A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 13
12: Medalhas para raposa.


Notas iniciais do capítulo

Olá e obrigada por voltar!
Hoje "A Lenda da Raposa de Higanbana" está fazendo um ano! :x

(Desculpem o Glossário dessa vez ficou imenso)

GLOSSÁRIO:

Egawa: Corredor externo que rodeia toda a casa.
Horoka: Espécie de pequeno altar shitoísta, dedicado a um kami de elevada proporção ou, muitas vezes, a um deus pequeno e sem nenhum grande santuário.
Itadakimasu: É uma expressão japonesa sem tradução para o português, dita antes das refeições.
Kannazuki: "Mês sem deuses" como é conhecido o mês de outubro no Japão.
Nakai: Garçonete encontrada em restaurantes tradicionais japoneses especializados em comida japonesa, servida em chão de tatame, que se comportam seguindo os modos e tradições japoneses.
Obentô: Semelhante a nossa marmita, porém na versão japonesa. É normalmente uma porção para uma pessoa, servida em uma bandeja com repartições. Com vários tamanhos e formatos, há modelos caseiros simples ou elaborados ou modelos prontos vendidos em lojas de conveniência.
Senpai: É usado para indicar alguém com mais experiência e para indicar hierarquia.
Sepukku: Tradicional ritual suicida japonês, seu nome significa “corte no ventre”, em uma linguagem mais informal usa-se a palavra “Harakiri” para referir-se ao ritual.
Shinobi: Ninja. No Japão a palavra shinobi significa literalmente “aquele que coleta informações”.
Teru Teru Bozu: Um amuleto japonês com a forma de um bonequinho careca de cabeça redonda, feito de pano ou papel, seu nome significa “Monge do bom tempo”, mas é mais conhecido entre as crianças como “Brilha brilha amiguinho”.
Uchikake: Quimono altamente formal usado atualmente somente por noivas ou em performances de palco. Frequentemente muito brocado ele é usado sobre o quimono em si, como uma espécie de casaco longo.
Yunomi: Xícara de chá japonesa.
Yurigami: Algo como “Deus Lírio”.

P.S: Caso haja uma palavra que não compreendam avisem-me.



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A tempestade foi horrível.

Ela começou a cair no meio da tarde do dia seguinte, rugindo e soprando tão forte que parecia que a pousada toda seria levada voando de cima da colina, a chuva chegou a cair tão forte que sequer se podia ver dois metros adiante e tornou-se perigoso demais transitar entre a pousada e a casa, mas o pior de tudo eram os raios, terríveis e barulhentos, iluminando o mundo por meio milésimo e depois o mergulhando em trevas, em dias assim Yukari costumava cogitar se realmente fora uma boa ideia construir uma pousada num lugar assim tão alto, afinal a lenda da Dama da Cerejeira não existia a toa.

―Olhe só toda essa água. ― sua mãe lamentou olhando pelas portas de correr ― Eu só espero que mamãe não faça nada arriscado, ela realmente ama aquele jardim...

As duas haviam acabado ficando presas na casa, quando Yukari correu para ajudar a mãe a fechar as janelas, enquanto o pai e a avó permaneceram na pousada.

―Está tudo bem mamãe, tudo bem. ― Yukari tocou o ombro da mãe.

―Ah eu espero que sim. ― sua mãe ainda olhava preocupada para a chuva ― Não é como se Daisuke fosse tomar conta dela, ele deve estar tão imerso em sua papelada que sequer percebeu a chuva...

―Vamos mamãe. ― Yukari deu duas palmadinhas no ombro da mãe ― A vovó não precisa que tomem conta dela...

Um estronde repentino fez com que as duas se encolhessem, momentaneamente cegas pelo clarão do relâmpago.

―Mãe eu vou ver se está tudo bem lá em cima! ― Yukari avisou já se afastando correndo.

Ela estava checando cada uma das janelas do primeiro andar, mas quando se aproximou da janela do corredor outro trovão explodiu no céu e ela grudou-se no chão com o susto, mas, por meio milésimo no clarão que antecedeu a escuridão, ela pôde enxergar a pousada e teve a nítida impressão de ver sobre seu telhado a silhueta de uma pessoa sentada ali.

A tempestade durou apenas trinta minutos, mas foi como se tivesse durado trezentos anos.

―Uau! Essa foi uma das barulhentas!

A raposa exclamou surgindo atrás dela no egawa do lado de fora da sala no final daquele dia, depois que Yukari voltou para casa quando foi escalada para fazer o jantar.

―Hã? Mas o que você está fazendo?

Perguntou mal disfarçando uma risada.

