Cracóvia escrita por Sensei Oji Mestre Nyah Fanfic


Capítulo 2
O Falcão do Führer




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Nuremberg, Alemanha

Setembro de 1936

O encontro anual do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães ocorreu na primeira metade de setembro em Nuremberg. Nesse comício, milhares de pessoas compareceram para as apresentações militares. Nesse encontro, a Alemanha virou uma página muito importante.

Depois da Guerra de 1914-1918, os aliados França e Reino Unido puniram o Império Alemão com o infame Tratado de Versalhes. O documento responsabilizou unicamente os germânicos pela guerra na Europa, punindo-os severamente com condições amargas para os patriotas do país. A Prússia, ao norte, perdeu territórios para a Polônia, no oeste a França abocanhou uma região disputada e a Áustria tornou-se independente. O império se desfez, a Alemanha foi oficialmente nomeada como República de Weimar e uma proto-democracia inserida nos moldes do parlamentarismo. E não só perdas regionais e políticas mas também as forças armadas alemãs foram reduzidas. Somente 100 mil seria o número máximo de soldados e o estado não poderia formar uma força militar aeronáutica independente. Isso foi uma humilhação severa ao nacionalismo e assim iniciou-se o destino daquele país em se render ao nazismo.

Por volta das décadas de 20, o ex-soldado e quase mendigo Adolf Hitler entrou no partido como o cara que poderia salvar o povo alemão. Preso depois de uma tentativa de golpe numa cervejaria alemã, o líder radical escreveu o Mein Kampf — e mais tarde aquilo escrito virou a sina para milhões de judeus. Em 1933, o presidente de Weimar foi obrigado a nomear o ex-artista plástico caricato ao posto de líder do governo, na chancelaria de Berlim. Foi o início da ascenção da ditadura.

O presidente e a maioria dos cidadãos odiavam a democracia parlamentarista em si, mas acreditavam que Hitler era radical demais. Entretanto, deram um voto de confiança... e o próprio austríaco provou que era o que sempre foi. Instaurou a política de partido único, perseguições, aumento de poder executivo (depois de um incêndio no parlamento) e com a morte do envelhecido presidente se autointitulou o Führer total. Daí foi o passo para a doutrinação, mudança da bandeira e a destruição do Tratado de Versalhes junto com a Liga das Nações. A campanha de reestruturação nacionalista levou os alemães a futuramente invadirem países antes independentes.

Um dos calos germânicos que fora "pisado" em 1919: a redução das forças armadas. Em 1933, o líder da Prússia, Hermann Göring, se tornou o ministro da aviação civil e reformulou a aeronáutica nacional, a Luftwaffe. Em segredo, o ministério encabeçado por Göring transformou uma quinquilharia alemã numa das melhores forças áereas da Europa.

Na esteira do militarismo e patriotismo, os nazistas asseguraram que a doutrinação começaria cedo nas escolas. O governo promoveu a Juventude Hitlerista. Crianças e adolescentes eram preparados para a vida militar na tenra idade, com exercícios escolares que promoviam o nazismo. Muitos desses jovens treinavam para um dia se tornar membro do exército, marinha e aeronáutica.

Em Nuremberg, no desfile dos militares, Adolf Hitler, Joseph Goebbels, Heinrich Himmler, Reinhard Reydrich, Hermann Göring, Rudolf Hess, outros líderes do governo e militares de alta patente assistiram à apresentação num camarote montado. Os aviões da Luftwaffe fizeram a espetacular apresentação. O povo aplaudiu o momento em que as aeronaves formaram a imagem da suástica no céu. Logo, os homens nos tanques de guerra, Panzer. A marcha dos soldados foi o ponto alto com Hitler fazendo a saudação enquanto os milhares marchavam na sua frente. Uma ala da Juventude Hitlerista passou com um jovem de 18 anos sendo o porta-bandeira.

Ao final daquilo, o Führer resolveu apertar as mãos de alguns soldados. Foi o momento crucial para o até então sargento Scherzinger chegar perto do seu líder.

— Heil, meu Führer!

— Heil. Como vai?

— Meu Führer, prazer. Sou o sargento Henrich Scherzinger. Quero apresentar o menino prodígio, o soldado perfeito e completamente ariano. Este é o meu sobrinho, filho de minha irmã, Grimsley Forchhammer.

— Prazer, como vai?

Hitler se aproximou do mais jovem e estendeu a mão. Grimsley era o porta-bandeira da ala da juventude que havia marchado a pouco. Sempre teve a vontade de conhecer o líder da Alemanha. Sua pele quase pálida contrastava com o cabelo preto arrumado e penteado de lado. Seus olhos verdes eram chamativos, de uma beleza ímpar. Um homem de 18 anos, com 1,85 de altura, forte e preparando-se para estrear na Luftwaffe no ano seguinte. 

— Esse seu sobrinho tem um aperto de mão firme. Gosto assim.

Apertou a mão de Hitler, que logo foi cumprimentar os outros. Naquele instante, algo dentro do jovem Grimsley surgiu e surgiu como uma erupção. Ele olhou para a sua mão com os olhos quase lacrimejando, pois havia apertado a mão do seu Führer. O mundo parou ali, nada mais importava, a sua vida deveria ser daquele homem. Adolf Hitler era um deus em forma humana, um messias que trouxe prosperidade para o país, o maior homem do planeta... pelos céus! Aquele homem precisava ser protegido, ser seguido, ser adorado. Foi assim que Grimsley pensou a partir dali. Hitler precisava ser o seu dono, seu pai, sua mãe, seu ar que respira. Naquele momento, o jovem Forchhammer deu a sua vida ao Führer e virou 100% nazista de corpo e alma.

