi agressivo comigo.

— Não se deixe enganar, moça. Com a minha tia foi a mesma coisa. No começo do casamento eram flores, mas com o passar do tempo ele ficou um canalha em potencial. Ele provou isso a você da pior maneira, não foi? Abandonada, prometida, uma amante que só serviu de souvenir, usada e abusada.

A modelo chorou. Grimsley pegou um lenço e deu para enxugar as suas lágrimas. Dessa vez ela aceitou.

— Fique na cidade esses dias. Eu estou de folga por ora e consigo visitar Cracóvia com mais facilidade. Vamos dialogar sobre o seu envolvimento com o meu tio e os caminhos tomados para que alcance a felicidade. — Acariciou o rosto dela. Depois entrou novamente no teatro deixando uma dama sozinha na rua.

O piloto ficou por alguns dias em Cracóvia, hospedado na casa dos tios. Combinou um encontro com Olga durante esse período de folga.

— Para com ciúme. A senhorita Vivien Barr está sendo manipulada para me fazer um favor maior — disse Grimsley beijando Olga.

— E quem garante que você não esteja me manipulando também?

— Meu amor, você é muito inteligente para ser manipulada. Você é diferente das outras mulheres, porque se parece uma versão minha de saia.

No retorno para a mansão, Grimsley encontrou a tia colhendo flores do jardim e pediu a sua benção. Ao mesmo tempo em que Ilona chegava da universidade.

— Quanto tempo mais vai passar aqui?

— Boa tarde pra você também, prima. Eu logo partirei para a Alemanha. Luftwaffe precisa do seu melhor homem.

Ela beijou o primo e foi ajudar a sua mãe no jardim.

Grimsley retornou para a sala de visitas da mansão e ficou mexendo em suas armas. O telefone sobre a escravinaninha tocou.

— Não tem empregado aqui? Droga.

Os empregados foram ordenados a ajudar na colheita de frutas na área externa atrás da mansão. Muitos eram judeus e poloneses — alguns judeus eram acadêmicos que viraram empregados por causa do governo. Antje escutou o telefone tocar e foi correndo para atender, mas o sobrinho o fez pouco antes.

— Quem era?

— Engano. 

— Mas já vai sair de novo, querido?

— Esqueci que preciso me encontrar com uma pessoa. Diga ao tio que volto mais tarde.

Dessa vez o rapaz trocou a farda por uma roupa civil e saiu vestido num terno preto. 

 

Passaram três dias desde que Naftali fora assassinado ao lado do amigo. De lá para cá Wolfram se trancou no quarto e praticamente não comia e nem bebia, preocupando ainda mais uma já preocupada Sofia.

A campainha tocou, Angela abriu a porta e viu o editor do jornal parado na entrada.

— Siegfried!

— August, posso entrar?

O idoso assentiu. Siegfried passou pelo vestíbulo e cumprimentou a família. O intuito da visita era dar uma nova para Wolfram.

— Filho, o doutor Siegfried está aqui.

Com os cabelos desgrenhados, ainda vestindo o pijama e sem a mínima empatia, Wolfram apareceu na sala. Desculpou-se pelas faltas no trabalho, pedindo a demissão imediata.

— Entendo que foi difícil presenciar a morte do seu amigo. Muitos judeus têm destinos semelhantes e o paradeiro dos seus corpos é incerto. Muitos são cremados e as cinzas jogadas e nunca a família saberá o que aconteceu com a pessoa. No entanto, eu usei os meus contatos no governo e pedi a custódia do corpo... Naftali teve um enterro. Quer vir comigo ver o local do sepulcro?

Somente Siegfried e Wolfram saíram no carro para uma área do interior, perto de uma floresta na região. Infelizmente judeus não podiam ser enterrados em cemitérios locais, porém o jornalista driblou um pouco a lei e fez uma vala simples e comprou uma lápide.

— Não é o que ele merecia, mas foi o máximo que eu pude fazer.

As folhas amareladas das árvores, o vento batendo no cabelo do jovem depressivo, as olheiras em sua face, tudo era de uma melancolia aprofundada. Como se a melodia da depressão se resumisse àquele momento.

— Eu odeio a Alemanha. Odeio os alemães...

