Cracóvia escrita por Sensei Oji Mestre Nyah Fanfic


Capítulo 3
Onde os fracos não têm vez...




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Por volta de 1932, um ano antes da ascenção de Hitler no governo, uma praia alemã ao norte recebia centenas de turistas de todo o país. As visitas aumentavam quando era o verão, atraindo um considerável público. A vida parecia simples naquele ambiente descontraído, exceto pelo fato de judeus serem proibidos de passear livremente. Uma lei local fez com que a cidade sofresse um tipo de eugenia antecipada, e muitos partidários nazistas passavam as férias.

Mesmo desgostosa por seu esposo ficar em Dachau, Sofia levou os três filhos para um passeio na praia; que Angela tanto quis. Como a alemã era católica, sua estadia era garantida por lei no município, além dos seus filhos meio-judeus.

O carro parou no resort. O motorista abriu a porta para Sofia e os três filhos saírem. 

— Mamãe, vamos à praia — insistia Angela, ainda na faixa dos dez anos.

— Primeiro vamos nos hospedar e depois pensamos na praia.

O empregado do resort levou as malas para o quarto da família Wilczogórski e entregou a chave. O ambiente era espaçoso, arejado, bem iluminado e perto da praia.

— Meninos, não saiam ainda. Preciso ligar para o papai. — Foi até a parede, segurou o fone na orelha e girou os números do telefone. — Quero uma ligação para a Baviera, Dachau.

Alguns soldados do exército também visitavam o local como um ponto de férias todos os anos. Nesse período, depois da campanha presidencial de Hitler, os militares pró-nazismo já se infiltraram nas forças armadas. Um grupo nazista militar da S.A. chegou no resort com as suas famílias — filhos e esposas.

— Querido, não é caro? — perguntou a mulher.

— Meu bem, o governo tá pagando essa estadia. Agora que os nazistas estão subindo na política, vamos subir junto com eles e seremos ricos. Todos os anos poderemos viajar à vontade.

— Tá, mas Hitler não ganhou a presidência.

— É só uma questão de tempo pros nazistas dominarem o Reichstag, aí o presidente não poderá fazer nada. Filha, vamos.

Uma garotinha saiu do carro e foi correndo até os braços do seu pai e cabo do exército.

Pouco tempo depois, Sofia levou os três filhos para um passeio à praia. Jacob corria, Wolfram era quieto com um livro infantil e Angela brigava com o irmão corredor. Na areia, a matriarca colocou um tipo de canga e sentou-se sobre ela, abaixo de um guarda-sol.

— Meninos, não vão para muito longe.

— Sim, mamãe. Ei, Wolfram, bora brincar de bola?

— Eu não. Vai com a Angela.

— Chato — bateu a bola de futebol na cabeça do irmão. Angela e Jacob saíram correndo com Wolfram atrás deles.

A família Scherzinger chegou à praia pouco tempo depois. O cabo Henrich e a esposa Antje também fizeram uma barraca na areia.

— Mamãe, quero entrar na água.

— Então vamos. Querido, Ilona e eu tomaremos um banho. Vem conosco?

— Não, ficarei lendo um livro.

As duas saíram para o mar.

Durante a partida de bola entre Angela e Jacob, a bola caiu sobre um pequeno castelo de areia perto do limite das ondas. A menina deu um grito para que Wolfram fosse buscar o objeto.

— Deixa eu em paz!

— Vai logo, moleque!

Depois de levar um grito da irmã, Wolfram correu para perto da bola. Assim que pegou o objeto, viu uma garotinha chorando por causa da destruição do seu castelinho de areia.

— Tudo bem, menina?

— Meu castelo... foi... derrubado...

O loirinho deixou a bola de lado e se sentou ao lado dela. Ilona ficou com a companhia de Wolfram enquanto ele fazia um novo castelinho de areia.

— Filha, quem é o seu coleguinha?

— O nome dele é Wolfram, mamãe... ele me ajudou a fazer o meu castelo novo.

— Que lindo, Wolfram. Obrigada por ajudar a minha filhinha. Vamos, querida?

— Mamãe, ele pode brincar comigo?

Antje olhou, pensativa no que Henrich poderia pensar, mas autorizou a filha continuar brincando com o garoto. Assim que retornou para perto do marido, foi questionada por ele sobre o guri.

— Tem certeza que é seguro deixá-la ali sozinha?

— O menininho é muito educado. Pode confiar.

Houve uma pequena discussão com outras pessoas por causa de uma babá judia que estava acompanhando um casal na praia. Os arianos logo tumultuaram, pediram para que ela saísse de lá imediatamente e que eles a demitissem. A pequena discussão preocupou Sofia e logo chamou os filhos para irem embora.

Wolfram teve que se despedir da amiguinha da praia. Antes entregou o seu livro de contos infantis como um presente.

— Pode ficar. Eu compro outro.

— Tchau, Wolfram!

Ilona segurou o livrinho de contos enquanto via o coleguinha ir embora para, talvez, nunca mais o ver.

— Tá, e eu acredito no São Nicolau entregando presentes no Natal. Para, amiga. Isso é tão clichê.

A garotinha cresceu e tornou-se uma bela moça adolescente. A sua casa em Cracóvia ficava numa mansão afastada do centro urbano onde o seu pai, Henrich Scherzinger, reinvindicou como residêmcia durante o seu trabalho no governo geral. O ambiente era espaçoso, com pisos de madeira, paredes e tetos na cor creme. Os móveis clássicos davam um charme ao ambiente. Na sala de visitas, sofás, poltronas, uma lareira com a foto de Hitler numa moldura. A vida luxuosa naquela residência contrastava com a miserável vida de milhões na Europa.