— E aí, o que achou?

— Tio, quero servir ao meu Führer o quanto antes. Ele poderia me pedir qualquer coisa que eu o faria.

— Isso aí. Bom, vamos jantar daqui a pouco num restaurante.

 

Os oficiais da Schutzstaffel em sua maioria, alguns da Sturmabteilung, outros da Luftwaffe e até mesmo membros da Gestapo se reuniram num luxuoso restaurante em Nuremberg logo após o último dia de apresentação das novas tropas alemãs e do esforço para enterrar de vez o Tratado de Versalhes.

O sargento Scherzinger ficou acompanhado com seus colegas e até mesmo amigas pessoais como modelos e atrizes. Ele se levantou, tirou o quepe da cabeça e bateu o garfo na taça para chamar a atenção.

— Quero agradecer a todos os presentes das mais variadas patentes das forças policiais e armadas do Reich. Cada um de nós fará história e sucesso para a grande Alemanha. Fomos subjugados pelos burocratas hipócritas com a maldita Liga das Nações tentando impor suas regras a todo o povo deste país. No entanto, graças ao nosso Führer que a Alemanha voltou a ser patriótica, nacionalista e rica como deve ser. É imprescindível que cada um de nós façamos a nossa parte na guerra que virá, mas não contra países... digo contra o judaísmo. Sim, meus amigos, a nossa guerra santa é contra os judeus, uma guerra judaica contra aqueles que foram os principais culpados da nossa derrota, que agora se unem aos comunistas e depravados para destruírem os valores desta terra. Os seres inferiores que trazem doenças e imoralidades para os arianos. Nossa batalha é contra os judeus, e teremos o prazer de travá-la com o maior vigor. Quem está comigo?

Os oficiais se levantaram e bateram palmas para o pequeno discurso do sargento. Uma fotógrafa pediu para que eles fizessem uma boa pose e tirou a foto.

— Antes de jantarmos, quero apresentar o meu sobrinho. Ele é de Munique, mas se gaba de ser moreno e parte austríaco como o Führer. Esse é Grimsley Forchhammer, filho de minha irmã e do meu falecido cunhado.

— Prazer, senhores.

Uma mulher e uma garota adolescente se aproximaram da mesa. Eram a esposa e filha de Scherzinger. Os colegas do sargento se levantaram e deram uma boa noite para as duas.

— A minha esposa, Antje Scherzinger. Ela é professora e ensina sobre o nazismo numa escola da Juventude Hitlerista. E esta é a minha amada Ilona, minha única filha. Ela será uma excelente mãe e esposa no futuro e terá filhos arianos.

— Sua filha é linda, senhor Scherzinger — disse uma atriz que acompanhava os cavalheiros.

— Querido, vamos nos sentar. Venha, filha.

Ilona sentou-se ao lado de Grimsley. Durante todo o jantar, as pessoas se resumiam a fazer piadas de judeus, comentários técnicos e depois mais discontraídos. Uma modelo da cidade elogiou a aparência bastante ariana do jovem Forchhammer e brincou que os primos dariam um belo casal. Scherzinger optou por comentar sobre a pouca idade da filha, de 12 anos, e que no tempo certo a mesma seria uma boa dona de casa e perpetuadora da raça.

— Ela ainda é muito criança para pensar nesse tipo de coisa, senhorita Barr — disse a dona Scherzinger visivelmente irritada com o comentário maldoso para uma pré-adolescente.

— Melhor comermos, não? A propósito, meu sobrinho, vai quando para o treinamento?

— Daqui a duas semanas, tio. Pretendo ser o mais eficiente possível e almejar os cargos mais altos.

— Seu sobrinho é ambicioso, Henrich — falou um dos oficiais.

Grimsley recebeu diversos elogios tanto de homens quanto de mulheres. Para muitos, o jovem de Munique era o exemplo perfeito de soldado, um ariano nato, um futuro líder. As atrizes e a modelo à mesa comentaram que a sua futura esposa seria a mulher mais sortuda do mundo. Entretanto, a banalidade do mal nasceu no coração dele, a sua alma corromperia aos níveis mais baixos possíveis.

 

Paris, França

7 de novembro de 1938

Um judeu polaco, amargurado por saber da perseguição da sua família na Alemanha, comprou um revólver, umas balas e resolveu matar o primeiro membro da embaixada da Alemanha. Um diplomata alemão atendeu ao homem, mas levou vários tiros e morreu ali mesmo. O judeu foi preso.

Esse episódio foi o estopim para uma grande revolta nos dias seguintes. O governo alemão se aproveitou da morte de um membro pelas mãos de um judeu para promover um verdadeiro pogrom aos judeus do país inteiro — inclusive na Áustria ocupada. Foram dois dias e duas noites em que civis e militantes depredaram casas, lojas e comércios de judeus, além da destruição de inúmeras sinagogas. A depredação generalizada mais tarde seria conhecida como A Noite de Cristais, por causa dos vidros das lojas espalhados nas calçadas. Foi algo tão extraordinário que jornais do mundo comentaram sobre. 