— Não fale isso, Wolfram. Nem todos os alemães são assim. Eu não sou assim, a sua mãe também não. Acontece que os nazistas praticamente lavaram o cérebro da massa. O ás na manga de Hitler é Goebbels. Sem ele o governo logo acabaria. Mas sempre me disseram que as coisas só melhoram depois de uma piora. 

— Ele tinha sonhos. Queria ser um músico. Assim como eu, ele teve o sonho interrompido. Milhares tiveram os seus sonhos interrompidos! — Wolfram se ajoelhou e começou a chorar copiosamente. O editor se agachou e abraçou o adolescente.

— Enquanto eu puder proteger os judeus que trabalham no meu jornal de algum jeito, eu o farei. Precisa ser forte, meu jovem.

 

Outubro de 1940

Uma comitiva do nacional-socialismo e da S.S. apareceu numa região para ver o andamento da construção de um nova área do campo de concentração local. A área primariamente servirá como presídio e trabalhos forçados para judeus, soviéticos e outros cujo o Reich julgava inimigos.

O comandante da S.S. de Cracóvia desceu do carro e acompanhou os políticos e altos membros da schutzstaffel da Polônia.

— Esse campo foi feito com a missão de alocar milhares de prisioneiros de guerra e pessoas indignas de viverem numa sociedade higienizada. Os indignos são trazidos e forçados ao trabalho.

O direitor do campo, Obersturmbannführer Rudolf Höss apareceu para a comitiva e deu as boas vindas a todos. Sim, o campo se chamava Auschwitz.

 

Beliebt Zeitung

Seria mais um dia de trabalho para Siegfried Bonner no jornal local, porém uma multidão na entrada o surpreendeu. Eram os seus trabalhadores judeus e não-judeus que foram impedidos pela Gestapo de entrarem.

Sem entender muito, o jornalista parou o carro e saiu escoltado por um policial do serviço secreto.

— Acompanhe-me, senhor — disse um guarda.

Dentro do gabinete do editor-chefe, Buchmann tentava convencer o major Lars Krafta que o jornal era pró-nazista. O espião sorriu para o gordo, levando na zombaria o que o sargento afirmou.

— Aí está ele.

Lars Krafta era bem caricato. Um homem careca, de estatura não alta, magro e ostentando um bigode ruivo proeminente.

— O que significa isso?

— Você deve ser o dono deste estabelecimento, hã? Sente-se, senhor Siegfried Bonner — colocou uma cadeira para ele sentar.

Siegfred sentou-se e Krafta sentou na cadeira do jornalista. Entrelaçou os dedos sobre o birô e olhou para o empregador de judeus.

— Estou aqui, senhor Krafta, por um propósito como jornalista de informar à população.

— Eu admiro a sua abnegação, senhor Bonner. No entanto, há queixas de que as colunas do seu jornal se mostraram ultimamente hostis ao governo. Por exemplo, falando sobre os guetos em toda a Polônia, especulações e até uma crítica sobre o diretor de Auschwitz.

— Nada contra o governo. Apenas uma informação sobre uma pessoa de atitudes talvez não morais.

O major se levantou e caminhou até a janela do escritório.

— Rudolf Höss fez uma queixa formal ao governador, o governador então acionou a Gestapo e estou aqui. Descobri que o senhor empregou dezenas de judeus que seriam deportados, atitude suspeita.

— Sinceramente, senhor Krafta, mas outros alemães empregam judeus no país.

— Mas o senhor é o único que publica críticas ao governo geral.

Krafta voltou para perto da mesa e entregou um papel para o jornalista com a ordem de fechamento do jornal.

— O que significa isso?

— Que o jornal será fechado e o senhor extraditado para a Alemanha. Aposto que não precisará mais dos judeus.

Um barulho de tiro assustou o jornalista. Gritos do lado de fora acusaram que os assassinatos começaram. Siegfried se levantou e foi olhar pela janela.

— Mas o que significa isso?

— São eles contra nós, senhor. 

Os policiais da SS receberam ordens para matar sumariamente os 42 empregados judeus ali mesmo. Alguns foram colocados um na frente do outro e mortos com tiros de fuzil, outros foram obrigados a ficar na parede e executados de um por um. Cada um dos empregados judeus que Siegfried tanto lutou para não serem deportados aos campos estavam morrendo como animais para o abate. No meio da rua, na frente do jornal, sem nenhum pudor.

— O senhor tem duas horas para deixar Cracóvia.