 

Cracóvia, Polônia

20 de janeiro de 1940

— Não acredita?

— É que um garoto desse ser tão atencioso e depois te presentear com um livro é atestado de príncipe encantado. Como ele era?

— Não tenho uma lembrança tão detalhada, mas era loiro. Agora o que eu achei bonito foram os olhos cor de safira dele.

— Amiga, com certeza hoje é um ariano puro sangue que deve tá servindo ao Führer.

As duas ficaram sentadas na sala de visitas, bebendo chá, quando a mãe de Ilona chegou. Muito parecida com a filha, ruiva, e de olhos pretos.

— Seu pai veio pra cá essa tarde? — Retirou o chapéu da cabeça e logo os grampos em seus cabelos.

— Não o vi hoje — Ilona era morena com cabelos castanhos, escuros, penteados em forma de trança única. Naquele momento usava um vestido floral.

Antje indagou-se por onde o marido andava e com quem.

— Prepararei minha banheira com sais. Se por acaso o seu pai chegar, avise a ele que tomarei banho no banheiro do quarto de hóspede.

— Sim, mamãe.

A amiga de Ilona era filha de outro oficial da S.S. que trabalhava na Polônia. Apesar delas serem filhas de homens que começaram a trabalhar juntos depois da ocupação, ambas já se conheciam desde a escola em Munique.

— Agora me diz o que esse livro tem de tão importante?

— Querida Brianne, este livro conta a história do ratinho enfermeiro. E sabe por que é importante pra mim? Porque a minha vontade de estudar enfermagem surgiu por conta dele. Quero um dia ser uma boa enfermeira e cuidar dos soldados feridos.

— Pelo menos o livro foi a porta de entrada da ajuda que você quer dar aos heróis do Reich. Aos mil anos.

— Mil anos é muito tempo.

As duas riram.

...

Início do ano de 1940, na data do dia 20 de janeiro. Sofia levou um bolo de chocolate que preparara ao centro da mesa. O aniversário de quinze anos de Wolfram foi comemorado por todos, haja vista não saberiam se ali seria a última vez de comemorariam juntos. O rapaz ficou desolado pela mãe ter gasto o restante da poupança para comprar os igredientes, mas ela não quis saber e pediu que o filho fizesse um pedido.

— O que pediu? — perguntou Angela.

— Que os judeus encontrem a paz assim como nos tempos de Moisés.

Logo após a pequena reunião familiar, Sofia ficou olhando o céu pela janela do apartamento. Pensou na situação de Jacob.

— Pensando nele de novo?

— Filho, não precisa se preocupar comigo. Sou mãe e somente as mães entenderiam as vezes que fico desolada e com saudades do Jacob.

Wolfram ficou ao lado dela, observando pela janela o céu estrelado. Apesar da falta de nuvens, a sensação térmica era de oito graus.

— Que foi?

— Ali — Sofia apontou para uma cena em que dois guardas alemães zombaram de um judeu na rua.

O judeu parecia ir ao mercado depois do recente shabat quando dois nazistas interceptaram-no. Mesmo tentando se explicar, os dois homens empurraram-no a ponto de fazê-lo cair ao chão. A sorte dele foi que uma viatura parou na frente da calçada e o sargento Buchmann chamou os subordinados.

Um pouco de tempo depois...

— Você está bem? Não ficou ferido? — Sofia havia saído do prédio assim que os nazistas foram embora.

— Tudo bem, senhora. Foi só um empurrão. Pena que levaram o pouco dinheiro que eu tinha. Malditos!

— Tudo bem... Wolfram, suba e pegue um pedaço do bolo que sobrou. A propósito, qual é o seu nome?

— Naftali Bennetz. Obrigado, senhora, mas eu tenho que recusar a oferta. Os meus pais achariam estranho eu receber presentes de estranhos.

Sofia pediu silêncio e o levou para dentro de casa. Lá ofereceu uma sopa requentada ao visitante.

— Muito obrigado. Não precisava.

— Parece que a sua situação é pior do que a nossa. Naftali, onde você mora? — perguntou Sofia.

— Meu pai era sapateiro e minha mãe empregada doméstica, por isso vivíamos numa pensão na periferia. Depois da invasão, nos mudamos para a casa de um rabino aqui perto. Mas parece que em breve os nazistas vão mudar os judeus para um bairro judeu afastado.

— Isso é difícil de acreditar — disse Wolfram.

Heiko entrou na conversa. Afirmou que ouviu um boato sobre isso alguns dias atrás, mas que não havia confirmado. Obviamente os demais membros da família fizeram pouco caso do assunto. Era inacreditável achar que os judeus seriam instalados em bairros numa forma de apartheid.

— Uau! Esses livros ali... — disse ele apontando para a prateleira na sala com alguns famosos.

— São meus. Eu coleciono livros, leio muito e meu sonho é ser escritor. — Wolfram mostrou um baú cheio de livros no seu quarto. Naftali achou incrível.

— Que massa. Eu também acho legal a literatura. Gosto mais de poesias, lembram melodias.

Wolfram vasculhou até achar um pequeno livro de poemas. Disse que emprestaria ao novo colega.

— Juro que devolvo quando puder.

— Tudo bem, só não amasse as páginas.

Naftali saiu do condomínio, olhou para a rua e saiu aproveitando a ausência dos nazistas. Levou consigo uma sacola com bolo, sopa e um livro.

Quando se despediu do adolescente, Sofia sentiu saudades do outro filho.

 

Horas antes...