E durante a turba enraivecida dos militantes — liderados pela sturmabteilung — muitos judeus foram presos e deportados à força para fora do país ou para campos de concentração. Mas o pior ficou para aqueles que morreram no processo. Um número incalculável de danos, e a passividade da polícia ao ficar de braços cruzados durante as manifestações. As famílias judias que conseguiram sobreviver tiveram que sair o quanto antes para longe, haja vista era questão de tempo serem mortas. Os bens foram apreendidos pelo governo — o objetivo principal pois o diplomata morto era anti-nazi.

Durante o pogrom, na madrugada entre 9 e 10 de novembro, um carro surgiu na frente de uma loja. Quatro homens com bastões saíram e depredaram a loja. Os moradores foram feitos reféns e resumiam a uma mulher grávida, um homem, um idoso e duas crianças, dois meninos.

— Por favor, não faça nada com a gente.

— Cala a boca, vaca judia!

Um quinto membro saiu de dentro do carro. Devidamente fardado e com quepe, entrou na loja.

— Pegamos eles, Grim.

O agora oficial da luftwaffe pediu para pegarem o idoso da família e colocá-lo no meio da sala. Grimsley pegou a sua pistola enquanto o velho orava pela sua alma. A mulher praticamente gritava, levando um soco no rosto de um dos algozes. Grimsley deu um tiro por trás da cabeça da vítima, matando-a na hora.

—  Agora traga o homem.

As crianças choraram ao ver o pai delas sendo arrastado para a execução sumária. Os homens tiveram trabalho e usaram os bastões para golpearem o moribundo. Sangrando e arfando no chão, ele levou um tiro de misericórdia por parte de Grimsley.

A mãe das crianças pediu para que elas corressem e salvassem as suas vidas. Não importasse se ela morresse, mas pelo menos os pequeninos teriam que viver. Assim, aproveitando a distração do grupo quando espancavam o pai, elas fugiram. Assim que matou o homem, Grim pediu que fossem atrás delas.

— Corre! — esbravejou a mãe, levando um tapa em seguida de um dos algozes.

Grimsley puxou uma cadeira e sentou-se com o encosto ao contrário, para frente. Observou a judia grávida com os seus olhos verdes vivos e ameaçadores.

— Pergunta por que estamos fazendo isso — ela balançou a cabeça negativamente. — Vamos lá, você consegue.

Impaciente com a relutância da vítima, Grimsley ameaçou destravando a pistola.

— Po-por que... fazem isso?

— Porque é divertido. É prazeroso depredar casa de judeus e matar os seus moradores. Ponto. Gostou dessa explicação? Queria algo mais detalhado, algo mais plausível e de fácil compreensão? Tem sorte, minha senhora, pois eu tenho um motivo melhor. Quer saber? Eu odeio os judeus. Eu tenho nojo de todos vocês, dessa raça imunda e transgressora, dessa religião satânica e anti-alemã, além de comunistas. Pra mim todos vocês são uma espécie de sub-humanos iguais a ratos e baratas, tipo pragas que se alastram na superfície da Terra. Vocês carregam tudo o que é de ruim na humanidade, asquerosos, nojentos, depravados, indignos de viver. Prometi a mim mesmo que se eu pudesse matar o máximo de vocês possíveis, eu o farei. Nojo dessa raça imunda.

— Trouxemos apenas um — disse o homem com o menino no braço. A criança se debatia.

A mãe dele gritou, mas logo foi executada com um tiro na testa. Pra completar, Grimsley deu mais três tiros na barriga de seis meses dela. O sangue espirrou no rosto dele.

— Cuide do moleque.

Foi para fora enquanto limpava o rosto com um lenço. Satisfez o seu instinto assassino. Aproveitou o dia de folga para ir com os amigos do quartel participar do pogrom. Foi um sucesso.

O barulho de dois tiros. Logo, os colegas dele saíram e ficaram de frente da loja. Grimsley acendeu um cigarro — aprendeu a fumar com dezenove anos, ou seja, há poucos meses. 

— Vamos embora.

Não antes de atear fogo na residência. Todos os corpos foram carbonizados, mas os bombeiros fizeram pouco caso.

Uma criança conseguiu escapar e agora virou foragida pelas ruas frias de Munique.

 

Varsóvia, Polônia

10 de setembro de 1939

A guerra de Varsóvia levou dias para ser concluída. Diferentemente de Cracóvia, a capital polaca não se rendeu e lutou com todas as forças. Os 400 mil judeus estavam apreensivos com o destino do país com o exército local perdendo espaço para a Wehrmatch. No espaço aéreo, a Luftwaffe dava um show com aviões de última geração versus modelos padrões poloneses. Era questão de tempo para o país sucumbir.

No céu de Varsóvia, o brilhante Grimsley Forchhammer conseguiu bombardear áreas militares da cidade e locais estratégicos. Não só ele, mas os falcões do Reich explodiram boa parte dos prédios da cidade.

Por semanas, o piloto teve um desempenho espetacular e foi o homem no ar que mais abateu caças polacos e abriu caminho para a conquista de Varsóvia. Com apenas 21 anos, em 12 de novembro, Grimsley Forchhammer foi agraciado com a Cruz de Ferro de segunda classe e subiu de posto. Os colegas aplaudiram a promoção dele por parte da Waffen-SS (ramo da schutzstaffel dentro das forças armadas). Agora a cruz era usada dentro da sua farda Hugo Boss, com o pedaço da fita vermelha à mostra na diagonal presa no segundo botão.