―Pendurando um Teru Teru Bozu[I], eu preciso de sol amanhã para o dia esportivo.

―O que? Como é? ― ele fez um som estranho por trás dela, como se estivesse pressionando a mão contra a boca para não deixar a risada escapar ― Quantos anos você tem? Cinco?

―Cale-se! ― reagiu ― É apenas uma simpatia, o que me custa?

―Vamos, vamos, não precisa se irritar. ― ele disse tranquilo e seu braço surgiu por sobre o ombro de Yukari para pegar o boneco de papel de sua mão e ele mesmo o pendurar no gancho onde o sino do vento ficava no verão, o qual Yukari não alcançava ― E não se preocupe, não haverá tempestade amanhã.

Mas quando a garota se virou ele não estava mais lá.

Ele sempre aparecia e desaparecia quando bem entendia!

Girando os olhos Yukari sentou-se sobre os calcanhares, tirando uma grande tesoura dourada do bolso da saia e colocando-a ao seu lado no chão, sabia que ele riria dela novamente se a visse, mas ainda assim bateu palmas duas vezes e se pôs a cantar, quase numa ameaça velada:

 

Teru-teru-bozu, terubozu
Ashitatenkinishite o-kure
Itsuka no yume no sora no yoni
Haretarakin no suzuageyo


Teru-teru-bozu, terubozu
Ashitatenkinishite o-kure
Watashi no negai wokiitanara
Amai o-sakewo tanto nomasho


Teru-teru-bozu, terubozu
Ashitatenkinishite o-kure
Soretemokumottenaitetara
Sonata no kubiwochontokiruzo

 

Teru-teru-bozu, terubozu
Faça amanhã um dia ensolarado
Como o céu de um sonho que tive
Se estiver sol eu te darei um sino dourado


Teru-teru-bozu, terubozu
Faça amanhã um dia ensolarado
Se meu sonho se tornar realidade
Nos beberemos muito vinhos doces feitos de arroz


Teru-teru-bozu, terubozu
Faça amanhã um dia ensolarado
Mas se chover você estará chorando
Então eu cortarei a sua cabeça com a tesoura.

 

Do telhado da pousada, de onde estava sentado fumando seu cachimbo enquanto observava a paisagem quase sobrenatural de Higanbana ao por do sol no outono, Gintsune sentiu um pequeno calafrio ao ouvir os versos finais da música flutuando pelo ar até seus ouvidos.

―E depois youkais é que são de dar medo! ― comentou consigo mesmo.

Porém, felizmente nenhuma cabeça precisou ser cortada, pois tal como Gintsune prometeu não houve chuva no dia seguinte.

***

Quando a última pétala de sakura em fim desvaneceu-se como uma miragem em meio àquela escuridão, ela abriu os olhos.

Junto ao peito ainda segurava o cintilante fio prateado entrelaçado em seus dedos.

E, mesmo em silêncio, ainda se perguntava: Por que ele ainda não viera?

Presa naquela escuridão ela sentia-se quase uma criatura atemporal, pois ali a passagem do tempo era indefinida, quase inexistente, e embora ela soubesse que ele continuava a correr lá fora, era impossível precisá-lo com clareza.

Mesmo que suas caudas lhe dissessem que pelo menos um século e meio se passara desde a última vez em que ela contemplara um por do sol, quanto tempo se passara desde que ela o chamara?

Podia ter sido há apenas uma questão de horas, ou até mesmo meses.

Ela nem sequer sabia se a mensagem chegara a alcançá-lo, aquele lacre já a aprisionava ali há mais de um século, mas seria ele tão definitivo assim a ponto de não haver uma brecha sequer nem mesmo para sua mensagem, mesmo que apenas um fragmento dela?

A verdade é que ela estava começando a ficar impaciente enclausurada ali, pois desde que o chamara mal podia conter-se de ansiedade, esperando para vê-lo.

Mas tamanha ansiedade de nada lhe adiantaria.

Suspirando ela separou as mãos lentamente, abrindo os braços e fazendo as longas mangas de seu uchikake cor de poente se arrastarem pelo chão enquanto segurava as pontas do fio de prata, vendo-o aumentar gradativamente de comprimento até que o fio que pendia das pontas de seus dedos já somasse mais de três metros em seu comprimento.

Com um movimento delicado e elegante a dama de cabelos prateados ergueu as mãos acima da cabeça, jogando o cintilante fio prateado para o alto que flutuou e oscilou por alguns momentos no ar, enquanto suas pontas reuniam-se se fundindo uma a outra, para só então começar a cair lentamente, com a leveza de uma pétala de sakura, até que ela se visse novamente no centro de um cintilante circulo de prata.