O casamento de Henrich e Antje Scherzinger não era ruim mas também não era um bom exemplo a ser seguido. Havia discussões frequentes e um histórico de traições por parte dele. O comandante da schutzstaffel de Cracóvia era conhecido por suas "puladas de cercas" desde o início do casamento há quinze anos. Claro que Antje soube das outras amantes, das traições, no entanto a socialite perdoou todos os erros do marido e adquiriu confiança depois que ele prometeu não trair. Por volta de 1936, fizeram as pazes e desde então ele prometeu se abster de trair a mulher. Todavia, em 1937, o homem teve um encontro com a modelo austríaca e radicada na Alemanha, Vivien Barr, a mesma que fizera uma piada entre Ilona e Grimsley em 1936 na mesa do restaurante. A química entre o homem de 40 anos e a moça de 20 foi instantânea.

Anos depois, já em 1940, os dois se encontravam escondidos num hotel na cidade de Litzmannstadt.

— Ah, não vai. Vamos aproveitar melhor nosso dia.

— Amanhã preciso voltar ao trabalho. Também não posso desapontar Antje e Ilona — respondeu enquanto vestia a farda.

— Eu entendo que você ama a sua filha mais do que tudo. Você é o pai dela e por isso é uma relação que não se pode separar. Mas a tua esposa? Você não a ama. Separe-se dela e case-se comigo.

— Já te disse que não é assim tão fácil. Antje foi filha do coronel Lutz, o mesmo que lutou e morreu na guerra, possui contatos com membros da S.S. do alto escalão e é amiga pessoal de Reinhard Heydrich. Não me atreveria a causar um escândalo agora e colocar o meu emprego em jogo. Prometo, porém, que um dia vamos nos separar e você será a minha futura esposa.

— O que eu faço enquanto isso?

— Volte para Nuremberg. Ainda é perigoso ficar na Polônia. Os poloneses podem ser hostis contigo.

A senhorita Barr ficou entristecida pela resposta pouco motivacional do militar, mas prometeu ser paciente o suficiente para aguardar o momento certo. Dali o chefe da S.S de Cracóvia pegou o carro e viajou para o sul, voltando à cidade.

 

Passaram alguns dias desde que Wolfram fez os seus quinze anos. A vida na Cracóvia continuou a mesma, exceto pelo fato do pouco dinheiro da família estar acabando. Sofia reclamou que estava farta de tomar sopa todas as noites. August tomou a amarga decisão de vender o seu relógio de bolso para um comprador alemão.

Durante a venda, o alemão ofereceu apenas 500 por uma relíquia de ouro. O comprador argumentou que, como eram judeus, não conseguiriam um valor mais alto que isso.

— É pegar ou largar, August.

— Mas isso é quase um roubo. Esse relógio existe desde a época do Segundo Reich. Foi dada para o avô do nosso avô ainda no tempo de Otto Von Bismarck — informou Angela.

Mesmo com o argumento, o comprador não deu o braço a torcer e ofereceu os quinhentos. Naquele momento estavam sem dinheiro para o próximo jantar. August aceitou a oferta.

— Se não fosse pelos nazistas terem levado o nosso dinheiro ou o nosso carro...

— Não se culpe, papai. O senhor pensou no melhor para a família — disse Heiko.

À tarde, Wolfram conseguiu algumas folhas em branco e passou a datilografar na sua máquina. Tentava se concentrar numa história, mas o bloqueio criativo não deixava. A preocupação com o seu irmão e com o bem-estar da sua família eram os motivos.

— Querido, ainda acordado...

— Estou tentando iniciar um romance policial. É sobre um caçador de nazistas que vai à caça dos nazistas foragidos pós-guerra. Na minha história a Inglaterra e a França vencem a guerra, a Alemanha se rende e os nazistas que fogem vão ser caçados pelo meu personagem.

— Que enredo maravilhoso. Até que seria interessante se ocorresse na vida real.

— É... mas eu simplesmente não consigo iniciar a cena.

— Preocupado com o Jacob, não é? Se eu pudesse pegar todos vocês e levasse para fora daqui, eu faria. Vamos orar para que o enredo do teu futuro livro se torne realidade. Agora vai dormir logo antes que sinta fome.

— Tudo bem.

Sofia bajulava e muito o filho gêmeo. A falta do outro deixou um vazio enorme, um sentimento perpétuo de saudade que deixou a matriarca mais atenciosa.

 

Meses se passaram rapidamente. O governante da Polônia, Hans Frank, fez uma reunião com todos os governadores distritais. O próximo passo para a questão judaica seria tomada a partir dali.

Na cidade de Cracóvia, Henrich Scherzinger se encontou com os outros capitães da S.S. dos demais distritos. As patentes mínimas para a reunião eram capitão e major para cima. O alto escalão do governo e da polícia nazista reunida.

Scherzinger retirou o quepe ao rever um colega de academia, que era capitão em Varsóvia, e iniciaram uma amigável conversa na sala de reunião.

— Como vai a ilustríssima Antje?

— Muito bem, obrigado. Sempre dou um bom exemplo de marido.

— Claro que sim. É o queridinho de Heydrich, não é? Tô brincando. Você sabe que o meu senso de humor é ácido.

— Sempre soube.

— Pois é. E eu tenho um amigo, é jovem, uns trinta e poucos anos, mas é dedicado pra caramba. Vou nessa reunião tentar falar com o Otto pra ver se há uma vaga para a S.S. aqui em Cracóvia.

— Ah é? E como ele se chama?

— Amon Göth. O cara é simplesmente o mais dedicado que eu já vi.

Outro oficial de alta patente interrompeu os dois. Dali em diante os políticos nazistas apareceram na sala para a discussão sobre o envio dos judeus aos campos de trabalhos forçados e a novidade no Governo Geral: bairros exclusivos para os judeus.

...

