A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 14
13: A outra face do tengu gentil.


Notas iniciais do capítulo

Dois capítulos em um só mês! Estão surpresos? ;)
Acontece que como a história completou seu primeiro aniversário no capítulo passado, eu decidi aumentar um pouco o ritmo de postagem (mas não muito kkkk) aproveitando que tenho alguns capítulos extras adiantados aqui kkkk Então a partir de agora teremos um capítulo a cada 20 dias em média ♥

GLOSSÁRIO:

Bakeneko: Gato monstro.

Daimyo: Um senhor feudal do Japão. No termo, "dai" literalmente significa "grande" e "myō" vem de myōden, que significa "terra particular".

Dojo: Local onde se praticam artes marciais japonesas.

Hakama: Peça de roupa equivalente às calças nas roupas tradicionais japonesas.

Hari onna: Mulher farpada.

Inari: É a deidade shinto da fertilidade, do arroz e protetora das raposas,

Kosode: Quimono de mangas curtas utilizado como parte superior de vestimentas tradicionais, muitas vezes em conjunto com hakamas.

Mangá shoujo: É um tipo de mangá comercializado para o público adolescente feminino.

Máscara noh: Tipo de máscaras usadas no teatro noh, um teatro tradicional japonês.

Naginata: Alabarda japonesa com tamanho médio em torno de 2m.

Nekomata: Gato dividido.

Ninja-tô: espada ninja.

Obi: Faixa usada como cinto em roupas tradicionais japonesas.

Torii: Portal tradicional japonês de origem xintoísta que geralmente é feito de madeira e pintado de vermelho, que simboliza a entrada em um lugar sagrado.



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Aquela era uma manhã de nevoeiros, assim como eram a maioria das manhãs naquele lugar, no céu o sol permanecia oculto por trás de todas as espessas nuvens de miasma e somente um claro borrão de luz indicava sua presença ali.

A rua estava vazia e silenciosa quando, surgindo de entre as brumas, veio caminhando um gato malhado marrom, não era gato de raça alguma, mas ainda assim não se podia confundi-lo com um gato qualquer de rua, pois este tinha duas caudas ao invés de apenas uma.

Desde que Gintsune-Sama havia saído para caçar, Tama vinha cuidando de sua casa, visitando-a em uma de cada três noites para exterminar qualquer possível praga que pudesse querer se instalar ali, e também uma vez a cada sete dias passava para dar uma olhada nos “mascotes” de Gintsune-Sama, mas só porque sabia que ele ficaria completamente transtornado se voltasse e descobrisse que um deles havia morrido durante sua ausência.

Porém, assim que Tama saltou para cima do muro ela soube que havia algo errado ali, havia algum tipo de quietude mórbida no ar, e um segundo depois ela farejou o cheiro de sangue também.

Imediatamente alarmada a gata olhou em volta, procurando por quaisquer sinais do que quer que houvesse acontecido ali, e quando avistou o velho galpão, com suas portas parcialmente destruídas foi para lá que correu.

Pelas frestas das portas destruídas do velho galpão Tama avistou em seu interior uma mulher vestindo um quimono branco manchado de lama e sangue, na mão tinha uma espada ensanguentada e os longos cabelos negros espalhavam-se pelo chão, junto à poça de sangue aos seus pés e diante dela um corpo estendia-se no chão.

Isso era ruim, a garota estava morta, a querida mascote de Gintsune-Sama...!

Tal visão fez Tama eriçar os pelos de suas costas, saltando para trás, mas este movimento chamou a atenção da criatura ali dentro que, erguendo a mão livre, tirou os cabelos do rosto e começou a aproximar-se, trazendo a espada junto consigo e arrastando os longos cabelos atrás de si.

Tama afastou-se ainda mais, sibilando irritada, se aquela desgraçada havia mesmo matado a mascote de Gintsune-Sama então ela pelo menos lhe arrancaria a cabeça para presentear a ele quando voltasse!

A porta, meio destruída, do galpão foi empurrada para o lado e a criatura lá dentro saiu erguendo a mão para proteger o rosto da luz.

E só então Tama a reconheceu.

—É você? Está viva?!— perguntou incrédula. — Eu pensei que fosse uma Hari-onna!

Mayu baixou os olhos para o pequeno gato malhado de duas caudas que falava consigo.

—Ah... Tama. É você. — dando um sorriso tremulo ela deixou a espada cair de sua mão, para logo em seguida cair de joelhos também — É você.

Imediatamente Tama saltou para frente, assumindo sua forma humanoide — exceto pela cabeça e as caudas, que permaneciam — para agarrar a garota pelos ombros, antes que ela desmoronasse de uma vez.

—Oi! — sacudiu-a — Oi! Está me ouvindo? O que aconteceu aqui?! Oi!

Os olhos de Mayu estavam vidrados, fixos no chão, e o lábio inferior tremeu quando ela começou a balbuciar:

—Ele... Ele veio aqui para matar-me. A yunomi... A yunomi não parava de correr. E então... E então ele invadiu a casa durante a noite. — ela ergueu o rosto, ainda mantendo os olhos arregalados — Ele ia cortar minha cabeça! — agarrou o próprio pescoço com as duas mãos — E-eu tive que cortá-lo antes!

Cortá-lo...?

Tama se levantou e aproximou-se novamente da porta, agora entreaberta, do galpão e só então pôde discernir o corpo de um youkai qualquer estendido ali dentro em uma poça de seu próprio sangue cor de ferrugem, a parte da frente de seu quimono estava também toda manchada com o sangue cor de ferrugem pouco acima da altura do obi, e ali perto jazia também um velho machado enferrujado.

E ainda enquanto Tama olhava o corpo da criatura ela desfez-se em poeira, deixando para trás somente o machado.

A gata cerrou os olhos.

—Um tsukumogami, nascido de um velho machado. — ela virou-se para olhar a garota por cima dos ombros, ainda sentada em choque atrás de si — Você fez bem não se preocupe, era ele ou você.

—Eu sei que fiz. — ela respondeu, erguendo as mãos e olhando-as como se não as reconhecesse mais — Mas... Mas... Por um segundo eu cogitei... Eu quase…

Ela parou engolindo em seco.

Tama virou-se.

—O que?

Mayu apertou as mãos contra o peito.

—Eu quase cortei meus cabelos.

A gata franziu o cenho, torcendo os bigodes, o cabelo? Era com isso que ela estava preocupada?

—Esqueça isso, seu cabelo cresceria de novo, sua cabeça não. — afirmou ríspida, pegando-a pelo braço e puxando-a para cima, obrigando-a a encará-la nos olhos e então fungou e torceu o nariz, droga — Mas agora você precisa me dizer: O quão bem você é capaz de se defender sozinha? Acha-se realmente capaz de sobreviver nesse mundo sem Gintsune-Sama ou seu precioso tengu por perto?!

Mayu arregalou os olhos.

—Está querendo dizer-me que ainda haverá outros?

—Sim. — Tama respondeu séria — E é bom preparar-se, porque esse foi só o começo.

Certa vez, muito tempo atrás — que agora até quase parecia uma eternidade — Satoshi havia tentado treinar Mayu, e ensiná-la ao menos o básico com o que se defender por si mesma. Já que era isso o que pregava a cultura tengu, segundo a qual ele havia sido criado: Todo ser vivo neste mundo deveria ser capaz de proteger a si mesmo.

—Agora Mayu, escute-me, e o faz com bastante atenção, sim? Com isto não estou dizendo que não irei protegê-la, porque eu irei, e para o resto de nossas vidas estarei ao teu lado para acalentá-la, protegê-la e amá-la... Mas nem por isso significa que não deves tu mesma saber te proteger por si própria. Entendeu?

Ele declarou ao por a espada de treino pela primeira vez em suas mãos.

Naquela época fazia apenas pouco mais de um ano que Mayu chegara àquele mundo, sabia disso porque Gintsune lhe contara que todo o espaço de um ano havia se passado entre o dia em que Satoshi a trouxe para aquele mundo e o dia em que Mayu abandonou o pequeno casebre de Gintsune, onde estivera morando até então — com Gintsune a maior parte do tempo em sua forma feminina ou animal, para não deixá-la desconfortável por estar morando sozinha com um homem que não era seu marido ou familiar — para casar-se com Satoshi e ambos mudarem-se para a casa que ele havia construído.

—Sim... — Mayu respondeu hesitante.

Sabia que na classe dos samurais as mulheres eram treinadas com espadas da mesma forma que os homens, mas ela nunca fora uma mulher samurai, ela era a filha de um daimyo, então obviamente nunca tocara numa espada antes.

—Olhe, você precisa segurar dessa forma... Vê? Aqui, eu te mostrarei...

Satoshi explicou gentilmente pondo as mãos sobre as suas para lhe mostrar a forma correta de segurar a espada.

Naquele primeiro dia de treino Mayu havia amarrado seus longos cabelos no alto da cabeça e então o trançado, de forma que agora lhe chegavam apenas até o final das costas e não lhe atrapalhariam também, e Satoshi havia inclusive lhe emprestado algumas de suas roupas para que ela tivesse maior mobilidade.

—Isso... E separe os pés desse jeito, não... O direito é que deve ficar na frente, vê? Agora os joelhos, dobra-os Mayu, não, não tanto assim, aqui, abaixe os quadris dessa forma e relaxa teus ombros está muito tensa... Não, não te relaxa tanto assim ou tua espada sairá voando de tuas mãos...!

Seu marido continuou a explicar pacientemente e até com certa dose de humor, até que ela acertasse a posição básica... Devia ser realmente engraçado para alguém com ele, um tengu guerreiro que praticamente nascera de espada na mão, ver alguém como ela, já crescida e que nem sequer sabia como pegar numa espada.

Ele não apenas precisou ensiná-la a segurar uma espada e a posição básica, como também a andar com uma espada, e sem dúvida aquilo tudo estava sendo muito engraçado para Satoshi, mas ele não riu dela nem por uma vez sequer, Mayu já estava vermelha o bastante por si mesma.

—Bem, muito bem, agora só levanta a espada um pouco mais... Assim...

Depois que Mayu finalmente conseguiu pôr-se na posição básica e andar segurando a espada relativamente bem, Satoshi começou a mostrar a ela os movimentos iniciais.

E a fez repetir por trezentas vezes seguidas.

Sem pausa para descanso, até que ela já estivesse com os braços doloridos e pesados e tivesse os dedos das mãos e as pernas rígidas, enquanto uma fina gotícula de suar escorria pela lateral de seu pescoço para dentro de seu quimono e outras tantas se acumulavam em sua testa.

—Tudo bem, agora nós...

—Satoshi. — Mayu ofegou — Não podemos parar agora? Só um pouco?

—Parar? — ele a olhou, como se não soubesse o significado de tal palavra — Mas por qual motivo...? Se nós acabamos agora o aquecimento?

Ele próprio não parecia nem próximo de estar cansado, muito pelo contrário, reluzia refrescante como um dia de primavera… no mundo de Mayu.