A sua patente agora era como se fosse cabo, mas o rapaz era ambicioso demais para ficar apenas com essa promoção.

— Você foi muito bem, meu sobrinho. É um verdadeiro herói — disse Henrich ao chegar na cerimônia das novas patentes. — Pulou de soldado para o primeiro-cabo assim tão rápido.

— Que nada, tio. Levei dois anos para almejar esse aumento. Mas a guerra veio a calhar para a minha carreira nas forças armadas. E olha? A fita da Cruz de Ferro? Mas ainda tenho esperança de conseguir a da primeira classe e colocar no meu peito como a do senhor.

— Que bom. Ambição é assim mesmo. Mas Grimsley, subir de cargo na Luftwaffe é bem mais difícil do que na S.S. propriamente dita. Vim aqui te oferecer um cargo no Governo Geral. O que acha?

— Não, tio. Ainda tenho trabalho a fazer. Eu sempre disse que meu sonho era ser piloto e estar no ar. Esse sonho está se realizando.

— Eu sabia que se negaria. Quando mudar de ideia, falarei com os meus superiores. Tenho uma boa relação com o Obergruppenführer Frank.

A breve conversa entre tio e sobrinho durou pouco pois Scherzinger dava os parabéns aos demais soldados, inclusive os que também subiram de posto.

 

Berlim, Alemanha

02 de dezembro de 1939

Numa cervejaria, Grimsley e os seu amigos aproveitaram o dia de folga para se embebedarem e divertirem. O início da guerra foi bem estressante, mas ter uma patente superior deixou o ego do militar lá no alto.

— Eu te disse, não foi? Não tem mais judeus na Alemanha. Todos já foram para o beleléu.

— Cala a boca, Ernst. Sabe de nada. Claro que existem ainda judeus no país. Se procurar, acha.

Grim continuou calado apenas ouvindo os seus colegas de quartel tagarelarem enquanto lia um livro. Sua atenção desviou quando uma garçonete passou encarando-o.

Atrás da cervejaria, perto dos barris, o cabo abaixou a calça e fez sexo com a garçonete ali mesmo. Depois de alguns minutos, pagou uns trocados para ela.

— Vamos embora — saiu com os amigos.

O dono da cervejaria perguntou sobre o ocorrido, mas ela desconversou. Seu rosto possuía uma marca vermelha na bochecha esquerda. A garçonete aparentemente amou levar um tapa no rosto.

Os três saíram num carro com o cabo dirigindo pelas ruas de Berlim. Um deles perguntou aonde iriam e o moreno respondeu que uma caça começaria. O carro parou na frente de um campo de trabalhos forçados longe do centro da capital. Grimsley pagou uma quantia considerável aos guardas para trazer-lhe um judeu moribundo.

— Aqui está. Mas isso morre aqui. Eu posso perder o emprego se o diretor descobrir que vendo os judeus. Não entendam mal, ele utiliza-os para mão de obra escrava.

Os dois acompanhantes levaram o refém para dentro do carro. O rapaz estava maltrapilho, cabelos raspados e um pouco magro. Foi jogado para dentro do carro e levado para uma floresta.

— Agora faça a sua parte, verme. Corre — disse Grimsley cortando a corda dos seus pulsos.

— Não ouviu? Tá surdo?

O judeu correu para dentro da mata à noite. Grimsley pegou um relógio de bolso e contou um minuto de vantagem à presa. Depois da contagem, pegou um rifle e deu as suas pistolas aos amigos.

— Não é justo. Você tem um rifle.

— Pois é. Vai achá-lo mais fácil.

— Como vocês choram. Tudo bem, eu prometo que se eu perder, pago duas noites de cerveja para vocês. Agora vamos para o abate.

Os três correram para dentro da floresta e foram ao encalço da vítima. Um esporte no mínimo bizarro: caçar humanos. Na verdade era caçar judeus, pois outrora o mesmo guarda ofereceu um cigano, mas o cabo negou a oferta. Grimsley tem um vício maior do que ele que é eliminar e tratar como lixo qualquer judeu. Não há limites para uma pessoa como ele.

***

Cracóvia, Polônia

8 de dezembro de 1939

Aproveitando-se do shabat e do pouco policiamento à noite, o estudante alemão judeu mestiço Jacob Wilczogórski fugiu com o ex-soldado polaco Pavel Trutzinski. Os dois saíram por volta das dez da noite do ateliê de Diane O'Shea rumo à estação ferroviária.

Em Cracóvia a situação dos judeus não era nada confortável depois que o governador do Governo Geral decidiu suprimir vários direitos dos cidadãos desse grupo social. O mais notável ato foi a famosa braçadeira com a estrela de Davi que cada judeu teria de usar para se identificarem. Foi uma medida humilhante, porque muitos da própria sociedade civil desviavam seus olhares quando viam um judeu. Os policiais da S.S. se tornaram mais brutais com cidadãos com a marca.

E para se livrar disso, Jacob decidiu fugir para o leste. Os comunistas também eram hostis, mas as hostilidades eram locais, e não sistemáticas do próprio governo. Talvez indo para fora do domínio de Hitler, ele tenha alguma chance.

— Tudo limpo. Vem, rápido.