Os corpos eram colocados em carroças improvisadas, sob os olhares desconfiados dos moradores que ignoraram por motivos óbvios.

— Eu ajudo o senhor.

— Obrigado.

A secretária ajudou o ex-chefe a colocar as coisas dentro do carro e se despediu de uma forma dramática. Siegfried Bonner olhou a rua avermelhada sendo lavada. Infelizmente salvar alguns judeus deixou de ser uma opção.

***

O ano de 1940 passou tão rápido para os alemães, sendo um ano que rendeu muitos frutos para o governo de Adolf. As inserções do exército do Reich tiveram êxitos consideráveis para o chamado "Espaço Vital" alemão. A Alsácia e Lorena, Prússia Oriental (e metade da Polônia), além da Morávia e Boêmia agora faziam parte do grande governo. Entretanto, havia uma ambição ainda maior dos alemães com a Europa. Invadir outros países era uma questão de tempo, e a cereja desse bolo chamava-se União Soviética.

Sem trabalho de datilógrafo e depressivo, Wolfram não conseguiu mais encontrar um emprego alemão. A situação piorou quando Auschwitz resolveu virar o destino de muitos em Cracóvia, inicialmente para trabalhos escravos — para a construção de um outro campo no mesmo complexo.

A única coisa que segurou a família Wilczogórski na cidade foi o emprego de Heiko, que também ficou ameaçado, além das muitas intervenções de Iurik em favor deles.

Então passou um ano após a invasão à Polônia. O ano de 1941 chegou ainda mais avassalador para os judeus, principalmente porque os nazistas ficaram cada vez mais cruéis com as suas vítimas. 

 

Março de 1941

O famoso Gueto de Cracóvia foi concluído. Quinze mil judeus que ainda trabalhavam na cidade foram deportados para o bairro. Os empregos foram encerrados pois dentro do gueto haveria alemães contratando judeus.

— Bom, eu pensei que seria pior do que imaginava — disse August colocando as malas no novo apartamento da família.

— É, parece que esqueceram de contar quanto somos. Não tem cama para todos — afirmou Angela depois de averiguar todos os cômodos.

— Não podemos fazer nada quanto a isso. Não podemos escolher. O que devemos fazer é encontrarmos um jeito para contornarmos a situação desfavorável. Sofia e Angela dormirão juntas enquanto papai, Wolf e eu dormiremos juntos.

Wolfram ajudou com as malas, inclusive uma que ele guardou todos os seus livros.

O gueto fora construído numa área residencial perto do rio Vístula com a capacidade máxima para 3 mil pessoas. Os moradores foram retirados para que a política de segregação iniciasse em março. A capacidade máxima, porém, foi excedida cinco vezes com os novos moradores. Um espaço de três mil agora era o lar de quinze mil judeus e esse número poderia aumentar conforme a Alemanha conseguia territórios no leste europeu.

— O que pretende fazer com os seus livros? — perguntou Angela visivelmente triste por estar num apartamento ridiculamente menor.

— Vendê-los.

— Pensei que seriam a sua preciosidade? Tem livro aí que é de edição limitada. 

— A gente não pode se dá ao luxo de escolher, não é mesmo? Estamos sem dinheiro, sem trabalho. Logo estaremos sem comida e isso é o mais importante.

O Gueto de Cracóvia reuniu diversas pessoas de diferentes tipos, apesar do judaísmo uni-las ao mesmo ônus. Eram separadas do lado ariano por um muro ou cercas de arame farpado. O bonde passava no meio do gueto, os guardas da SS eram responsáveis pelo tráfego de alemães ou poloneses de um lado para o outro e de judeus de um lado para o outro — normalmente os judeus esperavam até dez minutos para que os nazistas tivessem a boa vontade de deixá-los passar para o outro lado do gueto.

Numa parte nomeada pequeno gueto, comércio clandestino era comum. Havia um tipo de feira ali dentro. Às vezes os preços eram absurdos demais para pagar, às vezes furtos ocorriam.

— Livros a partir de 3 zlotych. Venham, aproveitem a oferta — Heiko era um exímio vendedor desde o tempo que trabalhava para o seu pai.

Um homem se aproximou dos dois e ofereceu emprego numa oficina. Empregam judeus para o trabalho braçal no reparo de carros e em troca tem garantias de não serem deportados. A princípio Heiko não achou uma boa ideia, mas disse pensar no caso.