É, mesmo então ela ainda não se acostumara com a atmosfera sempre tão fechada e pesada daquele novo mundo.

—A-aquecimento? — gaguejou incrédula.

—É evidente... — Satoshi olhou em volta passando a mão no queixo — É evidente que geralmente o treino deve começar com a limpeza do chão do dojo, para livrar-se de todas as impurezas e más energias, mas não o fizemos hoje porque, afinal, isto é um quintal e não um dojo de fato. Mas... Talvez eu devesse construir um dojo também? Que acha querida Mayu? Isso bem que seria possível...

—Satoshi. — Mayu a chamou ainda ofegante, puxando levemente a manga de seu quimono. — Por favor, podemos parar?

Satoshi a olhou.

—Mayu... Você está bem? — ele tocou a lateral de seu rosto — Olhe para você... Está suando... E ofegante... E seu rosto está vermelho... Como pode já estar assim se nós mal...?

Mayu desviou o olhar.

—Por favor. — disse — Sei que estou horrível, não precisa...

Ela parou ao sentir os braços de Satoshi passarem em torno de seus ombros e então ser puxada para junto a ele quando a abraçou.

—“Horrível”? Como pode dizer tal coisa? Minha querida Mayu não é horrível, ela é doce e muito preciosa e eu a amo por isso.

Vermelha Mayu tentou afastá-lo.

—Pare...! Eu estou toda suada!

Satoshi afastou-se, dando-lhe um beijo no topo da cabeça.

—Tudo bem, se quer parar é o que faremos. — ele concordou.

Mayu levou a mão ao peito e respirou aliviada.

—Muito obri...

—Mas antes, podemos fazer um último exercício? — ele a interrompeu antes que ela pudesse terminar.

—Um último exercício? — Mayu o olhou hesitante — Mas... Que tipo de exercício?

Satoshi sacou a própria espada de treino, e com um olhar muito sério no rosto respondeu:

—Eu irei atacá-la.

Arregalando os olhos Mayu deixou sua espada cair, recuando assustada.

—A-atacar-me?! — gaguejou.

—Não a atacarei de verdade! — ele apresou-se a esclarecer — Será apenas uma investida leve, te juro, eu nunca a machucaria... Apenas quero testá-la para ver como pode defender-se por ti mesma.

Mayu hesitou.

—Não me atacará de forma séria? — quis confirma.

—Juro-te.

—E depois disso pararemos?

—Sim.

Ela mordeu o lábio inferior.

—Muito... Muito bem então.

Satoshi pareceu satisfeito com aquilo, ele beijou-a mais uma vez no topo da cabeça e então, depois de afastarem-se 30 passos um do outro, tomaram suas posições.

E Satoshi atacou.

De jeito nenhum!

De jeito nenhum aquilo era uma simples investida, era um ataque de verdade!

Ele iria matá-la! Mesmo com uma espada de madeira àquela velocidade Satoshi seria capaz de parti-la em duas!

Mayu fechou os olhos... E de repente foi arrancada do chão por uma forte ventania.

—Oi! Seu tengu estúpido! — a voz de Gintsune, naquela época ainda “Gintsune-sama” para Mayu, resoou próximo aos seus ouvidos, e parecia realmente zangado — O que pensa que está fazendo estúpido?! 

Quando Mayu abriu os olhos estava sendo carregada por Gintsune, flutuando a três metros do chão.

—Ah, olá, o que faz aqui Gintsune? — Satoshi os olhou do chão com a espada de treino parecendo esquecida em sua mão.

—Seu estúpido! — Gintsune bradou mais uma vez, pousando suavemente no chão, Mayu também parecia esquecida em seus braços. — Por que estava tentando matar sua mulher?! Se era pra matá-la assim tão de pronto não deveria ter desperdiçado a sua essência vital com ela!

Claro... Naquela época Gintsune não ligava para a vida de Mayu em si, ele apenas protegia e cuidava dela porque seu amigo havia sacrificado parte de sua essência vital com ela, e ele não queria que isto tivesse sido um desperdício deixando-a morrer.

—Matá-la? — Satoshi olhou-o em choque — Do que está falando? Eu nunca faria mal a minha esposa!

—Então o que estava fazendo agora há pouco?!

—Eu só estava a treinando um pouco... — Satoshi respondeu ainda pasmo.

—Seu estúpido! — Gintsune vociferou, ele parecia ter elegido “estúpido” como sua palavra do dia — Não pode treinar uma garota humana da mesma forma que se treina uma criança tengu! Eu já não te disse?! Eles são frágeis! Até mesmo se você os abraçar com um pouco mais de força, eles se partem ao meio como um graveto seco!

A espada de treino caiu da mão de Satoshi.

—Então... Eu podia realmente ter findado com a preciosa vida dela agora há pouco...? — E de repente ele caiu sobre um joelho, cobrindo o rosto com a mão — Eu lamento! Agora a pouco eu realmente quase... Sou o pior ser desta face, quase matei a mulher que amo.

—Ah... Deixa pra lá, agora que entendeu tenho certeza que tomará mais cuidado. — Gintsune suspirou incapaz de continuar zangado por mais tempo com Satoshi — E por que você estava tentando treinar a sua mulher?

Satoshi ergueu o rosto.

—Como assim? É que todo ser vivo deve saber se proteger de alguma forma ao crescer, do contrário não à dignidade em viver...

—Tengu. — Gintsune o chamou sério — Acha mesmo que essa garota não é digna de viver?

Os olhos de Satoshi se arregalaram.

—Eu nunca pensei algo assim!

—Então não precisa por uma espada na mão dela. — Gintsune a colocou no chão.

De pernas bambas com o susto Mayu cambaleou pra frente, mas foi amparada por Satoshi.

—Está tudo bem, porque a partir de agora prometo ser mais gentil e cuidadoso.

—Você não entendeu tengu. — Gintsune cruzou os braços, mais sério do que já esteve qualquer vez antes disso — Você não deve por uma espada nas mãos dessa menina.

Satoshi piscou confuso.

—Por que não?

—Essa garota já é um alvo ambulante por si mesma, se colocar um espada nas mãos dela e ensiná-la a lutar alguns youkais idiotas daqui podem começar a achar que ela é uma exterminadora e vê-la como ameaça e isso só pioraria as coisas. — ele suspirou balançando a cabeça — Francamente, vocês são recém-casados e você quer treiná-la? Tengu não é isso que um casal de recém casados tem que fazer.

Satoshi piscou.

—Hã? E o que recém-casados fazem?

—O que? Ora tengu, não me diga que vou precisar ter aquela conversa com você de novo? — Gintsune deu um sorriso astuto.

E riu divertindo-se ao ver como Mayu e Satoshi ficaram vermelhos.

Ainda assim Satoshi não deixou de treinar Mayu de imediato, por algum tempo ele continuou a insistir, embora se limitasse a ensinar a ela os movimentos, e jamais tenha se atrevido a “confrontá-la” de novo, mas com o tempo, conforme eles ficavam mais confiantes e seguros naquele mundo, os treinos foram se tornando cada vez mais escassos e débeis, até que, sem nem ao menos perceberem, cessaram por completo.

E agora — fora a noite anterior — parecia também fazer toda uma eternidade que Mayu não pegava numa espada.

Parece que Gintsune realmente os havia mimado demais.

Dias depois dois jovens tengus acompanhados por um tengu mais velho vinham descendo a rua, hoje o ar estava seco e poeirento, diferente do ar nebuloso que certa gata encontrara ao descer aquela mesma rua.

—Por que sempre temos que vir andando?! — reclamou o mais jovem dos três, Akihiko, este era seu nome — Nós temos asas!

—E também tem pernas. — retrucou o mais velho dando um cascudo leve na cabeça do menor — Então deixem de reclamar, já voaram o bastante na vila.

—Voar na vila Tengu não tem graça. — reclamou o garoto mais velho, Akira — Não importa para onde se voe sempre se chega ao mesmo lugar!

Desde as suas origens a vila tengu era protegida por um feitiço que a mantinha isolada do resto do mundo, e a única maneira de sair da vila era passando por debaixo dos 13 toriis sagrados, de outra forma, não importava que forma fosse, por terra ou por céu, não importava em que direção você fosse sempre acabava retornando ao mesmo ponto: A vila.

Da mesma forma era impossível encontrar a vila ou entra nela sem passar por debaixo treze toriis, e era necessário passar por debaixo de cada um deles, do primeiro ao décimo terceiro, de nada adiantava passar por cima ou pelo lado, nem tentar começar do meio e, além disso, havia sempre, pelo menos dois guardas tengus vigiando dia e noite o primeiro torii e mais dois do décimo terceiro, tudo para manter intrusos e pela segurança das crianças.

Proteção. Diziam os tengus.

Prisão. Era o que achavam Akira e Akihiko.

—Mas eu ainda odeio passar andando por aquela rua principal! — Akihiko exclamou — Ela é sempre lotada e violenta demais! Olha! Levaram minha sandália!

O garoto ergueu o pé esquerdo.

—Bem, se acha que não é capaz de andar descalço de um pé talvez eu possa carregá-lo? — Satoshi brincou.

—Não precisa. — Akihiko apressou os passos, tentando esconder o rosto ruborizado, fazendo Satoshi rir — Eu não sou mais criança pai.  

—Melhor perder uma sandália do que suas penas, ou pior: sua asa inteira. — Akira comentou sombrio.

Repentinamente sério novamente, Satoshi colocou a mão sobre o ombro do filho mais velho.

—Você machucou a asa de novo?

—Não, eu só estava falando... — o menino respondeu, e ao ver que o pai ainda o olhava preocupado fez questão de garantir: — Eu estou bem, sério.

—Eles já arrancaram as penas do Akira na vila, teria sido muito azar mesmo se tivesse machucado a asa de novo. — Akihiko comentou.

Pondo uma mão na cabeça de cada filho Satoshi os advertiu:

—Nenhuma palavra disso com a mãe de vocês. Entenderam?

—Sim senhor. — os dois responderam com seriedade militar.

Afinal Mayu podia até saber que os meninos odiavam ir para a Vila Tengu, mas nunca deveria saber o que se passava lá.

—Andem logo vocês dois! — Satoshi os chamou, adiantando-se na frente dos garotos — Aposto que Mayu vai querer dar um bom... — ele parou, em choque, diante do portão de casa — Banho... O que...?

—Pai?

—O que aconteceu?

Os meninos estranharam, correndo para junto do pai.

A porta da frente da casa havia sido arrancada.

E não apenas isso, parte do telhado havia cedido também, e enquanto adentravam cada vez mais no terreno o estrago só parecia pior: um grande galho do pessegueiro se partira e agora jazia pendurado com a ponta submersa no laguinho das carpas, uma das portas do velho galpão havia sido despedaçada e alguns de seus pedaços ainda estavam espalhados nas proximidades, a outra não estava em condições tão melhores, na lateral da casa o velho poço, aquele que Mayu sempre dizia para Satoshi cobrir e que ele sempre deixava para depois, jazia com parte desmoronada, Mayu...