Com as ruas tomada pela neve e parcialmente escuras, a partida dos dois ficou relativamente mais fácil. Pavel chamou Jacob assim que percebeu que os policiais da patrulha se refugiaram num bar perto. O bonde passou vazio naquele horário.

— Vamos subir. Coloque o quepe. Rápido.

O adolescente obedeceu ao comando de Pavel e botou o acessório na cabeça. Subiram sem nenhum problema por causa das fardas deles que lembravam um pouco a farda alemã — eram pretas parecidas com as do modelo antigo. O condutor apenas pediu para que eles se sentassem enquanto o veículo seguia caminho.

— Onde conseguiu essas roupas?

— Um alfaiate amigo meu fez unicamente para a fuga. Ele havia feito mais uma para o seu irmão, mas não precisou — sussurrou.

O bonde seguiu caminho para um bairro perto da estação. Eles desceram e partiram com as mochilas nas costas.

— E o trem vai estar nos esperando aqui?

— Claro que não, maluco. Vamos num outro veículo até chegarmos no ponto de encontro.

A estação ferroviária de Cracóvia possuía pessoas mesmo num horário tarde. Além de civis, os oficiais também faziam rondas noturnas. Era perigoso demais se expor para os homens da S.S. sendo um judeu disfarçado. Sem que eles percebessem, Pavel e Jacob caminharam pelo trilho na direção norte.

— Eu pensei que a gente sairia num outro veículo...

— Sim, nossos pés.

— Ah...

— Se quiser desistir, dê meia-volta e volte. A partir desse ponto a nossa viagem será praticamente apenas de ida.

Wilczogórski não desejou desistir. Assim caminharam no frio de dois graus Celsius por vários e vários metros. Durante a caminhada, Trutzinski pegou uma pistola de dentro da mochila.

— Pra que essa arma?

— Precaução. Desse ponto em diante qualquer alemão fardado vai levar chumbo na hora.

 

As horas se passaram, mas a preocupação da família de Jacob não. Sofia andava para lá e para cá aflita, e isso deixou o marido também nervoso.

— Eu não devia ter permitido que ele partisse com um estranho. Devia ter impedido.

— Impedido para quê? O nosso filho quis ir. Fez uma escolha e preferiu sair desse inferno a viver nele — disse Heiko.

Angela deu um abraço na mãe e tentou acalmá-la, dizendo que Jacob era forte e corajoso. Wolfram teve que concordar com a irmã nesse assunto, mas ressaltando os perigos da Polônia ocupada.

— Não deixe a nossa mãe preocupada, bobão.

— Não falo nenhuma mentira. A escolha de Jacob não foi a das mais sábias e todo mundo há de concordar. Por isso eu não quis ir junto.

August pediu mais respeito naquela noite, pois o shabat ocorria e uma discussão seria perda de tempo. O ex-empresário disse orar para que o neto se dê bem na vida e que encontre a paz longe dali.

— Que Deus te ouça, sogro.

— Ele vai ouvir. Não se preocupe, minha filha.

Wolfram parecia estar calmo demais, mas a sua natureza introvertida impedia as pessoas de enxergarem a sua grande preocupação por dentro. Era o seu irmão gêmeo lá fora no frio. Óbvio que era preocupante.

 

Uma da madrugada do dia 9 de dezembro. A dupla conseguiu caminhar até próximo o rio Vístula. Atravessaram a ponte da ferrovia sem nenhum problema — os trens não costumavam ser tão frequentes em épocas de frio. Puderam passar para o outro lado até que viram luzes em seus rostos.

— Caramba...

— Fica tranquilo, garoto.

A lanterna ficou ainda mais incessante assim que o condutor se aproximava. A tensão só aumentou até o homem aparecer diante deles. Por sorte não era um alemão.

— Vocês me assustaram. Pensei que eram os alemães com essas fardas. Quase atiro em vocês — disse um homem ruivo de bigode.

— Andrej até que enfim — deu um abraço no amigo. — Esse é o garoto que decidiu vir comigo. O irmão dele também viria, mas desistiu de última hora. Jacob, este é Andrej Wladeck, um amigo meu. Ele tá junto comigo e reuniu as dez pessoas para ir junto conosco. Andrej também é militar.

— Prazer, garoto. Melhor partirmos imediatamente.

Os três se encontraram com um grupo de dez pessoas de Cracóvia, mas o trem teria que passar perto de Varsóvia e pegar mais um tanto.

— Ali está o trem. Conseguiu o maquinista?

— Sim. Temos Wladislaw ali que sempre trabalhou na ferrovia.

— Essa gente... não trouxe a família?

Pavel e Andrej se olharam.

— Jacob, da mesma forma que você não trouxe, eles também não. Todos estamos aqui por vontade própria e interesses individuais.

As treze pessoas entraram no trem de cinco vagões e prepararam-se para a partida. O maquinista colocou carvão para que a locomotiva funcionasse a todo o vapor. Logo eles partiram para a direção de Cracóvia por alguns metros, um deles saiu e mudou o ramal para a linha principal, depois o trem partiu para a frente, ou seja, na direção leste. Esse trem possuía duas cabines em cada extremidade. 

Jacob ficou sentado num assento, observando a paisagem pela janela. Trutzinski chegou com um chá quente e deu ao adolescente.

— Se tudo der certo, amanhã mesmo chegaremos em Białystok. Sei que ainda pensa na sua família ou talvez na Dorota, eu também tive que deixar tudo para trás.