E assim, só lhe restava esperar o dia que seu chamado finalmente o alcançaria.

E, erguendo os olhos para a escuridão que se assomava sobre sua cabeça ela recitou:

Se a brisa no pico Inaba,

Suspirar por entre os antigos pinheiros,

Que você anseia por mim,

Retornarei imediatamente.

Mais dia, menos dia o destino trataria de reuni-los novamente, e ele a encontraria e a libertaria.

Afinal ele lhe prometera isso.

Estivesse onde estivesse, ele sempre a encontraria.

Ela apenas gostaria de saber o que ele estava fazendo agora.

***

O evento dedicado ao Dia Nacional do Esporte no colégio estava previsto para ter inicio às 8h, mas Kanae Aiha sendo a representante da turma 1-3 adiantou-se em quase uma hora para ter certeza de que tudo correria bem.

Assim, ainda não eram nem sequer 7h30min quando Aiha encaminhou-se ao portão do colégio, já vestindo seu uniforme de ginástica e com a identificação “AIHA – 1-3” devidamente colada nas costas.

―Ah! Nishiwake, bom dia! ― cumprimentou ao avistar a colega de classe atravessando os portões.

―Representante bom dia. ― Nishiwake cumprimentou-a de volta aproximando-se

―Veio torcer por nós mesmo sem estar em nenhuma equipe? Muito bem, espírito de equipe! ― Aiha elogiou.

―Ah sim, e hoje parece que teremos um bom tempo, então fiquei realmente aliviada. ― Nishiwake levou a mão ao peito com um suspiro aliviado.

―Está se referindo à chuva de ontem?

―Sim, foi tão forte que quase pensei que se tratava de um tufão. ― Nishiwake confirmou de olhos arregalados ― E o vento estava tão forte que achei que todos os lírios aranha seriam arrancados do campo, mas pelo visto flores são mais resistentes do que parecem, mas o rio por outro lado encheu muito e mesmo depois que a chuva já tinha acabado a correnteza continuava bem violenta. Foi assustador!

―Ah sim, ouvi falar algo a respeito. ― concordou ― O vento também arrancou um galho duma árvore na rua de trás de casa... Ah, Hongo bom dia.

―Representante, Aoi-chan, bom dia. ― Hongo cumprimentou de volta, juntando as mãos uma sobre a outra na altura das coxas e curvando-se levemente.

―E então Hongo, a chuva de ontem fez algum estrago na sua rua? ― Aiha estalou a língua.

―Na verdade sim. ― Hongo levou uma mão ao queixo ― Uma árvore realmente antiga que havia no começo da minha rua tombou, foi uma pena, parece que ela já estava lá mesmo antes da minha família chegar a Higanbana quando meu bisavô era novo e também que resistiu a dois anos do Bibougami... Os funcionários da prefeitura a estavam tirando quando sai de casa, ao menos não machucou ninguém.

―Isso foi bom então. ― Aiha cruzou os braços ― Mas chega de conversa e andem logo vocês duas, precisam trocar rápido de roupa. ― incitou-as ― Nishiwake você também, mesmo que não vá participar ainda vai ficar a maior parte do tempo aqui do lado de fora, tem que vestir algo confortável.

―Sim! ― as garotas concordaram de imediato.

Hongo pegou a mão de Nishiwake e elas saíram correndo.

Concentrando novamente a sua atenção no portão Aiha suspirou impaciente, onde estava Ayaka Shiori?!

Pois este era o único motivo pelo qual Aiha havia se prontificado a estar de sentinela no portão, a corrida feminina de 500m, a primeira das três categorias na qual Ayaka estava inscrita, seria o evento inicial do dia esportivo e ela se comprometera a chegar cedo para participar, e parecera muito entusiasmada com isso, mas Aiha não era nenhuma tola, embora fizesse apenas umas poucas semanas que conhecia Ayaka, Aiha já sabia: Ayaka Shiori era uma pessoa sem qualquer senso de responsabilidade e movida apenas pelos próprios interesses.

Ela nunca prestava atenção nas aulas e estava sempre sendo expulsa delas, porque não lhe eram interessantes, exceto na aula de matemática e artes porque estas lhe interessavam, embora seu interesse em matemática fosse um mistério, o interesse em artes era óbvio: ela era horrível, mas adorava ser modelo, mas ainda assim o interesse em ambas era visível ali.

Da mesma forma fora com o dia esportivo, ela o ignorara até que alguma coisa despertara seu interesse nele a ponto de entusiasmá-la.

―Muito bem Ayaka, parece que você é mesmo rápida como diz. ― Aiha admitira no dia em que a viu correr pela primeira vez.