—Mayu... — Satoshi balbuciou — Mayu onde você está?!

Seu rosto contorceu-se numa expressão dolorosa e aguda substituindo suas feições, antes belamente humanas, por uma cabeça de pássaro coberta de penas negras e um grande bico lustroso, assustando aos garotos que nunca haviam visto o pai naquele estado.

—Pai...! — chamaram.

Mas de repente ambos foram arrancados do chão, gritando surpresos bem no momento em que uma bola de fogo azul atingiu bem o local onde os dois estavam antes, e Tama surgiu no campo de visão deles.

—Oh... Então eram realmente vocês. — ela comentou calmamente, olhando-os lá de baixo.

—Tama. — Satoshi reconheceu-a com uma voz baixa e perigosa, carregando cada um dos filhos de baixo de um braço...

E um par de imensas asas negras saia de suas costas.

—A-Asas! — exclamou Akira espantado.

—São as asas do papai! — Akihiko também se assustou.

Mas Satoshi sequer parecia escutá-los, toda a sua atenção estava focada em Tama.

—Onde está Mayu? — ele perguntou num tom perigoso — Se você tiver feito algo a ela, Nekomata, eu juro...

—Satoshi! — Mayu o chamou, saindo da casa com uma mão sobre o peito.

—Mayu... — Satoshi sussurrou.

De repente os garotos precisaram abrir suas próprias asas para manterem-se no ar por si próprios quando Satoshi os soltou desaparecendo num piscar de olhos em meio a um furacão de plumas negras e reapareceu junto a Mayu, abraçando-a protetoramente.

—Mayu, você está bem. — suspirou aliviado.

Ele estava de volta a sua aparência de sempre, da cabeça de ave, asas e penas nada restara, exceto pelos rasgos na parte de trás do quimono de Satoshi, por onde suas asas haviam saído antes.

Tama suspirou.

—Você... Eu não te disse para ficar escondida e não sair até que eu dissesse garota?

Ainda com Mayu em seus braços, Satoshi lançou um olhar duro à gata de duas caudas ali perto.

—Tama, é melhor dizer-me agora o que aconteceu aqui nekomata.

Tama cobriu levemente o focinho com a ponta da manga do quimono.

—Mas que olhar mais desagradável esse que está lançando a mim nesse momento, é um olhar tão ingrato para dar a quem passou os últimos dias protegendo essa sua companheira.  — ela desviou o olhar claramente desagradada e infeliz por estar ali e ter que dirigir a palavra a eles, como se fosse muito superior, a própria maneira como ela se referia a Mayu demonstrava o quanto ela menosprezava todos eles — Bem, imagino que todos os tengus são assim: orgulhosos e cabeças-duras.

Satoshi franziu o cenho.

—Protegendo-a...?

—Satoshi. — Mayu o chamou, segurando na parte da frente de seu quimono.

E só então ele notou que Mayu não estava em seus trajes habituais, ao invés disso pegara algumas roupas emprestadas dele, e seu longo cabelo, que ela costumava sempre manter numa trança que lhe batia pelas canelas para não atrapalhá-la nos serviços de casa agora estavam amarrados em um nó no alto da cabeça fazendo com que a trança lhe caísse apenas até o final das costas, mas o mais importante de tudo: ela tinha uma espada presa ao lado esquerdo do quadril.

—Mas o que está acontecendo aqui? — ele afastou-se ligeiramente para poder vê-la melhor.

Mayu juntou as mãos sobre o peito.

—Fui atacada. — confessou.

Os olhos de Satoshi arregalaram-se.

—Ataca? Como? Quando? Quem a atacou?!

—Não foi apenas um ataque. — Tama esclareceu — Foram vários. Mais de 17 nos últimos cinco dias e noites, eles vinham todas as noites, às vezes mais de duas vezes numa mesma noite, uma vez chegaram a atacar até mesmo durante o dia, alguns deles até mesmo eram muito bons em imitar vozes.

—Mamãe! — os garotos pousaram ao lado dela, puxando-lhe o braço e querendo-a vê-la de perto.

—Está ferida? — perguntou Akihiko.

Mayu negou.

—Estou bem... Tama esteve me protegendo.

Tama fungou.

—Não me entendam mal, eu nunca tive qualquer intenção de proteger humana alguma, ainda mais uma que propositalmente enfiou-se num mundo cheio de youkais — fez uma careta — Mas Gintsune-Sama, por outro lado, é claramente apegado a vocês, e ficaria muito abalado se algo acontecesse a um de vocês enquanto ele está fora... Talvez até destruísse e matasse todos. — murmurou consigo mesma — E tudo que menos desejo é ver meu amado Gintsune-Sama infeliz.

—Ainda assim manteve Mayu segura, e por isso tem minha gratidão. — Satoshi respondeu com expressão carregada. — Mas o que aconteceu? Por que de repente estes youkais enlouqueceram dessa forma?

—De repente? — Tama ainda cobria o focinho com a ponta da manga do quimono, mas estava claramente sorrindo de forma desdenhosa por trás da manga — Você é idiota? O que esperava afinal? Deixou uma humana sozinha e desprotegida num covil de youkais? Fico surpresa de não ter sobrado apenas os ossos dela no momento em que você subiu a montanha com essas criat... Crianças.

—Mas... Nunca atacaram antes. — afirmou desconcertado.

—E Gintsune-Sama nunca deixou de estar aqui por vocês. — Tama cruzou os braços.

Mas Satoshi franziu o cenho.

—Isso não faz sentido. — teimou — Aquele cara já sumiu antes, e por muito mais tempo que isso, uma vez chegou a ficar longe por mais de um ano até e nada disso nunca...

—Isso foi antes quando este e o mundo humano eram basicamente o mesmo. — Tama o cortou — Gintsune-Sama, como muitos outros youkais por aqui, gosta de divertisse atormentando humanos ou até se misturando entre eles, então nunca foi de se estranhar que ele sumisse por longos períodos de tempo quando saía para brincar por aí, mas agora que se perdeu o contato com os humanos supostamente não há mais razão para ele sumir assim. — Tama segurou os próprios cotovelos com uma expressão incomodada — Então muitos desses tolos passaram a acreditar que, talvez, Gintsune-Sama tenha se cansado desse lugar e se ido embora para sempre, ou simplesmente foi devorado por alguém mais forte. — ela torceu os bigodes — Não duvido nada que Gintsune-Sama se canse desse lugar um dia, e quando o fizer eu o seguirei para onde quer que ele vá, mas eu sei que ele não se foi ainda, porque ele me disse que só estava saindo para caçar. Então ele foi caçar. E isso é tudo.

E olhou para Satoshi como se o desafiasse a dizer que ela estava errada, que havia sido feita de tola por uma raposa que a enganara, como já haviam dito tantos youkais antes... E nenhum deles sobrevivera depois disso.

Mas é claro que ela não podia fazer o mesmo com aquele tengu.

—Aquele pilantra é um mentiroso dos mais descarados. — Satoshi suspirou, mas ainda assim sentiu-se na obrigação de concordar: — Mas ele não iria embora assim sem nos falar nada antes.

Tama estufou o peito.

—Exatamente!

—E eu não acho que Gintsune-Sama tenha sido devorado ou qualquer coisa assim... — Akihiko comentou pensativo.

—Sim! Sim! — Tama concordou de imediato — Afinal Gintsune-Sama...!

—Teria fugido ao menor sinal de perigo. — completou Akira, recebendo um aceno afirmativo de seu irmão em concordância.

—Vocês... — Tama rosnou.

Sacudindo a cabeça Satoshi entrou em casa empurrando para o lado o que sobrara da porta e puxando Mayu consigo.

—Já chega disso, esteja onde quer que esteja aquele malandro isso não importa agora, o fato é que ele não está aqui agora... E as coisas ficam realmente perigosas dessa forma. — Foi obrigado a admitir trincando os dentes.

Ter que admitir que ele não era capaz de proteger por si só à sua própria família era um golpe duro demais, que deixava um sabor amargo na boca.

Quando foi que ele havia se tornado tão relaxado assim com a segurança de sua própria família? Quando eles se tornaram tão dependentes assim daquele cara?

—Pai! — os garotos chamaram correndo atrás do pai — Pai! O que vai fazer?

Soltando a mão de Mayu, Satoshi entrou em seu quarto — mal repando as tábuas que fechavam o lugar onde antes estivera uma janela — e procurou entre as coisas ligeiramente reviradas do recinto até achar aquilo que procurava: papel e um estojo com um conjunto de pincéis, tinteiro e um bastão de tinta já gasto.

—Preciso de água. — afirmou.

Ao que se surpreendeu quando a pequena Yunomi, surgida aparentemente de canto algum, correu para o seu lado cheia de água em seu interior.

Com um breve aceno ele agradeceu pegando-a e virando seu conteúdo no tinteiro.

—Essa mensagem. — disse enquanto concentrado diluía parte do bastão de tinta — Deve chegar à vila o mais rápido possível.

—O que? Você pretende enviar uma mensagem à sua vila? — Tama estalou a língua de forma descrente, parando junto à porta com os braços cruzados — Acha que eles, por acaso, se disponibilizariam a ajudá-los? Eles receberiam você, eu não duvido e a estas criat... Crianças, também. Provavelmente. Mas a garota? Não está sendo um pouco esperançoso demais?

—Há uma vila dentro da vila tengu, que é exclusiva às mulheres. — ele respondeu enquanto escrevia sua mensagem, com Mayu sentada ao seu lado.

A vila secreta, ou vila proibida, era uma pequena vila dentro do território da vila tengu, proibido às crianças, embora fosse onde todas elas nasciam, pois era onde residiam somente mulheres que estavam dispostas á gerarem uma nova criança para a vila, visto que tengus fêmeas eram absurdamente raras, ali elas recebiam permissão para morar, não importava quais fossem os seus motivos para quererem estar ali, até serem escolhidas por algum tengu e pelo tempo necessário até gerarem a criança, depois disso só poderiam ficar até a criança poder andar por si mesma, e então eram obrigadas a abandonar à vila e voltarem às suas vidas de antes, se a criança fosse uma garota, poderia levá-la, mas se fosse um menino — e, por consequência, um tengu — então ele pertencia à vila.

Mulheres de várias raças já haviam estado ali, mas nunca uma humana, o sangue humano não era bem recebido, pois da união de um youkai e um humano só poderiam resultar duas coisas: um meio youkai, ou outro humano.

E embora Mayu não se encaixasse de forma alguma nos “requisitos” para ingressar na vila secreta, e ainda tivesse o fato de ser humana como um agravante, talvez... Só talvez...

—E você realmente acredita que há alguma chance de eles a aceitarem lá? — Tama escondeu um sorriso de escárnio por trás da manga do quimono — Uma das condições de seu semi exílio não era justamente que essa mulher nunca colocaria os pés ali? Gintsune-Sama tem razão, você é realmente um tengu demasiadamente ingênuo para o seu próprio bem.