— Sinceramente, vender livros para um monte de gente que também quer comer é pedir para igualmente passar fome. Estarei nesse endereço. Procurem-me se ficarem interessados.

O sujeito deu um pedaço de papel com o endereço ali mesmo no gueto. No entanto, nem o pai nem o filho se mostraram interessados de imediato.

— Só conseguimos dez zlotych com o que vendemos. Os livros estavam em ótima conservação e alguns são de edições limitadas, mas ninguém quis pagar mais caro — lamentou Wolfram sentado sobre a mala dos livros.

— Aqui, tome — Heiko jogou uma maçã para o filho. — Pode comer.

— Mas o senhor ficará com fome. Comprou essa maçã mais cedo.

— Prefiro meu filho comer. O meu estômago consegue esperar até o almoço. Vamos comprar algum complemento para a comida.

Os dois carregaram a mala de livros pelos becos até chegarem à rua principal onde muitos judeus passavam de um lado para outro. No meio da via, os alemães fechavam a passagem para que veículos e pessoas do lado ariano passassem; e pense numa demora excruciante! De um sadismo inescrupuloso, os guardas ficavam até mais de dez minutos deixando os judeus esperando mesmo sem pedestres não-judeus.

— O que você achou da proposta daquele cara? Toparia trabalhar numa oficina?

— Eu, mecânico? Fala sério, papai?

— Filho, acho que por causa da nossa condição não existe a palavra "escolher" no nosso vocabulário. Eu sei que você não gosta de trabalho braçal, que foi criado no luxo, mas precisamos encarar a realidade. Seu irmão fez uma escolha há mais de um ano...

— Ah, isso se resume entre mim e Jacob. Ele é o exemplo a seguir e eu fui o tolo de ter ficado para trás.

Heiko revirou os olhos.

— Trabalhar para um alemão quando ainda sinto o sangue do Naftali em minhas mãos. Só o que eu sinto é desprezo para isso tudo.

A via foi liberada e os judeus puderam passar livremente.

No apartamento, Sofia preparava o almoço enquanto a filha e o sogro saíram para verem algum emprego disponível no gueto. Ficou tricotando enquanto aguardava o preparo da comida.

— Por que você não me ouve, Wolf?

— Ah pai. Eu nunca trabalhei desse jeito. Quando eu trabalhava no jornal, era assistente e vivia digitando. Dá-me preguiça só de pensar em pegar no pesado.

As vozes de ambos surgiram no vestíbulo quando abriram a porta. Sofia parou o seu pequeno trabalho para dar bom dia ao marido e ao filho.

— Compramos ovos. Por sorte também achei tempero no caminho.

— Dá uma olhadinha na panela pra mim, querido? Obrigada. Filho, o que foi agora?

— Ele tá com preguiça de trabalhar.

— Não é isso. É que surgiu um cara que nos ofereceu emprego. — Foi até a pia, encheu o copo com água e foi beber sentado no chão. — Numa oficina mecânica.

— E por que está escolhendo? Veja o seu pai que trabalhou por tantos meses como carpinteiro.

— Eu nunca pensei que fosse chegar ao extremo de virar um reles operário. Eu sempre quis ser escritor.

— Pois é, mas enquanto isso você precisa arranjar algo para convencer os nazistas a não te deportarem para longe. E como o almoço vai demorar um pouco, vamos agora mesmo para a tal oficina.

Mesmo relutante, o jovem teve que ir com o seu pai. Mesmo odiando ter que trabalhar braçal ele sabia que era questão de tempo até serem expulsos do gueto por falta de trabalho. Então eles foram ao bendito lugar.

A oficina ficava no que era chamado de Grande Gueto, um lugar mais sujo do que o Pequeno Gueto, mas lojas e empreendimentos alemães funcionavam lá. Um exemplo disso era a famosa fábrica de panelas de Oskar Schindler.

Um alemão vindo da Saxônia resolveu abrir uma oficina na Polônia perto de Treblinka. Porém, teve seus negôcios arruinados pelo rumor de um campo de extermínio próximo. No início de 41 ele foi para Cracóvia e abriu o local nos limites do gueto.

Uma fila considerável de judeus começava na porta da oficina e ia para muitos metros além.