— Você não tem família, Pavel?

— A minha família é de Varsóvia e morreram no bombardeio. Meus pais e até a minha noiva. As únicas que ainda possuem o pouco do meu sangue são as O'Shea. Por isso decidi ir embora, não olhar para trás. Na hora da crise é cada um por si, pois quando você segura a mão do seu companheiro ao lado, morre junto. Não pretendo morrer com os outros judeus só porque eles foram tolos de ficar. Isso é justo, não acha?

— Claro. — Jacob assentiu. A mesma linha de pensamento "cada um por si" de Pavel ele mesmo pôs em prática.

O trem continuou a todo o vapor.

 

Agentes da Gestapo disfarçaram-se de poloneses para extraírem a informação de possíveis revoltas, no entanto não imaginavam uma fuga programada. À noite, um cerco fez com que as quinze pessoas fossem pegas no flagra, e uma troca de tiros entre fugitivos e policiais começou num armazém próximo à linha férrea.

O governador do distrito, Fischer, soube do ocorrido e logo pediu que os oficiais da S.S. com a Gestapo local informassem um possível complô nas cidades vizinhas, incluindo em Cracóvia.

— Certo. Obrigado pela informação. — Scherzinger desligou o telefone e informou ao governador distrital Otto Wächter sobre a possível fuga.

Segundo a ligação de Varsóvia, os fugitivos judeus estavam num ponto de encontro para partirem de trem, haja vista havia uma linha férrea perto. A notícia foi suficiente para que uma boa parte da polícia schutzstaffel de Cracóvia agisse. Quatro carros com quatro policiais cada partiram no encalço do trem pirata.

 

— Andrej, o que está acontecendo? Pensei que passaríamos em Varsóvia? — perguntou Pavel.

— Mudança de planos. Irmos por aquele caminho ficou fora de questão.

— Os nossos colegas estarão esperando a nossa ida no ponto marcado!

— Sinto muito. Ouvi dizer que havia um delator entre eles. Não falei nada para não comprometer o ponto de encontro nosso.

— Isso é besteira! Vamos voltar pelo caminho combinado.

Dois homens apontaram armas para Trutzinski. Andrej pediu desculpas para o amigo, mas não retrocederia.

— Você mesmo disse que é cada um por si. Coloquei essa linha de pensamento em prática, meu amigo.

— Ou isso é alguma revolução? Andrej, sério? Virou comunista?

— Hahahaha. Morte aos fascistas, não é? Não se preocupe, pois iremos para o almejado destino... não para fugirmos, mas para lutarmos.

Os dois homens levaram Pavel para o vagão que Jacob continuava. O jovem viu a apreensão do homem.

— O que houve? Fala.

— Esse loucos. Viraram comunistas e agora querem lutar contra os nazistas.

— Cara... meu pai odeia comunistas e sou alemão. Já pensou se descobrem?

No interior da Polônia, os campos ficaram brancos por causa da neve. Mesmo assim isso não impediu os alemães de perseguirem o trem e emparelharem com ele. À frente, um carro no meio da linha e dois oficiais pediam para parar.

— O que faremos? — perguntou Wladislaw.

— Passe por cima. A todo o vapor — respondeu Andrej.

Os nazistas se afastaram e viram a locomotiva destruir o veículo. Imediatamente abriram fogo contra os vagões.

— Merda. Como eles nos acharam?

— Sério, Andrej que você achou que os alemães achariam o ponto de encontro de Varsóvia, e não o nosso?

— Volta para o teu vagão, colega.

Os nazistas pediram ajuda depois que o trem aumentou de velocidade e entrou num túnel. Seguir de carro já não era uma opção.

Mas, voltemos um pouco mais ao passado. Há dois dias dessa fuga, Henrich Scherzinger aproveitou a folga para mostrar aos familiares como era a cidade de Cracóvia. Nesse meio, o cabo da luftwaffe Grimsley também foi. Conheceram os lugares mais ricos da cidade inclusive um castelo onde Hans Frank morava com a família. Grimsley ficaria por uma semana das férias depois do começo da guerra, mas logo retornaria para a Alemanha. Quando a fuga do trem de Cracóvia foi descoberta e os carros ficaram para trás, uma mensagem chegou ao gabinete de Scherzinger — que naquela altura servia como plantonista do governo. Apenas um caça da luftwaffe poderia parar o trem, mas não havia piloto disponível, exceto um.

Acordado por volta das cinco horas da manhã, Grimsley saiu da cama  praticamente forçado pelo tio.

— Até mesmo um soldado precisa de descanso, titio.

— Se você conseguir parar aquele trem, prometo que mexo os pauzinhos para mais uma promoção antes do ano novo.

Momentos depois, o cabo subia na aeronave já completamente lúcido e sem sono. Confiou na palavra de Scherzinger sobre a promoção que terá, caso abatesse o alvo.

Enquanto isso, Pavel perguntou até quando viajariam. Andrej respondeu que o verdadeiro ponto de encontro era Minsk. Aquilo era uma loucura, talvez nem dê para continuar. A tensão aumentou drasticamente quando o barulho de um avião passou no céu.

— Volta para o teu vagão! Fica com o seu amiguinho. Vocês podem atirar neles se saírem de lá.

O vagão em que ficaram era o quinto. Andrej e os comunistas estavam no primeiro.

— Encontrei o alvo — disse Grim por volta das sete da manhã.