—Calada! — Satoshi irritou-se e então se retraindo um pouco disse — Eu... Eu ainda preciso tentar.

Tama o observou.

—Faça como quiser então. — disse por fim.

—Essa mensagem deve chegar o mais rápido possível à vila. — ele repetiu. — Somente um tengu poderia entregá-la. No entanto... Eu não posso deixar Mayu de novo. Não agora.

—Então eu posso levar! — Akihiko se ofereceu.

—Não, eu levo. — Akira também se ofereceu — Eu sou mais forte que Akihko.

—Mas eu sou mais rápido! — Akihiko defendeu-se.

—Não posso mandar nenhum de vocês dois também! — Satoshi bateu com o punho no chão, fazendo-os se calarem, e então suspirou — Pelo menos, não... Não sozinhos.

Tama cerrou os olhos quando o tengu e a humana olharam diretamente para ela.

—Não. — respondeu seca.

—Tama... Por favor. — suplicou Mayu.

—Não.

—Estes garotos... Também são muito queridos para Gintsune. Você sabe disso. — Satoshi apelou para a única coisa que ele sabia que seria capaz de convencê-la.

Tama olhou-os furiosa, claramente detestando estar presa àquela situação.

—O que?! Eu devo cuidar dessas coisas? — reclamou desgostosa — Está bem, cuidarei disto, mas levarei apenas um, o que for menos pirralho, levá-lo-ei e esperarei do lado de fora da vila para trazê-lo de volta também, mas que ele fique bem afastado.

Akira a olhou cerrando os punhos junto ao corpo com um humor negro.

—Você nos odeia. — afirmou — Despreza-nos.

—De fato. — Tama concordou olhando-o de cima — Mas pode confiar em mim, pois protegerei todo e qualquer tesouro que seja valioso a Gintsune-Sama.

***

Sentado sobre a grama com o grande chapéu de palha do tengu na cabeça, Gintsune relaxava sob o sol da manhã com o antebraço apoiado sobre os joelhos dobrados enquanto levava o cachimbo de cabo longo à boca, à sua frente estava o lago artificial onde, em seu centro, havia a estátua de uma raposa.

A Raposa de Higanbana...

Fazia dias que Gintsune não aparecia mais na escola.

—Que nojento. — ele reclamou na última vez que aparecera, ainda na entrada do colégio, próximo aos armários de sapatos — Que ar pesado é este? Por que a escola está tão infestada assim?

E tirando um lenço do bolso da saia ele o sacudiu e o usou para cobrir a boca e o nariz.

Mesmo que hoje em dia o mundo humano e o mundo youkai fossem dois mundos distintos ainda era possível encontrar youkais neste mundo, mas somente umas criaturas de baixo escalão, nojentas e irracionais que, invisíveis aos olhos comuns, nasciam de sentimentos tristes e negativos e viviam para fazer estes sentimentos ruins se intensificarem e alimentarem-se deles.

Eles vagavam sem rumo e, não raramente, acumulavam-se em alguns locais específicos como hospitais, que sempre estavam cheios de tristezas, preocupações e arrependimentos, ou então não se aproximavam de outros, não por os evitarem — embora também houvessem casos desse tipo —, mas simplesmente por não haver nada de atrativo a eles ali como a casa de Yukari, a pousada Shibuya, que era um lugar para onde as pessoas comumente iam para relaxar e descansar.

E essa outra ótima razão para ele ter se instalado ali, afinal se quisesse estar em um lugar empesteado ele teria ficado em seu próprio mundo — não que ele tivesse tido qualquer opção de escolha quando retornara ao mundo humano, mas ainda assim...

O colégio era como muitos outros lugares no mundo humano: havia um ou outro youkai se esgueirando aqui e ali, repugnantes e até irritantes, mas nada que fosse um grande transtorno, porém desde os últimos dias que ele vinha notando aquele número crescendo, os youkais, aquelas criaturinhas baixas e repugnantes estavam se multiplicando como ervas daninha e quando antes havia uma média de um para cada cinquenta humanos, agora esse número crescera até se tornar, pelo menos, um para cada vinte, e embora eles ainda se afastassem instintivamente de Gintsune, ainda assim não deixavam de ser um incômodo.

Parando nas escadas ele olhou ao redor para ter certeza de que estava só, e quando confirmou que não havia ninguém por perto — ninguém humano, pelo menos — ele transformou o lenço que segurava sobre o nariz e a boca numa máscara hospitalar branca.

—Ayakashi-chan, bom dia. — Himari-chan o cumprimentou quando ele chegou à classe — Oh, para que a máscara? Um resfriado?

—Ah, sim. — fingiu uma pequena tosse — Um resfriado.

Gintsune nunca ficara doente antes, e nem tinha a menor ideia de qual era a sensação — youkais não pegavam doenças humanas, e as doenças youkais eram, em geral rápidas, cruéis e mortais, mas, por sorte, muito raras —, mas humanos costumavam tossir quando estavam doentes, não costumavam?

—Você está doente Ayakashi-chan? — a representante perguntou aproximando-se e, por alguma razão, colocando a mão sobre sua testa — Tem certeza que devia ter vindo a aula hoje?

—Ah, eu estou bem, não é nada demais. — Gintsune desconversou.

Ao que a representante afastou sua mão ainda com um olhar desconfiado.

—Tudo bem. — disse — Apenas trate de não desmaiar na aula.

—Pode deixar. — sorriu.

Mas eles estavam mesmo por todo lugar, Gintsune pensou enojado ao ver um deles se arrastar de dentro da gola da blusa da representante por seu pescoço até desaparecer em sua nuca por entre os cabelos.

—Mas essa sua máscara é realmente fofa Ayakashi-chan! — Himari-chan comentou, distraindo Gintsune momentaneamente — Parece-se com um focinho de c...

Os olhos de Gintsune arregalaram-se de terror e o coração falhou uma batida, sentindo suas pernas paralisadas apenas pela antecipação à próxima palavra, quando Yukari interrompeu chegando por trás dele:

—É um focinho de raposa. — ela parou ao seu lado.

—Hã? — Himari-chan olhou novamente para a máscara hospitalar de Gintsune — Ah! Entendi! Então é um focinho de raposa, está certo!

Yukari havia acabado de salvá-lo, Gintsune atirou-se sobre ela e a abraçou.

—Yukari, bom dia!

Havia um vermezinho qualquer pairando sobre a cabeça de Yukari, flutuando como um balão ele parecia-se com uma bola de espinhos em forma de folhas verdes, com um único olho amarelo espiando através dos espinhos e um tipo de bico de pássaro logo abaixo, também tinha uma cauda fina e que se enrolava na ponta coberta de espinhos, mas assim que notou o olhar sinistro de Gintsune cravado em si, a criatura guinchou aterrorizada e fugiu para procurar uma presa mais fácil.

Yukari o empurrou.

—Solte-me!

Por trás da máscara Gintsune sorriu, juntando as mãos nas costas.

—Sente-se melhor agora? — perguntou amavelmente.

Yukari tocou a parte de trás do pescoço pendendo a cabeça de um lado para o outro e franziu o cenho, mas afastou-se sem dizer nada, indo cumprimentar Kaoru-chan e se sentar junto a ela.

Muito bem, dívida paga.

—Ayakashi-chan, você não devia abraçar aos outros quando está resfriada, pode acabar passando seu resfriado. — Himari-chan avisou seguindo-o até seu lugar.

—Obrigada, vou me lembrar disso da próxima vez. — garantiu sentando-se.

—Oi, Ayakashi-chan, pode me passar seu resfriado se quiser! — Kijima Tenji chamou quando Gintsune passou ao lado de sua cadeira.

—Ah, pare com isso Kijima-kun.

Desconversou sentando-se em seu lugar, bem no momento em que a professora de inglês — que ao que parece era o idioma falado pelos estrangeiros lá fora — entrava em sala.

—Todos em seus lugares. — ela disse — Agora se levantem. Certo. Curvem-se. Ótimos. Sentem-se vamos começar as aulas. — e virando-se para o quadro continuou — Certo, vamos começar, falta pouco mais de uma semana para as provas e temos muito que revisar.

Pressionando a máscara sobre o rosto com a mão Gintsune sentiu o ar condensar-se um pouco mais na sala, então era esse o motivo da tensão? Umas simples provas? Aquelas crianças davam importância demais a algo tão banal.

Pouco mais de dez minutos depois, após ter sido — mais uma vez — posto para fora de sala, Gintsune encontrava-se na biblioteca, procurando por “sintomas de resfriado”, nunca havia precisado se fingir de doente antes, era bom se adaptar logo.

Ao que parece os sintomas incluíam coriza, tosse, dores em geral — e parece que doía tudo mesmo: cabeça, garganta, juntas...! — e febre baixa, o que explicava porque a representante havia posto a mão em sua testa naquela hora... Mas isso fez uma ideia ocorrer à Gintsune.

Qual era mesmo o horário da aula do professor Haruna naquele dia...?

—Ayaka-chan, de novo posta de castigo no corredor? — O professor Haruna balançou a cabeça, aproximando-se ao chegar para sua aula.

Ele estava alguns minutos adiantados, mas era melhor assim, porque Gintsune já estava entediado de ficar ali segurando baldes.

Hora do Show...

—Ah... Professor... Olá. — respondeu de volta, com voz falha e levemente ofegante por detrás da máscara, com as costas apoiadas na parede e as mãos segurando fracamente os baldes.

—Ayaka-chan você está se sentindo bem? — o professor parou preocupado a sua frente.

—Eu... Eu estou bem... — respondeu debilmente, tentando colocar-se de pé — Só um pouco tonta...

—Mas seu rosto está todo vermelho... — ele colocou a mão sobre sua testa — Você está ardendo em febre!

Para um youkai de fogo era muito fácil subir a sua temperatura corporal...

—Eu... Estou bem...

E revirando os olhos ele cambaleou para frente, deixando os baldes caírem com estrondo e espalhando água para todo lado, “desfalecendo” nos braços do professor, que o segurou para impedir que caísse.

—Ayaka-chan! Ayaka-chan! — ele chamou preocupado. — Ayaka-chan acorde!

E se essa estava parecendo uma típica cena clichê saída direta de um mangá shoujo, é porque Gintsune lera dúzias de histórias destas nos últimos dias, e estava com a cabeça cheia de coisas desse tipo.

Gintsune sentiu-se ser erguido nos braços do professor e ouviu as janelas e portas da sala de aula se abrirem com duas dúzias de alunos espantados e curiosos com o que estava acontecendo lá fora — e ele nem sequer precisava abrir os olhos para sentir o olhar de censura que Yukari certamente estava lançando a ele por causar toda aquela comoção.

—O que está acontecendo?

—O que Ayakashi-chan tem?

—Que barulho todo é esse?

O burburinho cresceu ao redor deles.

—Por favor, todos voltem para a classe! Ayaka-chan desmaiou, mas eu vou levá-la para a enfermaria agora! — a voz do professor ergueu-se acima das vozes dos alunos.