Um bairro exclusivo para judeu fora escolhido pelas autoridades nazistas com o propósito de controlar todos os semitas que trabalhavam em fábricas alemãs na cidade. Ao redor do lugar um muro de concreto será projetado para apartar a parte dos arianos com a dos semitas. O projeto teve inicialmente alguns impasses, por conta do alto número de judeus na cidade, por isso Hans Frank autorizou que bem antes do bairro ser inaugurado os judeus que não trabalhavam, crianças, idosos e doentes fossem levados para o interior a fim de serem escravizados nos campos de concentração.

 

15 de maio

Segundo os jornais, a área seria num local afastado do centro rico. Os prédios eram carcomidos. Havia vilas, casas e condomínios de pouco luxo. Popularmente o bairro seria chamado de Gueto de Cracóvia. A partir de maio até agosto milhares de judeus teriam que se mudar compulsivamente para alguns campos de concentração no interior, exceto os que trabalhavam como policiais judeus — normalmente judeus ricos ou mestiços — ou os que trabalhavam em estabelecimentos alemães.

Naftali pegou as roupas e levou as malas para uma carroça. Seus pais ajudaram, o rabino e sua esposa também. Cerca de duas mil pessoas saíram de suas casas e foram obrigadas a caminhar pelas ruas até um prédio para a triagem. O jovem levou um susto quando ouviu um tiro. Um policial havia matado um homem e deixou o seu corpo ensanguentado no meio da pista.

— Não encara eles — disse o seu pai.

— Malditos. Só queria saber onde os meus novos amigos vão ficar. — Segurou o livro de poesias.

August foi o único da família Wilczogórski que presenciou o deslocamento dos judeus para a sede da triagem. Como o seu neto trabalhava num jornal local e Heiko arranjou emprego numa carpintaria, a família ficou garantida temporariamente a não se mudar. O idoso viu o amigo de Wolfram e foi conversar.

— O que houve com vocês?

— O senhor?

— Quem é, filho?

— O avô daquele meu novo amigo. O que o senhor faz aqui?

— Estava passando quando vi essa fila imensa. Soube também que estão levando judeus para trabalhar em campos.

O pai de Naftali pediu a August que intercedesse em favor do filho, que seu pressentimento acerca do trabalho no campo não era o melhor. Mas o garoto protestou, querendo ficar ao lado dos pais e do rabino. A mãe, contudo, implorou que salvassem pelo menos o filho.

Perto dali Iurik Kevzinsky trabalhava como policial judeu. Como era judeu portanto usava apenas um cassetete, sem armas de fogo.

— Doutor Wilczogórski, o que faz aqui?

— Quero te pedir um favor, Iurik.

— Ah, agora veio me pedir ajuda? Ofereci o melhor emprego que um judeu pode ter na Polônia ocupada e mesmo assim vocês negaram. Tudo bem, fala.

— Tá vendo aquele garoto moreno de boina? Tem como tirar ele da triagem?

— Infelizmente não posso, senhor. Um trem irá pegá-los numa estação improvisada em poucas horas. A não ser que ele tenha um documento comprovando um emprego numa firma alemã, não posso liberá-lo.

Ao voltar para a casa August disse para o neto sobre o fatídico destino do colega. Wolfram correu para o jornal onde trabalhava e pediu ao editor que contratasse mais um empregado.

— O senhor disse que procurava um empregado para carregar as caixas do estoque dos jornais.

— Sim, mas apareceram alguns poloneses candidatos.

— Meu amigo é judeu. Ele pode trabalhar por menos do que qualquer polonês.

O velho alemão dispensou os candidatos para a vaga de emprego e assinou um documento comprovando a empregabilidade do jovem Naftali. Tanto Wolfram quanto o dono do jornal foram para a estação e mostraram ao sargento Buchmann a papelada.

Um vagão para animais de pasto serviu para colocar os judeus que seriam levados aos campos no interior. Buchmann ordenou que apenas o indicado pelo editor fosse liberado. Com a ajuda de Iurik, Naftali foi separado dos seus pais e levado com o dono do jornal.

— Eu não pedi para ficar. Os meus pais...

— Cara, a sua mãe disse para o meu avô que queria você vivo, não é?

O rapaz olhou para trás e viu os seus pais se perderem na multidão dos passageiros. Iurik teve que segurá-lo pois ficou desesperado quando viu a sua família ir embora.

— Ficou louco, garoto? Prefere ir trabalhar até morrer nos campos? Fique tranquilo, porque tenho contatos com a administração local. Quem trabalha pra mim está seguro.

O editor levou os dois jovens para dentro do seu carro e pediu ao motorista que voltasse ao jornal. Lá Naftali assinou as papeladas para o trabalho quase escravo que teria.

Naquela noite, Sofia deu as boas-vindas ao rapaz. 

Enquanto isso, o trem com mais de 500 pessoas partiu para um campo de trabalhos forçados fora da zona de Cracóvia. O transporte de judeus para o interior ficou dispendioso até mesmo para os guardas nazistas. Uma resolução do governo de Cracóvia foi feita a fim de construir um campo perto da cidade no intervalo de até três anos. Por enquanto os judeus seriam deslocados para o interior, depois para o futuro bairro controlado e por fim a construção de um campo ali perto.

 

22 de junho de 1940

A situação financeira da família de Wolfram ficou cada vez pior. Os empregos dele, de Naftali e de Heiko não davam conta porque recebiam quase nada, a maior parte do salário era pago para a S.S. Na maioria dos dias comiam sopa de legumes, outros dias dormiam sem jantar para economizar para a manhã seguinte... era uma tristeza, sobretudo quando era a família tradicionalmente rica de judeus alemães. Quanta humilhação!