―Eu sou bem mais rápida! ― ela vangloriara-se com um “V” de vitória.

Autoconfiança não era um problema para ela.

―Muito bem. ― Aiha cruzara os braços ― Mas e quanto a sua resistência física?

―Perfeita! ― respondera sem hesitação.

―Acha que conseguiria competir em três circuitos de corrida? ― perguntou rigorosa.

―Seguidos?! ― ela entusiasmou-se juntando as palmas das mãos.

―Não. ― Aiha franziu o cenho ― A primeira será a corrida de 500m às 8h, depois haverá a corrida de obstáculos às 14h e a última será a corrida de revezamento às 17h30. Pretendo colocá-la nas três, acha que aguenta?

―Com certeza!

Aiha estalou a língua.

―Ayaka você já praticou alguma modalidade esportiva antes?

―Nunca! ― respondeu alegremente.

―Tudo bem, como você está entrando em cima da hora teremos treinos extras...

―Eu não preciso. ― ela recusou de prontidão ― Ficarei bem.

 Mas o quão autoconfiante exatamente ela era?

Aiha a olhou num misto de incredulidade e irritação.

―Muito bem. ― disse por fim ― Mas têm mais uma coisa Ayaka.

―Sim?

―O dia esportivo terá inicio às 8h e se encerrará às 18h, com uma pequena pausa para o almoço de 12h às 13h, isso significa... Que a corrida de 500m será o evento inicial. Por isso... ― olhou-a seriamente ― É melhor chegar cedo.

―Sim, pode deixar! ― Ayaka fez uma continência irreverente.

Dessa forma ela havia se comprometido a aparecer cedo no Dia Esportivo para a competição inicial... Pelo menos até que algo mais interessante aparecesse.

Por isso Aiha estava ali, se Ayaka não aparecesse ela precisava saber a tempo de substituí-la.

―Oi! Shibuya! ― chamou quando avistou Shibuya Yukari atravessar os portões.

―Bom dia representante. ― Shibuya cumprimentou aproximando-se e posicionando-se com uma mão sobre a outra na altura das coxas, e os calcanhares juntos com os pés apontados para frente ao curvar-se com a coluna perfeitamente ereta.

Shibuya era sempre tão formal, nunca desligava o “modo nakai”, logo se via que ela tinha sido criado numa casa tradicional.

―Shibuya, você sabe onde está a Ayaka? ― perguntou.

―Não. ― respondeu com uma careta ― Por que saberia?

―Porque vocês duas estão sempre juntas. ― respondeu.

Porém Shibuya recebeu aquele comentário expressando uma cara tal como se houvesse provado algo muito azedo, embora fosse verdade, Ayaka parecia ter um gosto peculiar por irritar Shibuya ― e isso era muito fácil considerando-se que bastava ela se aproximar para que, por alguma razão, Shibuya logo ficasse tensa e irritada ― logo, parecia que sempre que não tinha nada melhor para fazer ela punha-se a importuná-la, e quando não a própria Shibuya a buscava, geralmente de forma séria e mal humorada, como uma mãe com muitas dores de cabeça por causa de uma criança traquina.

De uma forma ou de outra as duas estavam sempre juntas.

―Bem, eu não a vi. ― Shibuya respondeu ainda com uma careta de desagrado, ela sempre punha aquele tipo de expressão quando o assunto era Ayaka, provavelmente nem se dava conta.

―Yu-ka-ri! Bom dia! ― Ayaka cumprimentou alegremente, saltando sobre as costas de Shibuya e a abraçando pelo pescoço.

E além de tudo ela só podia ser uma shinobi, Aiha nem tinha visto quando ela passou pelo portão!

―Me largue.

Shibuya reclamou afastando os braços de Ayaka de seu pescoço, que se afastou sorridente.

―E bom dia pra você também, representante.

―Bom dia. ― respondeu ― Você veio de casa já usando o uniforme de ginástica?

―Assim economizamos tempo, não é? ― respondeu dando um rodopiou ― E também ― ela juntou as mãos nas costas ― Porque ao que parece há certa pessoa que fica muito incomodada se eu me aproximo do vestiário feminino.

Shibuya olhou-a de olhos semicerrados, isso intrigava Aiha, naquele dia Shibuya havia dito que Ayaka não era uma garota de verdade, mas para Aiha tudo parecia no lugar enquanto elas tomavam banho.

―Representante, eu vou me trocar, com licença. ― Shibuya despediu-se se curvando.

―Tudo bem. ― concordou com um aceno de cabeça.

―Ah! E Yukari, não se esqueça de ir torcer por mim! ― Ayaka gritou alegremente, erguendo a mão no ar quando Shibuya já ia longe.