Soltou uma bomba, que caiu direto sobre o trem. Explodiu no vagão do meio, ou seja, de número três. O veículo descarrilou e se partiu em várias peças, cada uma em um vagão.

— Droga... malditos fascistas. Filhos de uma porca — praguejou Andrej ferido e sobre os escombros.

No último vagão, Jacob ficou praticamente sobre a neve e folhas das árvores. Mesmo com o tornozelo machucado, levantou-se.

— Senhor Pavel, onde está?

— Aqui, garoto... e nada bem. — Jacob olhou para o corpo do mais velho que sangrava. Um pedaço de vidro perfurou o lado direito da sua cintura.

— Que eu faço?

— Arranca essa merda de mim. Espera — pegou um lenço do bolso e mordeu. A dor aguda veio quando o loiro arrancou-lhe o pedaço de quinze centímetros de vidro.

Era questão de tempo até os nazistas encontrarem aquele vagão e prenderem os dois. Jacob insistiu em levar Trutzinski para dentro da floresta antes da vinda dos alemães. Levou as duas mochilas e carregou um dos braços de Pavel em volta do seu pescoço.

Vinte minutos depois, vários nazistas da S.S. chegaram ao trem descarrilado, mas nenhuma alma viva se encontrava. Dos treze homens, cinco haviam fugido. Começou uma caçada humana dentro de uma branca floresta.

— Aqui. — Rastros de sangue na neve.

— Matem qualquer um que esteja sangrando — disse o líder daquela operação.

O grave ferimento de Trutzinski praticamente os expunha de quaisquer riscos. A trilha de sangue continuou mesmo andando por mais de quinhentos metros. Chegou um momento em que o polonês se cansou e pediu para ser deixado para trás.

— O território ocupado pelos russos está a pouco menos de um quilômetro. Vá.

— Não, não vou deixá-lo. Como vou encarar Dorota depois que covardemente deixei o primo de sua mãe para trás?

— Que teimoso.

Os sons de pisadas alertaram a dupla. Havia uma ravina próxima dali. Eles desceram com dificuldade e ficaram debaixo de galhos, folhas e raízes. O soldado da schutzstaffel apareceu por cima deles, porém não desconfiou imediatamente da localização dos fugitivos.

— Achou eles?

— Não. A trilha de sangue termina aqui. Essa ravina está bem no meio do caminho. O que acha de descermos?

— Descer seis metros para nada? Melhor não. Que tal isto?

O soldado entregou uma granada para o colega. A intenção era explodir quem quer que estivesse dentro da ravina.

— O que faremos? — sussurrou.

— Lembra quando eu disse que precisamos salvar a nós mesmos? Fique e salve-se.

— Não, Pavel.

— Quando se encontrar com as minhas primas, fale que foi um prazer conhecê-las.

O homem empurrou Jacob e se expôs para os soldados nazistas. Levantou o braço e pediu para que não atirassem nele, que era o único ali e que sangrou por causa do ferimento do acidente. Um dos nazistas guardou a granada e exigiu que ele subisse e se entregasse, mas Pavel ameaçou tirar a pistola da cintura. Naquele momento, Jacob escutou uma saraivada de tiros contra o colega. O corpo caiu longe, mas o jovem ficou imóvel por muitos minutos.

— Achou algum companheiro?

— Não, senhor. Ele aparentemente estava sozinho.

Tanto os dois soldados quanto o capitão escutaram tiros e correram para a direção oriunda. Aquilo deu tempo do jovem Wilczogórski de sair do esconderijo e ver Pavel pela última vez. O desespero bateu e a vontade de chorar também. Pegou a sua mochila e correu para uma direção oposta.

Chorou enquanto caminhava sem rumo pela floresta. Topou, caiu e viu uma bota na sua frente.

— Não é o momento para chorar, moleque. Vamos logo — disse Andrej. Portando uma pistola, o comunista praticamente puxou Jacob.

— Aonde vamos?

— O território russo está há menos de trezentos metros. Vamos, rápido.

Os outros fugitivos foram capturados e posteriormente executados. Andrej e Jacob foram os únicos a sobreviverem. Havia um rio que cortava o lado alemão do lado russo.

— Vamos ter que nadar. O fluxo do rio está baixo. Dá pra chegar ao acampamento mais próximo.

— Mas a água deve estar abaixo de zero...

— A água vai incomodar temporariamente, mas ela não vai te dar um tiro no meio da testa como aconteceu com o nosso amigo.

Andrej tirou o casaco, ficando apenas com uma camisa social por baixo. O nível da água era da altura do peito de Jacob — sua altura era de 1,75 metro —, portanto ficou no limiar entre a segurança de andar e o azar de ser arrastado pela correnteza. Por sorte chegaram ao outro lado.

— Se tiver armas, jogue fora — disse Andrej ao jogar a pistola no rio.

A sensação térmica do rio deixou o corpo de Jacob ao ponto de congelar. Sua vida estaria por um fio se não fosse por um soldado do Exército Vermelho aparecer diante deles.

Do outro lado, os nazistas viram a movimentação dos russos, mas decidiram não interferir.

 

Um acampamento militar russo foi montado às margens do rio para evitar qualquer tipo de invasão nazista àquela área. O governo de Hitler e o de Stalin assinaram um armistício entre ambos os países, além de dividir a área da Polônia entre ambos. No entanto, a precaução fala mais alto do que a confiança, por isso muitos acampamentos soviéticos na fronteira para garantir a estabilidade desse armistício. O presidente comunista não dava um passo sem se precaver, haja vista muitos comunistas foram mortos e presos na Alemanha.