—O que ela tem?

—Ela desmaiou?

—Por favor! — o professor voltou a falar — Voltem todos para a classe!

E girando nos calcanhares ele correu para a enfermaria com Ayakashi-chan nos braços.

Na verdade Gintsune já havia pensado em encenar algo do tipo, no Dia Esportivo ele pensou em “torcer” o tornozelo na última corrida e ser carregado para a enfermaria por Haruna, mas as medalhas acabaram por se tornar muito mais tentadoras.

Ainda bem que o professor não escorregou e caiu em toda aquela água no chão, isso teria estragado toda a cena... Haruna o levou até a enfermaria, onde a enfermeira o instruiu a deixá-lo numa cama para descansar, dormir um pouco provavelmente ajudaria a melhorar, mas precisou voltar para dar suas aulas.

E de fato Gintsune acabou pegando no sono ali, pois a enfermaria, ao contrário dos hospitais, parecia curiosamente livre de youkai, afinal eles concentravam-se mais nas salas de aula, por isso ele acabou relaxando... Quando acordou, passava do meio da tarde e as aulas já haviam acabado a mais de uma hora.

E Yukari estava sentada irritadamente num banquinho ao lado da cama com os braços cruzados.

—Ah... Boa tarde Yukari. — bocejou deitado de barriga para baixo na cama, erguendo-se sobre os cotovelos.

—O que é que você está armando? — Yukari perguntou de uma vez, com a perna direita sacudindo-se de irritação e impaciência.

Gintsune a olhou inocentemente.

—Eu? Tramando algo? Mas como assim? — piscou.

Yukari levantou-se e afastou num movimento irritado a cortina que cercava a cama, mostrando a enfermaria vazia.

—A enfermeira disse que precisava sair e já voltava, por isso estamos sozinhos agora, então fale de uma vez! — ela voltou a fechar as cortinas e sentar-se. — Por que estava usando aquela máscara e se passando por doente?

Gintsune apoiou o rosto entre as mãos, balançando as pernas no ar.

—Talvez eu estivesse usando a máscara por estar realmente resfriado? — sugeriu.

Yukari cruzou os braços.

—Duvido muito. — desdenhou — Você é um youkai raposa, não um “humano frágil” pra sair por aí pegando um simples resfriado comum...

—Pode ser que sim. — inclinou a cabeça levemente de lado. — Ou talvez raposas sejam muito mais frágeis do que se supõe nas lendas? E por séculos esse tem sido nosso segredo mais bem g...

Gintsune calou-se, erguendo uma mão pedindo por silêncio, um momento depois  ouviram a porta da enfermaria se abrindo, e Yukari achou que a enfermeira estava de volta, até ouvir a voz do professor Haruna:

—Com licença... Alguém aí? — os passos se aproximaram até que a cortina se afastou — Ayaka-chan que bom que já acordou, como está?

Ainda apoiado sobre os cotovelos Gintsune cruzou os braços.

—Me sinto um pouco melhor professor, obrigada. — um segundo depois desviou o olhar — Ah, e... Desculpe-me por causar tantos problemas.

 

Yukari cerrou os olhos, que falso!

—Ah, não se preocupe com isso, mas você realmente me deu um belo susto naquela hora. Oh, olá Shibuya-chan. — cumprimentou quando finalmente notou a presença de Yukari ali.

—Olá professor. — Yukari cumprimentou-o de volta com um aceno de cabeça.

—Então você ficou preocupada com sua amiga e veio vê-la? Que gentil.

—Sim. — Yukari trincou os dentes, em um sorriso assustador de tão tenso — Isso mesmo.

—Isso é porque Yukari e eu somos boas amigas, ela está sempre preocupada com o que eu faço por aí. — Gintsune disse com uma risadinha — Certo Yukari?

Yukari o fuzilou com os olhos.

—Na verdade. — ela disse — As outras garotas, a representante, Kaoru e Aoi-chan, também vieram. Aoi-chan já foi pra casa, mas a representante e Kaoru foram para seus clubes, elas disseram que passariam para te ver se você ainda estivesse aqui quando saíssem.

—Oooow e você quis ficar e esperar até que eu acordasse? — a provocou.

Isso fez com que Yukari mostrasse uma expressão tão furiosa que Gintsune caiu na gargalhada.

Mas desde então ele não retornara mais ao colégio, o aumento da tensão só fazia os youkais se multiplicarem mais ainda e isso tornava o ar desagradável, Gintsune não tinha intenção nenhum de gastar seu tempo em um ambiente tão asqueroso — no mundo youkai era inevitável, mas ali entre os humanos? — então simplesmente deixou de ir e passou a vadiar por aí como costumava fazer antes de começar a brincar na escola também.

Com certeza aquelas crianças relaxariam depois que o período de provas terminasse, e então as coisas voltariam ao normal, e aí, e só aí ele retornaria... Mas por que ele sempre vinha parar naquele lugar?

Desde que Haruna lhe contara sobre o “Ano do Bibougami” que Gintsune não conseguia deixar de voltar sempre ali, e agora que não estava mais indo a escola era ainda mais frequente, não importava o que fizesse ou onde fosse ele sempre voltava para aquele lugar, essa era a segunda vez em quatro dias! E o pior é que nem sequer tinha algo de interessante para ele ali!

—Ei. — ele chamou, soprando a fumaça do cachimbo — Como é estar lacrado? É tedioso? Doloroso?

Do alto de seu pedestal a raposa de pedra apenas o encarou de volta, e obviamente nada respondeu.

Eram meados de outono agora, e as folhas haviam apenas começado a ganhar tons de amarelo e vermelho, mas ainda assim a cidade já florescia, não apenas a pousada Shibuya parecia cada vez mais cheia — com turistas que não paravam de ir e vir — como todo o resto da cidade também, até mesmo ali, na praça da raposa de Higanbana, eles estavam por toda parte, e nossa como gostavam de tirar fotos!

Tiravam fotos de tudo: das flores de outono — O lírio aranha era a principal delas, mas as outras também tinham seu destaque — da folhagem de outono — que mal havia começado ainda — e da estátua da raposa.

Gintsune até mesmo tinha visto um grupo de universitários gravando “um filme de terror amador” um dia desses... E que surpresa eles teriam quando fossem ver as filmagens e se deparassem com “um vulto de quimono branco” no meio das cenas. Que cara será que fariam?

—Quer saber de uma coisa? — ele levou o cachimbo novamente aos lábios — Eu acho que na verdade estou com pena de você. — ele suspirou, soltando a fumaça por entre os lábios — Mas não posso te soltar cara, quer seja ou não verdade aquele negócio de você gostar de se alimentar da carne de mulheres humanas, e a propósito não estou te julgando nem nada, meu velho também comia humanos de vez em quando, a essa altura o seu ódio pelos humanos depois de tanto tempo lacrado deve estar nas alturas, então libertá-lo seria uma completa carnificina. E... Sabe, eu não quero ter sangue humano nas minhas mãos. — ele levantou-se, espreguiçando-se e guardando o cachimbo de cabo longo de volta na manga — De qualquer forma, está quase na hora do almoço, entende? Então eu já vou indo.

Encolheu os ombros já dando meia volta e se afastando, quando estava na escola ele sempre podia conseguir comida com o resto das garotas na hora do almoço, mas ali fora era preciso se virar. De qualquer forma não era muito difícil arranjar comida ou o alguém que o alimentasse por aí.

...

Yukari suspirou passando a mão na parte de trás do pescoço, há dias a raposa havia finalmente se entediado da escola e deixado de ir e isso devia tê-la deixado mais calma, mas com as provas logo aí ela simplesmente não conseguia relaxar.

Nem sequer sabia se seria capaz de ficar na média dessa vez... Suspirando novamente Yukari empurrou para o lado a porta de correr de seu quarto.

E quase morreu do coração com a música alta que vinha de lá.

Assustada fechou novamente a porta com um baque e a música cessou de imediato.

Ainda com o coração acelerado e os olhos arregalados Yukari olhou para os lados, aquele barulho todo tinha mesmo vindo de seu quarto? Impossível! E como ela não estava ouvindo nada agora?

Hesitante a garota de tranças aproximou o ouvido da porta, mas, apesar de fina, não ouviu nada através dela.

Novamente Yukari tentou abrir a porta... E quase ficou surda com a música vinda dali.

—Mas o que é isso?! — gritou tentando elevar sua voz acima do barulho jogando-se de uma só vez para dentro do quarto e fechando a porta com um baque — Por que todo esse barulho?!

Voltou a gritar, agora tampando os ouvidos e se dirigindo até seu notebook onde havia duas caixinhas de som — que Yukari definitivamente não tinha — acopladas e que eram as responsáveis pela musica excessivamente alta, que a garota encerrou com um clique irritado.

—Yo, Yukari. — a raposa, que estava descaradamente jogada em sua cama lendo revistinhas em quadrinhos e comendo batatas frias a cumprimentou de maneira desleixada. — Eu só estava testando essas caixinhas que achei por aí!

—Achou coisa alguma! — Yukari bufou pondo as mãos nos quadris — Mas esqueça disso! O que foi que acabou de acontecer aqui?!

A raposa virou uma página.

—Hum?

—O barulho! — exclamou movendo-se inquieta, dirigindo-se novamente para a porta do quarto, a qual indicou com um gesto irritado da mão — Como é possível que estivesse todo aquele escarcéu aqui dentro e do lado de fora não se ouvisse nada?! Não me lembro de ter um quarto à prova de som!

—Está falando da minha “armadilha de raposa”? Quer dizer que não a tinha notado até agora?

A raposa falava com o mesmo tom leve e despreocupado de sempre e finalmente começou a erguer os olhos para vê-la, porém, quando o fez sua expressão se tornou sombria.

Mas só podia ser imaginação sua não é?

Afinal até aquele momento a raposa havia se demonstrado muitas coisas, principalmente abusada, trapaceira e vaidosa, mas não agressiva, nunca agressiva, por isso Yukari não tinha o que temer dele... Certo?

Yukari cruzou os braços.

—O que é uma “armadilha de raposa”? Quando foi que você...?

Ela gritou agudamente quando de repente a raposa saltou agressivamente sobre si, passando de sua forma humana para animal em menos de um piscar de olhos, e querendo proteger-se cobriu o rosto com os braços recuando até que tropeçou e caiu batendo com as costas no guarda-roupa.

Tremula Yukari baixou os braços... Estava viva? Inteira?

Ela olhou os próprios braços a procura de marcas, arranhões ou pedaços que pudessem estar faltando, mas tudo parecia... Bem.

—Yukari você devia parar de trazer essas coisas para casa.

Ouviu a voz da raposa antes que sua imagem reaparecesse, pousando há poucos passos dela tal como se fosse uma miragem.

—Elas são asquerosas. — havia qualquer coisa negra e espessa escorrendo pelo canto de seus lábios, que ele limpou com a ponta do polegar.