Se Shibuya a escutou, não demonstrou.

Aiha pegou Ayaka pelo braço.

―Vamos Ayaka, você precisa... O que foi? ― perguntou quando percebeu que Ayaka a estava olhando.

―Não sei. ― respondeu ainda a olhando ― Tem alguma coisa diferente em você representante?

Aiha arqueou a sobrancelha.

―Hoje vou passar o dia ao ar livre, então só passei protetor solar e manteiga de cacau nos lábios para não ressecá-los assim como faço todos os dias ― e isto não estava contra o regulamento da escola ―, mas não passei máscara de cílios e nem coloquei minhas lentes de contato.

Mas isto com certeza estava.

―Lentes de contato?

―É. Elas deixam as pupilas maiores. ― respondeu já se afastando.

―E isso existe?! ― surpreendeu-se a seguindo admirada.

―Claro que sim, mas creio que não se encontra por aqui.

―Fascinante. ― ela elogiou ― O que mais estes humanos vão inventar agora?

Às vezes essa Ayaka falava de uma maneira tão peculiar...

―Ah! Belas damas! Será que posso ajudá-las em alguma coisa? ― Yonekura Eisuke, o irresponsável, porém popular, representante de turma da 1-7 as abordou quando chegaram à mesa próxima à pista de atletismo, onde os competidores do dia deveriam confirmar sua presença.

Com cabelos escuros penteados com gel de um jeito meio espetado e óculos, sempre sorrindo de maneira fácil e sendo amigável com a maioria das pessoas Yonekura era muito popular entre as garotas, ele era bonito é verdade, mas definitivamente não fazia o tipo de Aiha, imaturo demais...

Aiha levou a mão às costas de Ayaka.

―Esta garota vai competir representando a turma 1-3, ela é...

―Ah... Ayaka Shiori-chan... ― ele sorriu lentamente.

Bem é claro que se tratando de Yonekura ele já saberia o nome dela.

―Sim? ― Ayaka piscou ― Já nos conhecemos?

―Ah, não pessoalmente, mas já ouvi muito falar de você e também já a vi por aí... Mas devo dizer que nada se compara a vê-la assim tão de perto. ― ele passou a mão pelo queixo ― E você também já deve ter ouvido falar de mim, afinal eu...

De repente Ayaka estalou os dedos.

―Já sei! Você é um daquelas dezenas de garotos que ficam colocando cartas no meu armário de sapatos!

Aiha quase cuspiu ao virar o rosto para o lado tentando conter o riso, mas sendo Yonekura quem era, ele não se deixou abalar.

―Não, docinho, quando eu abordo uma garota prefiro fazê-lo diretamente.

―Ah, tem razão! ― Ayaka bateu o punho na palma da mão ― Porque por carta elas são tantas que 97% acabam sendo perdidas ou descartadas antes que eu as abra.

―Certo já chega. ― Aiha pegou Ayaka pelos ombros e a girou para deixá-la de costas para Yonekura ― Aqui, grude logo a identificação nas costas dela.

―Não precisa ficar com ciúmes Aiha-chan, há bastante de mim para as duas. ― ele piscou.

―Nem em sonhos Yonekura.

Aiha girou os olhos, mas ainda assim no fim acabou sorrindo.

―Mas o que é isso Aiha-chan, pode me chamar de Eisuke se quiser. Somos amigos de infância afinal. ― ele piscou pegando uma prancheta em sua mesa ­― Pronto! ― anunciou ― Basta que assine aqui agora, para o registro.

―Claro. ― Ayaka concordou assinando alegremente.

―Ah, Ayaka parece que as primeiras competidoras já estão chegando. ― Aiha comentou ao ver algumas garotas se alongando na pista ― Você devia ir logo.

―Certo! ―Ayaka devolveu a caneta e a prancheta a Yonekura e saiu correndo logo depois ― E não se preocupe representante eu com certeza vou ganhar aquelas corridas e ficarei com as medalhas para mim!

As medalhas, então era disso que se tratava, será que ela sabia que não eram de verdade?

―Ah estar no colegial é realmente animado. ― Yonekura comentou sorrindo enquanto observava Ayaka se alongando com as outras garotas ― E cheio de belezinhas também...

―Corta essa, temos coisas mais importantes a tratar. ― ela estalou os dedos próximos ao seu rosto para chamar de volta a sua atenção.

―Ah, claro...

Ele voltou-se para ela com um sorriso astuto e tentou pegar sua mão, mas Aiha a esquivou habilmente quando a colocou no bolso para tirar de lá as três notas de ¥1.000,00 que praticamente esfregou no rosto dele ao dizer:

―Eu quero apostar.