Soldados vermelhos levaram a dupla para uma tenda e deram cobertores e bebida quente. O capitão entrou e sentou-se defronte deles.

— Quem são vocês e de onde vieram?

— Meu nome é Andrej Gorowitz Wladeck, senhor. Sou polonês e membro do antigo partido comunista da Polônia. Viemos...

— Não precisa entrar em detalhes agora, homem. E você? Não me parece ser eslavo.

Pingos de suor escorreram pelo rosto de Andrej depois que soube que Jacob era alemão e não fazia parte do movimento revolucionário. Se o capitão russo descobrir, talvez seria a última conversa deles ali mesmo.

— Eu me chamo Jacob Wilczogórski, senhor. Também sou polonês e comunista.

O capitão se levantou até uma garrafa de vodca, pondo um pouco do líquido num copo.

— Pois você não se parece nem um pouco com eslavo. Olhando a sua aparência, adivinharia ser da Noruega, talvez da Dinamarca, quem sabe um pouco mais ao sul?

— Não, senhor. Eu sou da Polônia. Também sou comunista.

— Tem certeza?

— Claro que sou. Eu odeio os nazistas, odeio a burguesia, amo papai Stalin, Lenin, Karl Marx...

O oficial não segurou a gargalhada que deu ao ver o entusiasmo do adolescente. Talvez recrutá-los para o exército não fosse uma má ideia. Soldados entraram na tenda para chamar o chefe.

— Fiquem aqui.

Pouco depois, Andrej perguntou como o rapaz sabia falar perfeitamente russo. O jovem alemão explicou que faz parte de uma família judia rica e que sempre teve boa educação. Na sua antiga escola havia estudo de línguas eslavas como o russo e o polaco. Espantado com a perspicácia do guri, Andrej ofereceu a sua ideologia comunista para ser o condutor dele.

— Não preciso me aliar ao movimento comunista. Falei aquilo apenas para me livrar, pois o motivo de eu ficar aqui é fugir dos nazistas. Participar do exército ou de revolucionáticos não é comigo.

Um caminhão com mantimentos surgiu para abastecer o acampamento. Era indispensável que os soldados soviéticos se alimentassem e ficassem bem agasalhados por causa do rigoroso inverno europeu. Passou-se um dia inteiro e a noite. Na manhã de domingo, o capitão pediu que levassem os dois para Minsk sob a proteção por serem comunistas, mas devido a idade tenra de Jacob, seu destino seria um orfanato na Bielorrússia.

***

Dias a fio, a situação dos judeus mudou pouco, e se mudou foi para pior. A situação de Grimsley, porém, ficou melhor ainda. Recebeu honras por parar o trem fugitivo, sendo promovido para mais um posto dentro da Waffen-SS. Agora como Unterscharführer (terceiro-sargento) sua autoridade dentro da própria força aérea aumentou. A condecoração foi dada ainda durante a sua estadia na Polônia pelo próprio governador-geral. 

A satisfação de subir na vida, aproveitando-se da guerra e da morte judaica, deixou Forchhammer ambicioso, almejando ultrapassar o próprio tio a partir dali. Ser uma grande autoridade dentro da Alemanha e talvez um dia ser Führer no futuro. Oportunidades o ariano tinha de sobra, por isso resolveu trabalhar incansavelmente a partir do ano seguinte.

 

Minsk, Bielorrússia

Semanas se passaram. Andrej se juntou ao movimento comunista da cidade e participou de estratégias contra o governo alemão. O destino de Jacob foi diferente, pois a sua idade era prematura demais para entrar no exército. Foi aceito num internato para crianças e adolescentes russos e filhos de militantes socialistas. Alguns judeus que fugiram da Alemanha e da Polônia matricularam os seus filhos, e Jacob fez parte da comunidade judaica do orfanato.

O prédio parecia uma mansão no meio de um bosque na periferia da cidade. Por ora, Jacob Wilczogórski teria que viver naquele ambiente doutrinador até achar um jeito depois da guerra.

— Wolfram e seu livro. — Pegou o livro de contos do seu irmão e ficou lendo durante a noite na cama.

 

Cracóvia, Polônia

28 de abril de 1940

Durante o tricô, Sofia permaneceu pensativa no seu filho. Há quase cinco meses que ele decidiu partir para o leste na busca de uma vida melhor, mas aquilo sempre deixou a matriarca angustiada. Ora, como saber se o seu filho ainda estaria vivo? Para deixar a sua situação ainda pior, foi em janeiro o aniversário de quinze anos tanto dele quanto de Wolfram. Saber que, talvez, nunca veria o filho Jacob a deprimia bastante. E sempre que se sentia assim era consolada por Wolfram.

— Filho, promete para mim que não vai me deixar. Eu te imploro. Se for para alguém morrer primeiro, essa sou eu.

— Não fale uma estupidez tão grande, mamãe. Jamais vou abandonar a senhora.

O momento mãe e filho foi dissolvido quando Angela entrou no apartamento de maneira abrupta. Chorosa e trêmula, mostrou o jornal local com a manchete estampada na primeira página. O medo tornou-se realidade: todos os judeus serão realocados para um bairro distante e exclusivamente semita.


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