E para compensar com a falta de dinheiro, alguns objetos eram vendidos. Chegou em um momento em que não havia muito para se vender, exceto um objeto em especial.

— Tem certeza, filho? É isso mesmo o que você quer?

Todos da família, inclusive Naftali, aguardaram uma resposta de Wolfram para a proposta de vender a sua preciosa máquina de datilografar. O objeto acompanhou-o desde os sete anos, presente da sua falecida avó. De lá pra cá a máquina foi indispensável para que o rapaz pudesse realizar o que sempre gostou: escrever. Um leitor compulsivo, muito culto, Wolfram também escrevia desde que ganhou o presente. Na escola, participou do jornal da turma. No tempo em que o ócio predomina, escreve poemas, trechos de prosas, crônicas e atualmente o começo de um livro de romance policial inspirado na estrela inglesa Agatha Christie.

— Sim, mamãe. Temos que comprar comida para a nossa subsistência — ele passou um bom tempo com a máquina antes do comprador chegar. Com lágrimas nos olhos, o rapaz vendeu a sua preciosidade por míseros 300.

...

As políticas do Reich eram questionáveis, para se dizer no mínimo. A eugenia era o principal combustível para que o genocídio fosse comum no governo de Hitler. Entretanto, antes que os judeus pudessem ir para as câmaras de gás, um outro grupo de humanos foi submetido ao assassinato em massa: deficientes físicos e mentais.

Durante os anos que precederam a guerra, Hitler havia iniciado a política de eugenia. Mulheres alemães que ficaram grávidas de judeus ou outro grupo que não fosse ariano teriam que abortar. Não-arianos ficaram proibidos de se reproduzirem, resultando na castração química de muitos. Mas o grupo que sofreu foram os doentes mentais e aleijados que foram mortos por gás carbônico. Alguns eram colocados em caminhões e sufocados com gás do escapamento do veículo. Era a eutanásia compulsiva.

No meio de tantos médicos e profissionais da saúde que eram verdadeiros "anjos da morte", Ilona Scherzinger queria ser diferente, queria curar, salvar a vida de pessoas independentemente se eram perfeitas ou com problemas degenerativos. Desde que leu o livro infantil teve o sonho de estudar enfermagem. Pessoalmente era uma garota muito inteligente, com um quociente elevado, perspicaz, apesar de não ser contra o regime nazista. Para ela, Hitler era apenas um político carismático que ajudou a fortificar o patriotismo alemão — ela mal sabia dos campos de concentração, acreditando ser presídios humanitários para inimigos políticos.

Quando a guerra começou, teve que se mudar para a Polônia com o pai e a mãe. Antes estudava numa academia da Juventude Hitlerista. Depois que o seu pai virou comandante da S.S. em Cracóvia, conseguiu uma bolsa de estudos para uma universidade nazista na cidade antes mesmo de completar os 16 anos. Seu brilhantismo era incrível, e só ganhou a bolsa por causa da influência do seu pai e da sua mãe — que era amiga de Reinhard Heydrich, executivo-chefe da Reichssicherheitshauptamt, agência que supervisionava as polícias e serviços de inteligência alemães.

Na universidade estatal ela começaria a aprender enfermagem, seu sonho de infância.

— Olha só quem está aqui nos visitando, filha. Seu primo Grimsley — disse Antje quando a filha chegou na mansão.

— Que milagre, Grimsley. Pensei que havia se esquecido da gente — deu um abraço nele. O homem vestia o tradicional uniforme nazista.

— Não, priminha. Acontece que eu tenho muito trabalho agora que virei primeiro-sargento.

— A guerra é uma provação para os nossos heróis das forças armadas — disse Antje com uma bandeja com sucos. Ela colocou sobre a mesa de centro da sala de visitas e ofereceu ao sobrinho, à filha e à amiga dela.

A conversa foi bem animada. A realidade da família Scherzinger era completamente diferente da dos judeus na cidade. Depois do suco e da conversa, passearam pelo jardim extenso da propriedade.

— Pensa em virar enfermeira?

— Sim. Um dia quero ser enfermeira e contribuir salvando a vida de muitos soldados.

— Ela tá doida pra se casar com um soldado de alto escalão. Sabe, vocês são primos, mas você faz o tipo dela.

— Brianne! Não dê ouvidos para essa louca.

Grimsley segurou as duas mãos da prima e beijou. Não, definitivamente Ilona não enrubesceu. O primo dela não fazia o seu tipo — os loiros faziam o seu tipo.

 

Àquela noite, a família Scherzinger, a família de Brianne e muitos outros políticos e celebridades alemães resolveram assistir a uma peça no teatro de Cracóvia. Mesmo em dias especiais, os militares não tiravam as suas fardas para pôr smokings. As damas foram bem maquiadas e vestidas.

Henrich e Grimsley aguardavam as donzelas descerem depois de minutos se arrumando. Mãe e filha ficaram deslumbrantes. Os quatro entraram no carro e foram ao teatro.

O espetáculo era baseado numa obra shakeasperiana. Ficaram num camarote.

Coincidentemente, ou não, Vivien Barr resolveu aparecer com um longo vestido vermelho e um echarpe branco no pescoço. Acompanhava a caravana do governador Hans Frank como convidada num camarote vizinho. Isso chamou a atenção de Scherzinger que mesmo durante a peça não parou de olhar para ela.

— Que foi, querido?

— Só uma indisposição. Tenho que tomar um ar.

Barr também saiu, alegando ir ao toalete.

Nos corredores, eles se encontraram. O capitão pegou a amante pelo braço e a levou ao banheiro masculino — vazio na ocasião.

— O que faz aqui?

— Ora, se não é o comandante superior. Feliz em me ver?