Yonekura afastou o dinheiro de seu rosto e sorrindo como quem não sabia de nada perguntou:

―Apostar? Mas do que está falando Aiha-chan?

Aiha botou a mão livre no quadril e ergueu o queixo, desafiando-o a mentir.

―Eu sei sobre as apostas ilegais que você está comandando, estou dizendo que quero entrar na jogada.

Yonekura a encarou seriamente ajeitando os óculos.

―Tsc. Francamente Aiha-chan! Nada escapa aos seus ouvidos não é?

Ele sorriu balançando a cabeça e dando meia volta para voltar ao seu lugar atrás da mesa e tirou de debaixo de lá uma pequena agenda preta, abrindo-a sobre a mesa.

O Dia Nacional do Esporte era um feriado dedicado aos esportes, à boa saúde e ao espírito de equipe, logo, a escola vetara completamente a prática de apostas de qualquer espécie, e no caso de alguma atividade ilícita se flagrada todo o dinheiro seria confiscado ― claro ― e os alunos envolvidos poderiam até ser suspensos.

E era dever do conselho estudantil, juntamente com os professores, fiscalizarem tudo isso.

―O que o presidente do conselho disse sobre isso? ― perguntou observando as várias anotações na agenda.

Tanaka Hiroshi, o presidente do conselho estudantil, era um aluno muito aplicado e reservado que sempre andava por aí usando óculos redondos e estava em seu segundo ano do colégio, ele não era má pessoa, mas era muito rígido e se soubesse das apostas bem... Todos estariam bem encrencados, para dizer o mínimo.

―Nada, ele não precisa saber. ― Yonekura a olhou girando a caneta entre os dedos ―E então Aiha-chan, o que vai ser?

Aiha colocou de uma só vez as três notas sobre a agenda.

―Os 500m feminino, a corrida feminina de obstáculos e a corrida de revezamento. Estou apostando ¥1.000,00[ii] em cada.

―Como esperado da Aiha-chan, quando ela aposta é pra valer. ― ele sorriu virando as páginas da agenda ― E em quem vai apostar?

Aiha cruzou os braços.

―Na turma 1-3, é claro.

O sorriso de Yonekura vacilou.

―Como é...? Tem certeza Aiha-chan? Você sabe que vários membros de clubes esportivos participam de eventos como esse, e o clube de atletismo está em peso nas corridas, e eles são os favoritos então você tem certeza que quer mesmo apostar tudo isso na Shiori-chan?

―Eu tenho certeza. ― confirmou confiante.

Yonekura sorriu estalando a língua.

―Isso é que é apoiar o time, muito bem Aiha-chan, você que sabe. ― ele balançou a cabeça, fazendo anotações na agenda. ― Mas a casa fica com 5% do total da aposta, como você soube das apostas afinal?

Ele girou a caneta entre os dedos, fechando a agenda e guardando-a novamente debaixo da mesa.

Aiha encolheu os ombros.

―Ouvi por aí.

Yonekura balançou a cabeça, ainda girando a caneta entre os dedos.

―Francamente. No começo isso era pra ser só uma brincadeirinha entre amigos, sabe? Pra dar um gostinho a mais nesses jogos sem graça. ― Yonekura era popular, mas não fazia o tipo atlético ― E quando eu vi já haviam pessoas de outras turmas, e até senpais, me procurando na sala. ― ele parou de girar a caneta, abrindo um sorriso esperto ― No fim tudo virou um grande esquema...

O sorriso sumiu de seu rosto e ele assumiu uma expressão séria deixando de falar quando focalizou algo atrás de Aiha que, intrigada, virou-se.

É claro, afinal Yonekura era gentil, mas sua “gentileza” era separada especialmente para um seleto grupo de pessoas composto quase que exclusivamente de garotas ― especialmente se fossem atraentes ― e, portanto, para o resto da raça humana ele era simplesmente indiferente, e quem vinha se aproximando era Hanyu Saykis-senpai, o representante da turma 2-5 e estrela do time de atletismo ― cuja velocidade, segundo diziam, só se equiparava ao do próprio presidente do clube ― acenando para eles.

―Aiha-chan! Eisuke-kun! Olá! ― ele os cumprimentou alegremente.

―Me chame de Yonekura, senpai. ― Yonekura resmungou de trás de sua mesa.

―Hanyu-senpai. ― Aiha sorriu ― Animado para o dia esportivo?