— Será que vamos conseguir? Olha essa fila.

— Calma, filho.

Havia dois guardas nazistas vigiando, também policiais judeus ajudando. O proprietário dispensou todos e que a vagas foram supridas. Pai e filho já iam saindo quando o homem de antes o chamou.

— O dono disse que não precisava de mais ninguém — falou Heiko.

— Acontece que ele precisava de poucas pessoas. Essa gente toda foi por causa dos rumores boca a boca qude surgiram no gueto. Venham, eu sabia que viriam. A propósito, eu me chamo Karl Bauer.

— Eu me chamo Heiko Wilczogórski e esse é o meu filho Wolfram.

Karl olhou de baixo para cima e concluiu que Wolfram vestia-se de um jeito inapropriado para um mecânico. O loiro sempre vestia suéter e isso era o que os "filhinhos de papai" usavam, longe da realidade atual.

— Se quiser eu volto...

— Não se preocupe. Da próxima vez o meu filho se veste de maneira mais humilde possível.

— Que maravilha. Venham.

A oficina era de tamanho médio com capacidade para três veículos. Alguns judeus trabalhavam, incluindo Karl. O dono era um senhor gordo, bigodudo e sempre vivia de chapéu. Não era um homem muito rico, mas se beneficiou com a abertura do gueto e assim pode usufruir do trabalho escravo.

— Esse é o senhor Donnitz.

— Hum, vocês possuem alguma experiência nesse ramo?

— Bom, eu fui carpinteiro ano passado e o meu filho trabalhou para um jornal local. Mas experiência como mecânicos... não, não possuímos.

— Senhor Donnitz, eu sei que essa questão da experiência é importante, mas eles são ótimos trabalhadores. Confie em mim.

— Eu confiar num judeu? Que coisa. Sim, estão contratados — carimbou o contrato depois de assinar. — Começam amanhã. Não sejam preguiçosos e não faltem.

O homem explicou o motivo da sua intervenção em favor dos dois: conhecia Wolfram do jornal. Ele também trabalhou lá uma vez, soube da trágica morte de Naftali, por isso resolveu ajudá-los. O jovem, obviamente, não o reconheceu de imediato.

— Bom, estão contratados. Até amanhã, parceiros.

O trabalho na oficina não foi fácil para Wolfram. Primeiro porque ele é um sujeito que odeia trabalhos braçais, pois a sua educação foi de um jovem de classe média alta mesmo sendo judeu; segundo que seu forte é a literatura, o trabalho artístico, como a escrita; e terceiro que só de pensar que pegará pesado por mais de dez horas deixava-o com preguiça.

— Pode trocar de roupa. Usa um casaco. Vai de suéter pra você ver.

— Ótimo, agora vou para me sujar de graxa.

Um guarda da S.S. levou uma bicicleta para o conserto e Karl logo se prontificou. Viu pai e filho chegar.

— Bem-vindos. Wolfram, parece que está mais adequado para o trabalho — estendeu a mão para cumprimentar os dois.

— O que vamos fazer?

— Falem com o Sebastian. Ele tá trocando um pneu lá atrás, mas ele vai ser o tutor de vocês. Até pegarem experiência, ficarão sob responsabilidade dele.

— Vambora, judeu preguiçoso — ralhou o guarda.

— Opa, desculpa, senhor.

Eles viram um carro sendo lavado e os pneus trocados. Debaixo do veículo surgiu um homem bem aparentado, alto, moreno e bastante saudável. Sebastian recebeu pai e filho para mostrar os maçetes do trabalho.

— Garoto, pode pegar aquele pneu ali?

— Sim — retirou a boina e o casaco. Levantou o objeto, levando ao homem. Irritou-se ao se sujar de preto. — Senhor, pode me chamar pelo meu nome que é Wolfram, por favor.

Visivelmente irritado por ser chamado de garoto mesmo aos dezesseis anos.

— Desculpa. Bom, vamos começar?

A aula de como proceder numa oficina mecânica não foi fácil para pai e filho, principalmente este. Utilizar ferramentas, carregar materiais, sujar-se com lubrificante ou tinta e suar bastante tornaram-se parte da nova realidade deles. Wolfram quem o diga, vendeu todos os livros para o senhor Donnitz — ganhando dinheiro clandestinamente —, afastando-se completamente do seu sonho literário. Todos os dias eram os mesmos dias: trabalhar na oficina.