—Mas que coisas? Do que você está falando? — Yukari perguntou ainda sem ter se recuperado do susto com as costas grudadas às portas do guarda-roupa, os olhos arregalados e o peito subindo e descendo arfante.

E a raposa, que até então nada notara, só então a viu ali e aproximou-se estendendo a mão:

—Opa, não me diga que te assustei? — ele sorriu.

Mas ela afastou sua mão para o lado com uma tapa irritada e levantou-se por si mesma.

—Idiota. — resmungou alisando a saia — Me diga logo o que é essa “armadilha de raposa”.

—Ah, isso? É apenas um nome que eu dei a um dos meus feitiços. — ele estalou os dedos — Eu basicamente selei qualquer tipo de som de seu quarto para que não possa sair, não importa quanto barulho se faça aqui ou o quão alto seja, enquanto aquela porta estiver fechada nenhum som passará, pode até abrir a janela e mesmo assim o som continuará preso aqui dentro, mas pode-se ouvir normalmente tudo que vem de fora para cá... Claro, desde que o barulho aqui não abafe o de fora. — deu uma risadinha cobrindo a boca com a ponta da manga — Ah, e também por parte dos humanos somente aqueles que eu permito podem entrar aqui, ou seja, apenas você, para todo o resto de sua família simplesmente não há razão para virem aqui, e mesmo que eles encontrem alguma, acabam mudando de ideia e dando meia volta.

O queixo de Yukari caiu.

—E desde quando é que jogou esse feitiço aqui?!

—Hum... — ele sentou-se no ar, cruzando as pernas e apoiando o cotovelo sobre um joelho e a lateral do rosto numa mão — Acho que desde a noite em que me revelei a você pela primeira vez, daquela vez que você roubou meu fio de cabelo.

—Desde esse dia?! — perguntou incrédula — E não roubei coisa alguma!

—Foi meio que uma medida preventiva. — ele pareceu nem tê-la escutado — Eu não sabia como você reagiria a mim então quis me precaver, e agora posso dizer que foi uma decisão bem tomada, tendo em vista o quanto você gritou.

Constrangida Yukari desviou o olhar e para disfarçar pigarreou.

—Em primeiro lugar não fique lançando feitiços estranhos no meu quarto. — ela empurrou-o para o lado, fazendo-o pairar no ar como um balão de gás, e dirigiu-se até sua cama para recolher dali o pacote de batatinhas — E em segundo lugar não coma na minha cama, não quero ter que lidar com formigas no meu quarto, e especialmente na minha cama! — pegando também a revista em quadrinhas ela virou-se para ir desligar seu notebook — E pare de trazer seus furtos para cá, isso aqui não é seu covil, sabia?

E só quando a raposa manteve-se calada foi que Yukari virou-se e percebeu que ele já havia ido embora e bufou girando os olhos.

A noite caiu rapidamente em Higanbana, e encontrou uma raposa prateada sentada diante do portão do colégio.

Gintsune gostava de observar a cidade durante a noite com seu cachimbo — e por vezes uma boa garrafa de saquê — do alto da pousada Shibuya, e às vezes também saia para pequenas “travessuras noturnas”, que podiam se estender até a madrugada ocasionalmente, mas de fato aquela era a primeira vez, desde seu retorno ao mundo humano, que saia definitivamente com a possibilidade de passar a noite toda fora.

Francamente ele preferia passar a noite brincando por aí, mas o problema era Yukari, enquanto Gintsune estava na escola era fácil manter aqueles youkais repugnantes de baixo escalão longe dela, porém, desde que deixara de aparecer alguns dias atrás aquela já havia sido a terceira vez que ela levava uma daquelas coisas para casa, então parece que não havia outro jeito, ele suspirou.

Mas em fim, fazer o que, não é? No fim as coisas são como são, até porque no inicio de tudo ele não havia saído justamente para caçar quando de repente foi trazido até ali?

A princípio ele pensara em usar sua magnífica verdadeira forma para aquela tarefa e acabar com tudo aquilo de uma vez, mas aqueles seres, por mais incômodos e irritantes que fossem, eram insignificantes demais para serem dignos de serem devorados por tal esplendorosa forma.

Na verdade ele tinha certeza que aquela sua pequena forma básica de uma única cauda já seria o suficiente para o serviço, mas eles eram muitos — era uma infestação de pragas afinal — então usar duas caudas seria mais rápido.

Três caudas pareciam um exagero, além de um desperdício também, mas caso ficasse muito impaciente ele podia muito bem acabar por usá-las.

Colocando-se de pé a raposa rosnou mostrando os dentes e eriçando os pelos das costas dividindo sua cauda em duas, saltando então através do portão.

Que começasse a caçada.

...

Yukari chegou à escola cedo como de costume, e saber que não encontraria a raposa ali já servia para deixá-la um pouco mais relaxada, pois ela não tinha tempo para lidar com as bobagens dele, especialmente agora com as provas se aproximando, a representante havia inclusive mandando uma mensagem a ela na noite anterior avisando que ajudaria Kaoru e Aoi-chan a estudar e perguntando se ela não queria se juntar a elas.

As atividades dos clubes estariam suspensas durante toda a semana anterior as provas — e na semana das provas também — e elas usariam esse tempo para estudar.

Porém Yukari estranhou quando, ao chegar ao corredor de sua turma, notou um pequeno aglomerado em frente à primeira sala, e não apenas naquela, havia alunos se juntando na porta de metade das salas do corredor, inclusive da sua.

—O que está acontecendo? — perguntou se aproximando para a representante que estava entre a meia dúzia de alunos na porta da sala.

—Ah, bom dia Shibuya. — a representante virou-se momentaneamente para ela e indicou o interior da sala fazendo um gesto com o polegar por cima do ombro — Parece que alguns engraçadinhos desocupados e muito criativos invadiram a escola ontem à noite.

Curiosa Yukari esticou os pescoço tentando ver o que se passava na sala, primeiro ela não sabia o que estava vendo, havia três mesas da sala dos professores dispostas em fila indiana no centro da sala, cada uma delas com uma mesa escolar sobre si e sendo equilibradas por duas “colunas” compostas por três mesas escolares cada.

—Aquela mesa veio da sala dos professores? — perguntou.

—Veio. — a representante respondeu cruzando os braços. — Imagine só, ter todo o trabalho de trazer uma coisa dessas para cá por uma simples pegadinha? E ainda mais treze delas!

—Treze?! — assustou-se.

—Há mais nas outras turmas. — e indicou as outras turmas nas quais os alunos também se acumulavam em suas entradas sem realmente entrar.

Ainda surpresa Yukari reparou na presença de um garoto dentro da sala, que se agachava diante das “construções” com uma câmera fotográfica em mãos.

—Quem é aquele?

—É do clube de jornalismo da escola. — a representante encolheu os ombros.

—Temos um clube de jornalismo? — surpreendeu-se.

A representante encobriu os lábios ao dar uma pequena risadinha.

 —Você me surpreende Shibuya, é claro que temos um clube de jornalismo! — respondeu. — Eles publicam um exemplar semanal, você nunca leu? — Yukari balançou lentamente a cabeça, a representante voltou a rir — Tudo bem, quase ninguém lê, mas temos até mesmo um arquivo na biblioteca com um exemplar de cada número já publicado pelo clube desde a sua criação.

Yukari voltou a observar a bagunça dentro da sala, e conforme ia ficando mais tarde, mais e mais alunos se acumulavam na porta da sala ali com elas, e os cochichos também estavam aumentando:

—Quem será que fez isso?

—Deveríamos arrumar logo antes do sinal...

—Há mais de dez deles!

—Tudo numa noite só?

—Não pode ter sido feito por uma pessoa só.

—Um grupo de vândalos?

—Mas que vândalos mais desocupados...

—Não se parecem um pouco com toriis?

A atenção de Yukari aguçou-se um pouco mais ao que diziam ao seu redor.

—Toriis?

—Sim, como os dos templos.

—É verdade!

—E enfileirados assim até lembram Inari um pouco...

De repente foi como se um “click” estalasse dentro da cabeça de Yukari, e ela desvencilhou-se do grupo de alunos e afastou-se correndo de lá, teve a impressão que a representante a chamou perguntando aonde ela ia, provavelmente chamou, mas nem por isso parou, apenas correu mais rápido, por um segundo teve medo de que algum professor a parasse, mas nenhum surgiu em seu caminho.

Uma lufada de ar a atingiu no rosto quando Yukari, ofegante, finalmente alcançou o terraço.

Se ele ainda estivesse no colégio seria ali onde estaria!

—Ah... Bom dia Yukari. — ele a cumprimentou com um longo bocejo.

E ali estava a imensa raposa branca, estendida de costas para ela preguiçosamente sob o sol da manhã em um canto do terraço.

Yukari arregalou os olhos correndo ate lá.

—Mas o que você está fazendo aí desse jeito?! E se alguém subir aqui e o ver?!

—Ninguém vai subir aqui... — ele respondeu languidamente. — Eu coloquei uma “armadilha de raposa” no terraço...

—Então não deve ser muito boa. — Yukari cruzou os braços — Porque eu subi até aqui.

—Mas você não é problema. — ele a olhou de canto por cima do ombro e então soltou um grande bocejo, abrindo a bocarra a um ponto que Yukari jurou que ele seria capaz de arrancar sua cabeça com uma única mordida — Ouça Yukari, se subiu até aqui só para brigar comigo é melhor voltar outra hora, sim? Agora estou cheio e queria tirar um cochilo, aquelas coisinhas nojentas podem ser fracas, mas eram numerosas e muito irritantes... Na verdade você devia agradecer-me, pois graças a mim a escola agora está razoavelmente dedetizada, claro que não se podia fazer nada quanto àqueles que gostam de grudar-se a humanos e os acompanharem até em casa.

Yukari não tinha a menor ideia do que ele estava falando.

—Agradecê-lo? Agradecê-lo?! Você fez uma bagunça enorme lá em baixo, sabia disso? O que você estava pensando afinal? Está sempre bagunçando por aí!

—Só trabalho sem diversão é chato! — ele reclamou como uma criança birrenta.

—Eu não entendo! Pra que você fez essas coisas? — Yukari se impacientou, batendo o pé no chão.

—É mesmo, pra que, não é? — ele virou-se para ela dando um sorrisinho, mesmo sendo muito estranho vê-lo sorrindo naquela forma animal — Acho que eu só estava sentindo falta de passar por debaixo dos treze toriis... Mas parece que correr por baixo destes de mesas que fiz aqui não te levam a lugar algum.

Ele suspirou, cruzando as patas dianteiras e deitando a cabeça sobre elas com os olhos fechando-se como se fosse dormir.

—O que você diz não faz o menor sentido.

—E você vai se atrasar para aula. — ele respondeu sem abrir os olhos, ouvindo o suave som da campainha lá embaixo.

—O que? Droga! — Yukari virou-se e saiu correndo dali, mas antes de partir lembrou-se do que havia ido fazer — E você! Vá logo embora daqui!