Tecnicamente Hanyu-senpai e Aiha deveriam ser rivais, já que ele liderara durante o seu primeiro ano o raking de notas do colégio, até que Aiha chegou e tomou este posto dele no primeiro semestre daquele ano, posto que mantinha até então ― e todos mal podiam esperar para o próximo “confronto” nas próximas provas ―, mas a verdade era que embora competitivo Hanyu-senpai era sempre muito amigável, e Aiha tão pouco tinha vontade de brigar com ele.

―Ah! Com certeza que estou, venho treinando para este dia desde o Dia Esportivo do ano passado! ― ele respondeu animado, e claro que podia estar exagerando, mas quem podia dizer com certeza? ― E Aiha-chan, eu já disse que você tem que me chamar de Saykis-kun, ou se isso for pedir muito pode ser Saykis-senpai.

―Hanyu-senpai o que o traz aqui afinal? ― Yonekura o chamou. ― Que eu me lembre você já pegou a sua identificação e também assinou a sua presença.

―Ah! ― Hanyu-sepai tirou a mão do bolso e a ergueu, mostrando quatro moedas de ¥500,00 presas entre os dedos ― Eu estou aqui para apostar!

Yonekura arregalou os olhos.

―Aiha-chan! ― ele exclamou em tom acusativo, quando a viu rindo de sua reação.

―Oi! Como você pode dizer que fui eu que contei a ele? ― defendeu-se entre risadas ― Pode ter sido ao contrário e ao invés disso Hanyu-senpai é que me contou sobre as apostas.

―Tá, que seja! ― Yonekura pegou novamente a agenda e, de má vontade, abriu-a sobre a mesa ― Então o que vai ser senpai?

Hanyu-senpai deixou animadamente o dinheiro sobre a mesa e começou a enumerar contando-as nos dedos as modalidades em que queria apostar:

―Muito bem, eu quero que divida a quantia para apostar na corrida de 500m, masculino, na corrida de obstáculos masculino, e na corrida de revezamento, e também no futebol masculino e vôlei masculino, todos para a turma 2-5!

Yonekura fez uma careta

―Quando se trata de apoiar suas próprias turmas vocês são mesmo uns representantes obcecados.

Obstinados, seria uma palavra melhor. ― Aiha o corrigiu com um sorriso de lado.

―Mas é claro! ― Hanyu-senpai ergueu um punho energeticamente ― Afinal quem está participando de todas essas competições... Serei eu!

Dessa vez quem arregalou os olhos foi Aiha, a maioria dos alunos procurava participar de uma ou duas modalidades, ou até três no máximo, mas cinco?! Era simplesmente loucura!

―Hanyu-senpai, você não pode participar de cinco modalidades num dia só! Não tem como você aguentar e nem como estar em todas elas!

―Pois fique assistindo Aiha-chan! Porque eu não só vou participar como vou ganhar todas! ― ele afirmou, já mostrando o “V” de vitória ― E levarei as medalhas para casa!

Afirmou logo antes de sair correndo, acenando para os dois.

Ah... Aquelas medalhas de novo. Será que alguma mudança de última hora havia sido feita sem que Aiha soubesse e agora as medalhas eram feitas de ouro maciço?

―Participar de cinco modalidades, onde esse cara está com a cabeça? Será que ele ao menos é humano? ― Yonekura balançou a cabeça, guardando o dinheiro numa bolsa de pano e anotando as novas apostas na agenda.

De repente Aiha bateu na mão de Yonekura, chamando-lhe a atenção.

― As garotas estão vindo aí!

Avisou rapidamente por entre os dentes, dando-lhe as costas e encobrindo-o enquanto ele guardava novamente a agenda ao avistar Hongo, Shibuya e Nishiwake se aproximando.

E não é que não confiasse nelas, elas eram boas meninas, só que boas demais.

―Bem, onde vocês estavam? ― questionou ― Não acham que demoraram um pouco demais no vestiário?

―Sentimos muito. ― Hongo e Shibuya desculparam-se quase de maneira ensaiada, Nishiwake, no meio das duas, limitou-se a concordar com um aceno tímido.

―É importante estarmos aqui para torcer pelos nossos, e a corrida já está para começar... Ou melhor, começa agora.

Corrigiu-se quando ouviu o sinal tocar.

Em sua mesa Yonekura ligou o microfone, e começou a narrar animadamente:

―Bom dia! Estamos aqui nesse agradável dia de outono para o 73° Dia Esportivo do colégio ARASHINO, e este ano nosso evento inaugural será a corrida de 500m na categoria feminina...!

Aiha tocou o ombro de Hongo puxando-a para mais perto.

―Lembre-se de torcerem bem alto por nossa colega Ayaka. ― avisou-as.

Mantendo os braços cruzados e uma expressão entediada, porém séria, Shibuya respondeu:

―Quer torçamos ou não ela vai ganhar.