— Espera um minuto. Acho que criei calo na mão... au!

— É melhor não parar, Wolf. Se algum guarda te ver  descansando assim é capaz de te matar — alertou Sebastian.

Um galão de graxa teve que ser levado pelo jovem de um lado para outro enquanto Heiko trabalhava no assoalho de um carro. Ele parou ao lado da pai, viu o senhor Donnitz conversar com um guarda do lado de fora.

— Para de ficar olhando. Vem me ajudar no motor.

Wolfram pegou as ferramentas e foi com o pai arrumar o motor silenciosamente, porque dois guardas da S.S. entraram na oficina para inspecionar o trabalho. O clima tenso foi quebrado com um tiro no meio da rua.

Donnitz entrou depois que um nazista havia matado um judeu no meio da rua.

— Algum problema com os empregados? — perguntou o dono.

— Eles são bons no que fazem. O carro do nosso chefe precisa estar pronto logo.

A dupla belicosa saiu, aliviando o clima. Tudo era tão imprevisível no gueto que viver a cada dia era um exercício bastante difícil.

...

Cracóvia, Lado Ariano

02 de maio de 1941

O major Scherzinger foi um dos que se opôs ao sistema de guetos exclusivos para judeus argumentando que seria uma péssima imagem para a capital. No entanto, Hans Frank já havia decidido desde o ano retrasado, desde 1939. Era uma questão de tempo para que os semitas fossem separados.

Depois da promulgação da lei, no entanto, o comandante seguiu as ordens do partido. Nomeou Buchmann e outros sargentos como responsáveis do gueto enquanto a administração não encontrava um capitão que seria melhor preparado.

O Gueto de Cracóvia foi uma severa punição para os judeus mas também exigiu um esforço adicional dos próprio nazistas. Soldados alemães trabalhavam em regime de plantão e até mesmo o alto escalão sofreu com o novo ritmo de trabalho. Tudo isso por causa da expectativa de Berlim invadir ou não a União Soviética.

O telefone tocou no gabinete do major. O próprio atendeu.

— Você não tem vergonha nessa sua cara, ligando para mim depois que já deixei claro que terminamos? O que mais você quer, garota?

— Eu vou contar tudo para a sua esposa, Scherzinger. Se você não vier para o endereço que vou te passar, eu juro que a sua família saberá do seu envolvimento comigo.

— Tá louca? Quer morrer?

— Compre o meu silêncio.

— Ah, uma vadia interesseira. Tudo bem, Vivien. Pode me dar o endereço.

Saiu do escritório de casa à tarde, mas não pegou o seu carro que fora ao conserto. O veículo da sua esposa ficou disponível.

— Senhor, aonde vai?

— Venha comigo, tenente. Vamos dar cabo de um incômodo de uma vez por todas. Eu devia ter feito isso desde o começo.

O major dirigia enquanto o tenente ficou ao seu lado.

Os dois arrombaram o apartamento e procuraram pela moça em todos os cômodos. A ausência dela chamou a atenção do militar que não entendeu o motivo de ser chamado para lá.

Aproveitando que o ex-amante ficou de costas para a porta de entrada, Vivien — que havia se escondido no apartamento vizinho — segurou um revólver e deu dois tiros à queima-roupa nas costas dele. O tenente atirou na cabeça, matando-a na hora.

— Merda.

A ambulância levou um Scherzinger ainda vivo, inconsciente e instável. 

 

 De volta no tempo...

Depois de matarem o major, Olga e Grimsley comemoraram no hotel. Brindaram com direito a vinho e tudo.

— Você é o pior dos piores sabia? Ainda não entendi como fez a cabeça daquela mulher e como teve a audácia de manipulá-la para tentar matar o seu próprio tio. Aliás, o homem deve ter feito algo ruim contigo no passado para você me pedir para matá-lo e comemorar a sua morte. O que ele fez?

— Minha querida, vai ficar querendo saber. Não conto os meu segredos nem para a minha mãe, quanto mais para você. Mas eu tiro o chapéu pelo seu trabalho. De onde veio aquele veneno?

— Se eu te contasse teria que te matar. Também é segredo.

Deixaram o vinho de lado e aproveitaram a noite para se amarem muito. Ambos tão parecidos.