Quando a porta do terraço fechou-se com um baque, Gintsune suspirou, era divertido estressar Yukari, mas às vezes ela era barulhenta demais.

Mas com a escola limpa agora ele podia voltar, Haruna com certeza estava sentindo falta de sua aluna favorita... A raposa bocejou, mas talvez, talvez ele voltasse amanhã.

Sim, amanhã seria um bom dia, mas agora... Ele só queria dormir.

***

Mayu se lembrava de muito tempo atrás manter seus olhos constantemente fixos no céu.

Isso foi logo no inicio de sua vida ali naquele mundo, claro, sempre que Satoshi retornava a sua vila ela não podia evitar manter sempre seus olhos fixos no céu esperando pelo seu retorno, embora isso não fizesse qualquer sentido, afinal Satoshi sempre retornava por terra e não por céu.

É claro que com o passar do tempo ela fora se habituando àquela vida e perdendo esse hábito, e assim quando menos esperava Satoshi retornava para ela.

Mas agora, com seu filho lá fora e as coisas do jeito que estavam Mayu sentia-se compelida de volta aos velhos hábitos, e seus olhos mais uma vez vagavam com ansiedade pelo céu agora a espera de uma criança que nunca retornava.

Ainda que soubesse que Tama estava com ele, Mayu não podia evitar a angustia que crescia em seu peito, mesmo que a vila tengu ficasse a apenas alguns minutos de voo dali, já fazia mais de dez dias — ela perdera a conta dos dias exatos — que Akira se fora com sua mensagem.

Afinal de quanto tempo precisavam aqueles tengus das montanhas para responder uma simples mensagem?

Satoshi havia escrito para eles em busca de ajuda, bastava que respondessem “sim” ou “não” de uma vez e lhe devolvessem logo o seu filho, era simples! Mas não, ao invés disso ficavam prorrogando em sua resposta, mantendo seu filho longe dos braços da mãe.

Ah claro, e não podemos deixar de falar de Satoshi também, este, por sinal, era outro que havia retornado aos velhos costumes: a espada que por tanto tempo ficara guardada no galpão, e que Mayu usara para se defender passara de suas mãos para as de Satoshi e agora ele a empunhava em defesa de sua família.

Ele também havia retomado suas rondas, mantendo sempre uma constante vigília sobre seu lar, mas ficava principalmente empoleirado sobre o quarto do casal, onde Mayu passava a maior parte do tempo, antes, quando Tama tomara para si a tarefa de protegê-la, ela também a mantivera no quarto pois, segundo ela, para questões defensivas um espaço fechado era melhor que um aberto, e Satoshi aparentemente compartilhava de tal pensamento.

Mas enquanto Tama deixara a espada em suas mãos, Satoshi a substituíra por uma significativamente mais leve, Mayu não se lembrava de já tê-lo visto usar uma espada como aquela, seu cabo era mais longo do que os das espadas normais e, ao desembainhá-la, surpreendeu-se ao ver que sua lâmina era mais curta que a bainha.

—É uma ninja-tô. Sinto muito, essa não é uma arma muito honrada. — Satoshi desculpou-se — Porém, por ser menor e mais leve, ela também é mais adequada a um ambiente fechado... Mas eu devia... Eu devia ter continuado a treiná-la. — lamentou-se — Fui negligente e ingênuo.

Mayu abraçou-o, deitando a cabeça em seu peito.

—Você não foi nada disso. — negou — E eu sei que ficaremos bem, eu sei que você nos protegerá.

Isso fora o que ela dissera, mas ainda estava preocupada com seu filho mais velho que parecia que nunca retornaria.

E além do mais ela também ainda não havia contado aquilo para ele... Uma das mãos de Mayu pousou apreensivamente sobre seu ventre, enquanto a outra se agarrava firmemente ao cabo da ninja-tô — desde que Satoshi lhe dera aquilo, ela parecia incapaz de soltá-la.

—Mamãe. — Akihiko a chamou parado junto à porta já pronto para sacar a espada arrancando-a de seus pensamentos — Vem algo aí.

Alertou-a mantendo os olhos fixos do telhado, de onde se podia ouvir o som dos passos de Satoshi se movendo, talvez — possivelmente — se colocando em posição de guarda também, da mesma forma que Satoshi se autodelegara a tarefa de sentinela, ele delegara ao filho mais novo a tarefa de ser o guardião de Mayu, e não sair do lado dela em nenhum momento sequer.

Mesmo estando Satoshi ali, os ataques não cessaram muito, e quanto mais o tempo se passava mais frequente eles se tornavam, embora fossem ainda mais frequentes a noite — chegando a dois ou três ataques seguidos em algumas noites! — havia vezes em que também eram atacados a luz do dia também.

Mayu levantou-se aflita, agarrando-se a sua espada com a respiração suspensa... Mas havia algo faltando, e levou apenas um momento para que ela se desse conta do que era: a Yunomi não estava correndo debaixo da casa.

 

E se ela não identificava quem estava se aproximando como uma ameaça, então isso só podia significar...!

—Mamãe! O que está fazendo?! — Akihiko interceptou-a, agarrando seu pulso impedindo-a de sair quando ela largou a própria espada e correu em direção à porta. — Temos que ficar aqui até...!

—É Akira! — Mayu exclamou afoita — É Akira quem está vindo!

E sem perder mais tempo ela levou a outra mão à porta de correr e empurrou-a para o lado no exato momento em que Akira pousava.

—Akira! — chamou aliviada, correndo para abraçar o primogênito assim que o mais novo a soltou.

—Mãe...! Mãe, para com isso! — ele protestou tentando afastar a mãe, que insistiu em abraçar-lhe e beijar-lhe todo o rosto — Mãe eu estou bem...! Ah! Akihiko você também não!

Reclamou quando o irmão também se atirou e agarrou-se a ele e não quis mais soltá-lo.

—É tudo muito comovente, de fato, mas vocês têm certeza que deviam estar todos expostos de uma só vez aqui fora? — Tama ironizou cruzando os braços de pé um pouco mais atrás de Akira. — Alguma notícia de Gintsune-Sama?

—Nenhuma.

Quem respondeu foi Satoshi, saltando de cima do telhado da casa.

Tama estalou a língua virando o rosto de lado.

—Que seja então. — resmungou.

—Akira. — Satoshi chamou estendendo a mão para o filho.

Akira acenou seriamente e de dentro do kosode puxou uma carta.

—Após longa ponderação essa é a resposta da vila. — anunciou.

Satoshi leu a carta em silêncio, mas sua expressão, cada vez mais carregada, já deixava claro que as notícias não eram boas.

—Satoshi? — Mayu o chamou hesitante — O que eles disseram?

—Disseram que não. — ele amassou a carta.

Bem, é óbvio que eles diriam não. Tama girou os olhos, mas se absteve de fazer comentários.

Mayu também sempre soubera disso, afinal estavam falando dos tengus ali, criaturas duras e inflexíveis, mas embora já soubesse, agora ali com o fato concreto, ela sentia-se completamente perdida.

Apoiando as mãos nos ombros do filho mais velho, Mayu mordeu o lábio inferior.

—E o que faremos agora?

Pegando-lhe a mão, Satoshi a puxou para levá-la consigo.

—Partiremos.

Ele os levou ao velho galpão — ou ao que restara dele depois de tantos sucedidos ataques — onde se pôs imediatamente a procurar dentro de um baú por uma máscara que fosse adequada para Mayu usar.

Passados alguns minutos entregou-lhe a primeira máscara.

—Experimente essa. — disse.

Mayu virou a máscara para analisar o que segurava, e um rosto enfurecido de tez vermelha a encarou de volta, com uma grande boca torcida no que parecia um rosnado, com caninos protuberantes e um par de chifres saindo de sua testa. Uma máscara de Hannya.

—Por que preciso usar isso? — perguntou sem compreender.

—Você é humana, Mayu. — ele salientou — Dentro dos limites dessa cidade sempre esteve protegida porque os youkais se continham por medo daquele idiota irresponsável, mas agora que ele saiu, sabe-se lá para onde...

—Caçar. — Tama afirmou por detrás de Mayu — Gintsune-Sama me disse que iria caçar.

Claro, e Gintsune nunca mentia. Certo?

—... As coisas começaram a ficar meio perigosas por aqui. — Satoshi continuou, como se a gata não houvesse dito nada.

Meio? — Mayu questionou.

Ao que Satoshi limitou-se a encolher os ombros antes de continuar:

—Mas lá fora será muito pior. — garantiu. — Por isso quero disfarçar o quanto for possível o fato de você ser humana.

Os dedos de Mayu apertaram-se um pouco mais na máscara e sua expressão obscureceu-se.

—E quer que eu me passe por uma hannya? — perguntou com um tom perigoso — O que está insinuando Satoshi?

Satoshi estremeceu.

—Eu não quis dizer... Digo, não é como se alguém fosse realmente achar que você é uma hannya, querida Mayu, mas... — ele atrapalhou-se — É normal para muitos youkais usarem máscaras no seu dia a dia, então ninguém estranharia... — ele retraiu-se diante o olhar da mulher — Tudo bem. — cedeu com um suspiro — Eu vou procurar outra coisa.

Resignado ele virou-se novamente para o baú, para procurar por algo que fosse mais do agrado da esposa.

Um pouco mais para o canto Akihiko cutucou o irmão mais velho com uma cotovelada.

—Agora a pouco a mamãe ficou realmente irritada. — sussurrou.

Akira concordou.

—Por um segundo até achei que ela ia transforma-se mesmo numa hannya. — sussurrou de volta.

Como se pressentisse o teor da conversa dos filhos, Mayu virou-se lhes lançando um olhar irritado e grave fazendo-os rapidamente calarem-se e recuarem um passo — só para garantir.

—Pai. — o mais velho chamou — Podemos usar máscaras também?

Satoshi refletiu por um momento.

—Vocês são parte humanos… isso realmente não seria mal. — concordou e passado alguns instantes jogou algo aos garotos — Experimentem essas.

Saltando Akihiko agarrou o par de máscaras no ar, e então entregou uma ao irmão mais velho, embora só cobrissem a metade inferior do rosto as máscaras eram pesadas e possuíam o formato de grandes e cruéis bicos de pássaros, provavelmente muito semelhante ao que eles possuiriam se fossem tengus de sangue puro. Sorrindo os garotos emitiram sons de aprovação imediatamente as experimentando.

—Experimente essa. — Satoshi voltou a dizer, entregando uma nova máscara a Mayu, ao mesmo tempo em que recebia a anterior de volta.

A nova máscara era branca, e ostentava o rosto sorridente e rechonchudo de uma mulher.

Mayu concordou.

—Essa está melhor. — afirmou, experimentando a máscara em seu rosto — Que tal estou?

Assim como acontece com muitas máscaras noh, essa era menor que seu rosto, deixando-lhe o queixo a mostra.

Satoshi assentiu.

—Prefiro-a sem máscara, mas esta deve servir. — ele levantou-se limpando as hakamas na altura dos joelhos com leves batidinhas — Agora a arma.