— Não aprendeu depois que eu te dispensei? O meu superior desconfia que eu esteja traindo Antje e vai me tirar do cargo se eu continuar com isso.

A modelo agarrou Scherzinger e o beijou na boca. Ameaçou contar tudo, mas ele ameaçou matá-la.

— Saia da minha vida e vá embora definitivamente. Foi um erro esse envolvimento entre nós.

O homem deixou o banheiro e voltou ao camarote. Vivien ficou arrasada e pensando numa possível vingança futura.

...

Cracóvia, Polônia

20 de agosto de 1940

Impactante. A notícia sobre a morte do rabino Dhzokar Weck chocou Wolfram quando soube por meio do seu chefe alemão. O homem foi morto a tiros quando tentava salvar crianças da viagem para os campos. Infelizmente tais crianças foram obrigadas a embarcarem no trem sem pais.

Em casa, recebeu ajuda da família para lidar com o ocorrido.  O rabino Weck ajudou a família Wilczogórski quando eles se intalaram em Cracóvia noa ano de 1936. De lá pra cá dava sempre conselhos e recebia bem a família de Wolfram na sinagoga de Kazimierz.

 

— Como vai, meu bem? — Sofia entrou no quarto do adolescente. Ele lia um livro, deitado na cama, ainda com a roupa do trabalho. — Não vai tomar banho? Logo o racionamento começa...

— Vou daqui a pouco. Só queria esquecer tudo um pouco e ler um livro.

— A morte de Weck foi pesada demais para ti, hum? Vocês eram amigos. Uma criança amiga de um ancião.

— Por que isso é tão injusto, mamãe? Só quero entender o que fizemos de ruim para os nazistas nos odiar tanto.

Ela acariciou o rosto do filho e disse que os nazistas eram maus por natureza. O governo de Hitler era primariamente racista e não havi explicação lógica para tudo isso.

— Mesmo assim nem todos os nazistas ou familiares deles são assim. Isso é mais um grupo pró-Hitler e do alto escalão. Por exemplo, o soldado que vai pra guerra não é necessariamente nazista só porque tá lutando pelo governo alemão. 

— Isso soa um paradoxo.

— Pois é.

— Mas eu odeio os nazistas, mamãe. Odeio eles tanto que poderia matar um se eu tivesse a chance.

Ela pediu para Wolfram parar com ideias estranhas e focar no livro. Wolfram se levantou e foi tomar o bendito banho antes do racionamento — que sempre ocorria depois das 18 horas.

 

Jornal de Cracóvia

O senhor Siegfried Bonner era o dono do jornal pró-nazista intalado na Polônia em fevereiro daquele ano. Por mais que ele fosse aliado do governo do Führer, não tratava os judeus ou poloneses como vermes. Ele tinha uma certa convicção de ser diferente dos oficiais nazistas — que precisavam ser cruéis para manter a lei e a ordem de pureza racial. Conheceu Buchmann quando se mudou, esporadicamente, pedindo favores ao gorducho em troca de presentes caros.

— Bonner, meu novo velho amigo — acendeu o charuto. — Este cubano é maravilhoso. Pena que é o último. E é por isso que eu vim lhe pedir mais uma caixa daquela.

— Espere um pouco, Buchmann. Essa caixa eu te dei semana passada. Cada caixa possui dez charutos. Se fosse um homem sensato, fumaria menos e aproveitaria mais.

Buchmann soltou a fumaça no rosto do editor e se levantou. Respondeu que a ida dele ao gabinete daquele jornal era para um outro assunto, mais profissional.

— Você é muito pândego, Bonner. Fica desfrutando dos mais diversos privilégios que o Reich te dá por ser ariano e pró-nazi, mas possui uma forte preocupação com esse lixo judeu que trabalha pra você. Sem mencionar o fato do seu jornaleco expor que o governo vai construir guetos judaicos.

— Olha, Buchmann, essa informação foi passada por uma pessoa do próprio governo. E que diferença faz se eu noticiar com um ano de antecedência?

Buchmann pegou o quepe sobre a mesa do editor e olhou fixamente para ele.

— O que o governo faz acerca dos judeus não é um problema meu nem seu. Isso o que você está fazendo é um pouco... digamos que é o que um ativista anti-nazi faria. Querer demonizar o governo aos olhos do povo. Somos novos amigos, consegui convencer os meus superiores a não mandarem a Gestapo lhe interrogar. Muito cuidado da próxima vez. Ah, se ainda quer a minha intervenção, pague-me com mais charutos e dinheiro.

O gordo saiu da sala deixando o editor preocupado com o fato dos espiões alemães estarem de olho em seu jornal.

Wolfram trabalhava como datilógrafo e ajudante da secretária do editor. Ele era o único judeu que ficava no andar dos escritórios. Viu Buchmann sair da sala de Siegried, mais dois guardas o acompanharam. Por sorte não perceberam que ele era o único com a faixa com a estrela no braço.

— O que será que aconteceu?

— Não pergunte. Apenas digite — ralhou a secretária.

Pela janela do escritório, Siegfried viu Buchmann sair do prédio e entrar numa viatura.

 

Com 16 anos, Ilona agora era estudante universitária de enfermagem. Os Hitleristas além de estudarem no campus, vez ou outra participavam de aulas ao campo. Passeios eram programados em Cracóvia — tudo custeado pelo governo — para mostrar aos adolescentes a lei e a ordem do Governo Geral do Reich. E a classe em que Ilona frequentava iria passear num dos bairros mais nobres da cidade e conhecer estabelecimentos alemães.

— Senhor?

— Sim, pode entrar — disse Siegried à secretária.

— Eles chegaram.