Depois do sexo, Grimsley não conseguia dormir. Será que vão investigar a fundo a morte do seu tio? Talvez não. Matá-lo foi o crime perfeito, foi o que pretendia fazer desde a morte do seu pai.

 

Cemitério de Munique

O funeral do major Henrich Scherzinger foi marcado por muita tristeza e choro tanto da esposa quanto da filha. Amigos, parentes e militares compareceram. O caixão foi envolvido pela bandeira da Alemanha Nazista. Um padre rezava.

Após o enterro, as pessoas davam os pêsames à família. Flores foram colocadas no sepulcro e uma foto dele na lápide.

— Você está bem, prima?

— Quero ir pra casa — respondeu Ilona bastante desanimada.

Grimsley colocou uma rosa sobre o túmulo e sorriu. Essa vingança oculta provavelmente ficará em segredo. Mas acabar com a vida do tio não foi o crime mais hediondo desse piloto brilhante.

 

Meses antes...

A professora de Ilona pegou no flagra um judeu praticamente gritar contra a filha do poderoso Scherzinger. Aquilo perturbou a doutrinadora mesmo que a aluna tenha se explicado. Não. Aquilo definitivamente não era certo. Voltou para a universidade e ligou para a casa da família Scherzinger.

O telefone tocou. Grimsley atendeu prontamente.

— Pode falar comigo. Sou da família.

— A senhorita Ilona foi vítima de violência de um judeu. Não queria dar detalhes pelo telefone.

— Tudo bem. Podemos conversar num restaurante do centro da cidade? Anote o endereço.

O rapaz desligou e preparou-separa sair. Esbarrou com a tia perto da saída.

— Quem era?

— Engano. 

— Mas já vai sair de novo, querido?

— Esqueci que preciso me encontrar com uma pessoa. Diga ao tio que volto mais tarde.

No restaurante, a professora contou tudo o que houve no banheiro do jornal. O primo de Ilona ficou chocado com a falta de policiamento daquele espaço e perguntou a aparência física do judeu.

— Loiro... caucasiano.

— Tudo bem. Pode me dar o endereço desse jornal?

Anotou o endereço numa agenda.

— Muito obrigado pela sua cooperação. Dá para notar o seu patriotismo. Agora eu peço que não conte a ninguém sobre esta reunião. Entendido?

— Claro.

A punição para o judeu insolente seria dada pelas mãos de Grimsley Forchhammer. Guardou o encontro com a professora e se preparou para caçar judeu.

No sábado, um carro parou em.frente ao prédio que ficava do outro lado da rua onde ficava o Beliebt Zeitung. Do veículo saiu Grimsley e do banco traseiro retirou um fuzil commira telescópica. Devidamente fardado, entrou no prédio.

— Gestapo — mostrou uma carteira falsa pra intimidar os moradores.

— Não somos judeus — falou o homem.

— Não vim para isso. Só não contem nada a ninguém se não quiserem ser de portados para algum campo de trabalhos forçados.

Ele se posicionou na janela com uma vista privilegiada da frente do jornal. Viu dois jovens se aproximarem, parando poucos metros da entrada.

— Aí está você? — mirou na cabeça de Wolfram, que era evidentemente loiro. Grimsley começou a apertar o gatilho, porém parou.

Por que ele parou? Um detalhe importante que salvou a vida de Wolfram.

 

— Pegou as braçadeiras? — perguntou Sofia.

— Já tá no meu braço — respondeu Naftali.

— E você, filho?

— Aqui no bolso. Depois eu coloco. É porque antes vou entrar numa padaria e comprar algo para comermos no caminho.

 

O alemão parou imediatamente quando não viu a faixa com a estrela de Davi no braço do loiro. Por mais que o seu alvo correspondesse com a descrição da professora, não teve a certeza se aquela pessoa era a mesma e nem se ele era um judeu. Atirar em um ariano na frente de testemunhas polonesas seria o fim da sua carreira e positivamente seria preso. O que fazer num caso desse? Bom, já que ele estava por ali mesmo, e que o fuzil ficou na mira daqueles dois, matar um judeu aleatório não teria empecilho. Mudou a mira para o alvo ao lado do suposto ariano sem a faixa: o judeu moreno que conversava animadamente. Sim, Naftali pagou caro por estar usando a estrela símbolo do judaísmo.


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