Mayu retirou a máscara do rosto.

—Arma? — repetiu hesitante.

Satoshi saltou para o segundo andar do galpão.

Ele andou ali por algum tempo, remexendo em armas, pedaços de armadura e quinquilharias diversas, vez por outra reclamando sobre algo que havia sido quebrado quando este ou aquele youkai haviam caído em cima do galpão.

Até que finalmente encontrou o que parecia estar procurando.

—A-há! — exclamou.

Ele saltou lá de cima trazendo consigo um bastão longo e esguio de aparência pesada, cuja ponta estava embrulhada em uma porção de tecidos marrons grosseiros amarrados com barbantes.

—Isso. — anunciou puxando o barbante fazendo a ponta de o bastão revelar-se: uma lâmina longa e curva de apenas um gume. Uma naginata. — É do que você precisa.

E estendeu a arma com ambas as mãos para a esposa da mesma forma que um homem estenderia um presente a uma mulher que estivesse cortejando.

Agora com a máscara já quase esquecida pendendo na outra mão, Mayu estendeu, hesitante, a mão livre para pegar a arma — embora ela parecesse pesada demais para se carregar apenas com uma mão, ou com as duas até.

Tama estalou a língua.

—Tem certeza que é realmente adequado levar sua humana para uma viagem longa nas condições em que ela se encontra? — mas então, parecendo reconsiderar, afirmou: — Na verdade a condição dela só agrava tudo, será realmente pior se vocês forem um alvo fixo.

Satoshi franziu o cenho.

—Mas que condição? — questionou.

—Você ainda não percebeu? — Tama perguntou surpresa — Acaso não conhece o aroma de sua própria esposa?!

Em um piscar de olhos ele agarrou a mão que antes Mayu estendia para a naginata e levou-a até o rosto, farejando-lhe o pulso, subindo até seu antebraço e então passando para seu pescoço e cabelos.

—Satoshi, pare... — Mayu pediu fracamente, envergonhada por ele estar fazendo aquilo na frente dos filhos e Tama.

De repente Satoshi afastou-se em choque.

—Você está grávida!

Dessa vez foi Mayu aquela que se retraiu, baixando a cabeça envergonhada, ela ainda não pretendia contar nada a Satoshi para não preocupá-lo ainda mais.

—Eu...

—Se tivesse me dito antes, eu poderia ter incluído isso na carta para a vila, e então talvez eles permitissem...!

—É provável que sim. — Tama o interrompeu — Mas então qual seria o preço? Talvez seu próprio filho que ainda está por nascer. Acha mesmo que a vila deixaria que uma criança nascida em seus domínios fosse tirada deles? — a expressão dela torceu-se em leve desprezo — Mesmo uma criança mestiça como essa.

Com expressão endurecida Satoshi voltou-se para os filhos.

—Garotos, arrumem as coisas. — mandou.

Os meninos hesitaram.

—Voltaremos para a vila? — Akira perguntou.

—Não. — negou Satoshi — Partiríamos para o mais longe possível e o quanto antes.

Eles partiram pouco antes do por do sol.

—Não pensem que vou cuidar da casa de vocês. — Tama os advertiu na partida cruzando os braços — Provavelmente quando voltarem tudo já será um monte de escombros.

Mas inesperadamente Mayu adiantou-se para abraçá-la, deixando-a tensa e surpresa ao mesmo tempo, aquela garota estava a tempo demais entre os youkais.

—Obrigada por tudo Tama. — agradeceu por detrás de sua nova máscara, hesitando um momento mais tarde ela soltou — Eu... Desculpe, todos esses anos e nunca lhe perguntei seu nome, sempre a chamei pelo apelido que Gintsune te deu.

Tama deu de ombros novamente.

—Eu tive um nome quando era apenas uma gata comum. Mas ganhei um novo dos humanos quando me tornei uma Bakeneko, e Gintsune-Sama deu-me este quando me conheceu, portanto este é meu nome agora. — afirmou.

—Sei... Mas obrigada de novo Tama.

Tama virou o rosto.

—Pare de me agradecer! — disse — Tudo que fiz foi apenas pela felicidade de Gintsune-Sama! — ela hesitou — Se... Se por acaso vocês o encontrarem... Digam... Digam que não se preocupe com nada, estou cuidando da casa dele.

Mas sem esperar resposta ela transformou-se num pequeno gato de duas caudas e foi embora correndo pela rua.

—Nós também devíamos partir. — observou Satoshi vendo a primeira esfera fluorescente aparecer.

Eles partiram para oeste, a direção oposta á montanha — e a vila dos tengus — seguiram por vielas pouco movimentadas, atentos ao que pudesse estar à espreita até conseguirem sair da cidade, sofreram um único ataque, mas Satoshi atravessou-lhe a garganta com a espada antes que ele pudesse fazer qualquer som que alertasse os outros.

Já estavam atravessando os campos de arroz do limiar da cidade quando foram abordados pela segunda vez, mas dessa vez não se tratava de um inimigo que Satoshi pudesse derrotar com tanta facilidade: Como se materializando do ar, Hiiro pousou diante deles.

Alguns mitos diziam que tengus eram criaturas capazes de se teletransportar... Mas isso não era completamente verdade. Tengus eram criaturas rápidas e silenciosas, muitas vezes mais rápidas do que os olhos humanos eram capazes de acompanhar, e suas penas negras facilmente camuflavam-se na escuridão e na noite, a soma de tudo isso dava a impressão de que podiam se teletransportar.

Isso tudo também salientava ainda mais as habilidades de Hiiro, pois, graças as suas penas alvas, a noite o destacava ao invés de camuflá-lo, e ainda assim ele conseguira interceptá-los sem que qualquer um deles sentisse sua aproximação.

Recuando, Satoshi colocou-se em pose defensiva diante da família, pronto para sacar a espada.

—A vila...!

—Não sabe que estou aqui. — afirmou interrompendo-o.

E inclinou a cabeça de lado analisando a posição de Satoshi, como se avaliasse se ele realmente seria capaz de atacá-lo, embora ele próprio ainda não tivesse feito qualquer movimento para sacar sua espada.

Satoshi hesitou.

—Não... Sabe?

—A vila irá mandar dois ou três tengus amanhã pela manhã para buscar tu e teus filhos. Eu provavelmente serei um deles, já que também fui aquele que desceu a montanha para exigir as crianças quando elas chegaram à idade de serem treinadas. — afirmou — Eles acreditam que depois de tantos dias de provação finalmente se darias conta de tua estupidez e deixaria essa mulher humana para retornar à vila. E se não sobrevivessem a mais essa noite... — deu de ombros — A sobrevivência é para os mais fortes enquanto os fracos perecem. Como pode escolher ela no lugar da sobrevivência sua e de teus filhos? — lançou-lhes um curto olhar de desprezo e então estalou a língua — É óbvio que você fugiria, traidor.

Satoshi rosnou.

—E veio nos impedir.

Mas, contrariando-o, Hiiro deu um passo para o lado e estendeu o braço adiante, dando-lhes passagem.

—A vila não precisa de um covarde traidor de coração mole e gentil. — afirmou.

Satoshi piscou.

—Então... Deixar-nos-á ir?

Hirro gesticulou impaciente.

—No entanto. — uma pausa. — Os garotos.

Akira e Akihiko recuaram com as mãos segurando firmemente os cabos das espadas, suas máscaras só tornavam suas expressões ainda mais furiosas. Hiiro gostou dessas expressões.

—A vila poderia fazer bom uso deles.

—A vila odeia-nos. — Akira afirmou ressentido.

—E odeia a mim também. — Hiiro deu de ombros — Afinal eu sou um tengu branco. Mas eles reconhecem minha força. — havia qualquer tipo de brilho no olhar de Hiiro — Tive a vida mais dura que qualquer outro tengu naquela vila, nunca me foi mostrado qualquer tipo gentileza ali. — ele lançou um olhar a Satoshi, como se considerasse a vila clemente demais com aquele traidor — Mas eu sobrevivi, eu os superei, vocês podiam fazer o mesmo também.

E naquele instante as atitudes de Hiiro de repente fizeram sentido aos dois garotos, na vila os dois sempre foram tratados com muito mais brutalidade e rigor do que qualquer outra criança na vila, pois era óbvio que os odiavam e queriam destruí-los — mas não o faziam diretamente, por eles ainda serem, em parte, tengus — mas a perspectiva de Hiiro-san era outra: Toda a sua brutalidade e rigor não era porque os odiava, mas porque queria vê-los sobreviver, queria vê-los superá-los e conquistar o respeito ali.

Hiiro-san também era uma párea entre os tengus assim como eles.

—Nós entendemos.

Akira afirmou, soltando finalmente o cabo da espada e, pela primeira vez, vendo Hiiro-san com outros olhos, com respeito.

—Mas partiremos mesmo assim. — Akihiko juntou-se ao irmão.

A boca de Hiiro-san torceu-se levemente, seus olhos vermelhos eram duros como rocha.

Desprezo? Orgulho?

Era difícil decifrar sua expressão.

—Muito bem então. — disse por fim.

E assim, o tengu branco abriu suas asas e partiu.

 

 

 


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Notas finais do capítulo

É provavel que ninguém vá ler as notas finais, mas mesmo assim quis escrevê-las e recheá-las de curiosidade kkkkk

Curiosidades do Japão:

O templo Fushimi Inari: Popular por todo Japão, Inari possui templos em todo seu território, sendo o mais famoso o templo “Fushimi Inari” em Kyoto, cuja estrada que leva ao templo é marcada por mais de mil toriis enfileirados formando um grande túnel de toriis.


Bestiário:

1- Bakeneko e Nekomata: Diz-se que sob algumas condições um gato normal pode transforma-se num gato youkai chamado Bakeneko (gato monstro), quando este youkai atinge os cem anos de idade ele alcança seu nível máximo de poder e sua cauda divide-se em duas, tornando-se então um Nekomata (gato dividido). Antigamente costumava-se acreditar que se cortasse a cauda de um gato ele não poderia se transformar num bakeneko, por não poder evoluir para um nekomata.

2- Hannya: É uma espécie de oni (youkais semelhante a ogros) feminino que surge do espírito torturado de uma mulher que foi consumida por sentimentos de inveja, ciúme, rancor e fúria.

3- Hari onna (mulher farpada) trata-se de um youkai comumente retratado como uma mulher usando um quimono branco e possuindo longos cabelos escuros, mas a ponta de cada fio é afiada como uma navalha, a Hari onna é capaz de controlar livremente seus cabelos e usa-os para atacar suas vítimas.

4- Tsukumogami: Espécie de youkai que se originou de algum objeto que alcançou determinada idade, em geral tido como inofensivos, os tsukomogami possuem uma grande variedade de formas e tamanho, dependendo do objeto que os originou, objetos modernos, porém, não são capazes de gerar youkais, pois a eletricidade os repelia.
Obs: a yunomi na casa de Mayu que corre para avisar sobre o perigo também é uma espécie de Tsukomogami.



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