O editor-chefe do Beliebt Zeitung agradeceu à moça e saiu do seu escritório. Recebeu os estudantes universitários na porta do edifício, convidando-os para um passeio nas instalações internas do jornal.

Durante a ida ao setor de impressão e carregamento de jornais, os hitleristas viram muitos judeus trabalhando quase sem parar, sempre com um outro judeu superior observando.

— Posso fazer uma pergunta ao senhor? — Ilona levantou a mão.

— Claro, senhorita.

— Todos esses trabalhadores são judeus?

Seus colegas de turma, uns dezenove, olharam quase que ao mesmo tempo para ela.

— Não. A maioria são judeus, mas existem poloneses e alguns tchecos. Também trabalham alemães, mas esses recebem a remuneração completa por serem arianos.

Naftali carregava uma pilha de jornal quando viu as estudantes alemãs conversarem. Era um grupo com cinco meninas.

— Volte ao trabalho, rapaz — disse um judeu supervisor.

— Sim, chefe. Mas antes de ir quero saber quem são?

— Pessoas que te olhariam feito um verme e não se importariam ao vê-lo morto. Satisfeito? Agora vai.

O jovem moço ficou encantado com a beleza das moças alemãs. Nunca teria uma chance com ninguém ali, mas pelo menos admirou a beleza.

Um dos colegas de Ilona riu dela. Indagou o motivo da filha do "maior nazista de Cracóvia depois do governador" estar tão interessada em saber sobre os judeus. Defendendo-se, Scherzinger disse que era só uma dúvida banal, que o bem-estar da comunidade judaica não a diz respeito, e sim a curiosidade sobre o diário local.

— Eu não acredito que minha amiga estivesse interessada em saber da vida dos judeus desse lugar, façam-me o favor! — disparou Brianne.

— Tudo bem, amiga. Não precisa dar vexame aqui.

O prédio do Beliebt Zeitung era uma antiga fábrica de tecelanato com apenas três andares, mas era extensa. No térreo (e pode-se incluir o primeiro andar junto) ficava a produção dos jornais diários, a recepção e até uma cantina para funcionários alemães; no segundo ficava boa parte dos editores, revisores, escritores e colunistas; e no terceiro os escritórios executivos. Apenas um judeu tinha o privilégio de trabalhar perto do dono do diário, e essa pessoa era Wolfram Wilczogórski. Por quê? Coincidentemente o dono, Siegfried Bonner, era de Dachau e conhecia August. Quando foi convidado por Otto Wachter para lançar o Beliebt na Polônia ocupada, especificamente em Cracóvia, entrou em contato com Heiko e August.

— O que foi, menino?

— Tenho que ir ao banheiro.

— Não pode segurar?

— Minha bexiga está cheia. Trabalhei sem parar naquela máquina.

— Tudo bem — assentiu a secretária. — Pode ir no banheiro desse andar. Se algum alemão estiver lá, espere. Não me cause problemas.

Wolfram agradeceu a gentileza da mulher e saiu rápido pra o corredor onde ficava o banheiro masculino. Entrou nele, adentrou na cabine com porta de madeira e urinou no vaso. Ao sair, viu uma moça lavando as mãos com uma amiga ao lado.

— Amiga, fomos descobertas.

— Opa, desculpe. O feminino estava em manutenção — disse Ilona para um Wolfram envergonhado e amedrontado. A sua farda entregou que era alemã e pró-nazista.

Brianne suspirou ao ver a braçadeira com a estrela de Davi no braço esquerdo dele.

— O que um reles judeu faz aqui?

— Silêncio, não faça escândalo. O moço tá envergonhado, olha.

De fato, Wolfram sequer olhou para as duas, preferindo ficar olhando para baixo e seu corpo ficou de perfil para elas. Perto delas ele era alto.

— Meninas, já vamos.

— Tá, professora. Vamos, colega. Deixa o judeu aí.

— Vai na frente. — Brianne saiu. — Desculpa a petulância daquela louca. Pode lavar as mãos, afinal aqui é um banheiro masculino.

— Obrigado, senhora. — Foi lavar as mãos.

— Moço, tenho dezesseis anos. Senhora é a Virgem Maria. Sou senhorita. Já vi que não é de falar muito, talvez porque seja judeu e eu alemã. De certo modo estamos em posições diferentes.

— O que a senhorita deseja?

— Que me olhe nos olhos. — Mas Wolfram negou esse gesto. — É tão covarde assim para não olhar nos olhos de uma dama? Eu sei que sou superior a ti, que você deve ser doente, mas pelo menos olhe quando eu falar.

— Não sou doente e nem inferior — disse Wolfram com raiva e fixando seus olhos pela primeira vez nos olhos dela. A professora viu quando um judeu levantou a voz para a filha de Henrich Scherzinger. Sem se preocupar com as consequências de levantar a voz para Ilona, Wolfram saiu rapidamente.

A professora era uma forte defensora do nazismo. Quado viu a cena de um judeu falar naquele tom com uma ariana, assustou-se e praticamente enlouqueceu. Foi preciso a sua aluna acalmar os ânimos e explicar que a culpa era dela mesmo.

— Veio tão desconfiado...

— Acho que fiz besteira — disse Wolfram nervoso.

— Eu sabia. Da próxima vez você se mija nas calças.

Claramente preocupado, Wolfram até desconfiou que nada de ruim havia acontecido depois daquele episódio no banheiro.

Após o trabalho, tanto ele quanto Naftali retornaram para casa antes do shabat — os dois sendo os únicos judeus com essa exceção no trabalho. Sofia, Angela e August era os únicos na casa, pois Heiko só saía da carpintaria depois das vinte e uma horas.

— Cara, hoje o dia foi cheio. Acho que estou precisando de uma massagem nos ombros. Faz pra mim?

— Quando você se casar, peça à sua futura mulher.

Wolfram permitiu que o amigo dividisse o seu quarto. Um tipo de edredom serviu como colchão para Naftali se deitar ao lado da cama do colega.

— Ah fala sério. Enquanto eu me mato de carregar peso, o senhor escritor fica no bem e bom lá com o grande chefe.

— Talvez nem tenha sido tão bom assim. — Retirou a roupa e foi de toalha tomar banho.

— E hoje, hã? Aquelas belas damas alemãs no jornal.

— Não vi nada demais. Essas moças provavelmente são doutrinadas a odiarem judeus.

— Eu queria ser alemão pra ter alguma chance. Se pelo menos eu não tivesse nascido judeu...

O loiro imediatamente colocou a sua mão na boca de Naftali e exigiu que o moreno jamais dissesse tal absurdo. Aconselhou o amigo a nunca renunciar as suas origens judaicas e que a fala de antes era um desrespeito ao povo semita que sofria perseguição.

— Vai ficar aqui e me ver nu? — Retirou a toalha na frente do amigo.

— Certo. Já vou sair. Agora fala sério que você não viu uma alemã daquela? Enfim, independente de ser alemã ou não, quero viver ainda muito. Possivelmente eu faça que nem o seu irmão e fuja para bem longe. Sou jovem, pô. Eu quero viver uns setenta anos ainda.

— Tudo bem, senhor jovem. Agora dá para me deixar sozinho antes que a água no chuveiro acabe? É um saco tomar banho de balde.

Durante a noite, Naftali pensou num jeito de ir embora de Cracóvia num futuro bem próximo. Qualquer tentativa de fuga entre judeus, ainda naquele ano, com certeza estaria lá. Pensou nisso antes de dormir.

Antes de ter a sua vida normal tomada pelos nazistas, o moreno vivia com os seus pais de forma livre e relativamente calma. Seu maior sonho era virar um violoncelista famoso, pois na escola era o número 1 da aula de música. Nunca contou sobre a sua habilidade no instrumento para a família que o acolheu, provavelmente não querendo se apegar muito a eles. Durante suas apresentações, sua avó materna sempre visitava mesmo com câncer. Cinco anos atrás quando ainda era uma criança de dez anos e astro do violoncelo, a idosa colapsou na sua frente e dois dias depois morreu.

No sábado pela manhã o shabat ainda continuava, mas o jornal não respeitava isso e obrigava os empregados judeus a trabalharem também aos finais de semana. O senhor Bonner era um homem bom, mas não podia fazer milagres — e o regime era taxativo quando o assunto era trabalho judeu.

— Pegou as braçadeiras? — perguntou Sofia.

— Já tá no meu braço — respondeu Naftali.

— E você, filho?

— Aqui no bolso. Depois eu coloco. É porque antes vou entrar numa padaria e comprar algo para comermos no caminho.

— Tá. Juízo os dois.

A dupla saiu do apartamento e caminhou pelas ruas de Cracóvia até chegar ao bairro onde o jornal se localizava. Como dito anteriormente, Wolfram aproveitou que não estava de faixa para comprar dois bolinhos de chocolate. Tanto ele quanto o amigo comeram durante o caminho.

— Aquela conversa que a gente teve ontem...

— O papo de ir embora igual o Jacob? Não duvido da sua capacidade, mas acho uma atitude errada.

O moreno parou o loiro numa distância de apenas vinte metros da entrada do jornal.

— Sabe por que eu quero sair desse inferno?

— Não, me conta.

— Não quis contar antes, mas quero dizer que eu sou instrumentista. Sim, eu toco violoncelo e arrisco um pouco o violino.

— Isso é demais, cara. Escondeu esse tempo todo da gente por quê? Pensei que gostasse de nós.

— Eu gosto. Desculpa por omitir isso. Comecei a tocar por influência da minha avó materna que era violoncelista, e que morreu de câncer durante uma apresentação da banda que eu tocava. O meu sonho é ser um violoncelista profissional, visitar a América e ser livre. Viver em Cracóvia não é mais uma opção.

— Um dia quero te ver tocar...

Alguns passos mais à frente. O destino pode ser cruel com um ser humano, porque existe uma linha tênue entre a vida e a morte que nos faz indagar o quão frágil é a vida. Alguns acreditam em destino, outros no mero acaso, mas no final o resultado sempre é o mesmo. Antes de terminar aquela conversa banal e cotidiana, um espirro de sangue atingiu o rosto de Wolfram. O fluído veio de Naftali. Um buraco abriu na altura do pomo-de-adão do moreno, jorrando o sangue por todos os lados. Nada daquilo veio do acaso. Um barulho de tiro, de uma direção desconhecida, ocorreu quase no mesmo instante do polonês ser atingido. Obviamente ele despencou no chão, agonizando até a morte nos braços de Wolfram.

Pedestres passavam pela calçada ensanguentada, porém não ajudavam mesmo com os gritos de Wolfram. O desprezo dos moradores ao verem um judeu morrer era gritante.

 

— E agora veremos a banda da escola tocar a nona sinfonia de Beethoven. A nossa estrela mirim, Naftali Bennetz, mostrará todo o seu potencial no violoncelo.

 Cracóvia, Polônia

Em 1935 a banda da escola tocou a famosa sinfonia de Beethoven para um público de pais e mestres. O garotinho de dez anos se destacou na apresentação.

— Você foi ótimo — disse a mãe dele.

Numa cadeira de rodas e abatida, uma senhora idosa abraçou o neto pela melhor performance que viu em vida.


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