Ela parecia estar ali não como alguém que viera torcer por sua colega de classe, mas sim como um guarda de prisão, cuidando para os prisioneiros não fugirem do pátio.

E a largada foi dada!

O som dos alunos gritando e torcendo quase se sobrepôs à voz de Yonekura ― que estava bem ao seu lado ― narrando tudo pelos alto falantes através do microfone, e de todos o seu grupo era certamente o mais quieto.

Shibuya continuava assistindo a tudo de forma séria e calada, Hongo torcia em uma expectativa silenciosa que a fazia torcer as mãos à altura do peito e dá pequenos pulinhos e Nishiwake era simplesmente tímida demais para torcer.

―E TAKEYAMA MIDORI DA TURMA 3-1 TOMA A DIANTEIRA! ― Yonekura narrou a plenos pulmões no microfone.

Ayaka estava ficando para trás, caiu para o segundo lugar, terceiro...!

―Ela está ficando para trás! ― Hongo dava pulinhos de ansiedade, a própria Aiha já estava começando a ficar apreensiva ― Ela...!

 ―Está apenas jogando conosco, talvez por causa da emoção. ― Shibuya afirmou entediada ― Não se deixe enganar...

―AYAKA! ― Aiha gritou de repente sem conseguir mais se conter, pondo as mãos em volta da boca para amplificar o som de sua voz ― NÃO SE ESQUEÇA DAS MEDALHAS!

Foi como se, de repente, ela ganhasse proporções a foguete e rapidamente tomou a dianteira, surpreendendo Takeyama-senpai que assustada perdeu o ritmo por um segundo, tempo o suficiente para que a segunda colocada quase a alcançasse, o que levou Aiha a desconfiar por um momento de que, tal como Shibuya havia dito, Ayaka realmente estivesse apenas jogando com elas, pelo simples prazer da emoção, ou isso ou o incentivo das medalhas havia realmente dado certo, espere, será que ela era capaz de ouvi-las mesmo com todo aquele barulho?

Oras, não custava nada tentar.

―FORÇA AYAKA! ― voltou a gritar, ainda com as mãos em volta da boca ― AS MEDALHAS ESTÃO A CADA PASSO MAIS PRÓXIMAS! ― e gesticulando para as outras garotas chamou-as: ― Vamos vocês também, estou me matando aqui!

Encorajada por sua torcida Hongo até conseguiu dar um ou dois gritos incentivando Ayaka a não desistir, e até mesmo Nishiwake conseguiu força-se a gritar “Força” uma vez, embora tenha sido um grito tão baixo e agudo que mesmo para Aiha, que estava quase ao seu lado, foi difícil de escutar, mas o que valia era a intenção, somente Shibuya ficou calada como estava, sem nem sequer descruzar os braços, ainda em sua pose de “guarda da prisão”.

Ayaka acabou ganhando a corrida com uma vantagem absurda de, pelo menos, dezessete metros ― um novo recorde no colégio pelo que ouvira falar ― e não apenas ganhara sua tão ansiada medalha como também a atenção de, praticamente, todo o clube de atletismo que caiu sobre ela como uma tempestade, insistido, talvez até implorando, para que ela se juntasse ao clube, então no fim ela acabou se saindo muito bem em sua primeira corrida, justamente como prometera, ao contrário de Aiha e das meninas que, na competição de corda dupla, se fosse para dizer sua posição na classificação, diria que ficaram em terceiro lugar... De trás para frente, e isso numa modalidade do qual participavam 17, das vinte e quatro classes ― e quem levou a medalha nessa competição acabou sendo a turma 2-6.

―Ah Yukari! Sua competição foi tão lamentável que até fiquei envergonhada por você! ― a raposa lastimou-se pondo ambas as mãos em seus ombros olhando-a cheia de piedade.

―Não preciso de sua pena! ― Yukari reagiu, afastando suas mãos com impaciência. ― E por que é que foi nos assistir afinal?!

―Ora! Vocês foram tão legais torcendo por mim que o mínimo que eu poderia fazer seria assisti-las também, não acha? ― a raposa respondeu, unindo as mãos de forma animada.

A próxima corrida dele seria apenas às 15h e até lá ele não tinha mais nada o que fazer, então é claro que fora assistira sua competição de corda dupla, e de quebra ainda se convidara para almoçar junto delas ― embora não tivesse trazido nem sequer um mísero bolinho de arroz para si mesmo, porque não passava de um grande aproveitador.

―Eu... Eu acho que elas foram muito bem... ― Aoi-chan comentou solicita.

―Aoi-chan, tem certeza que estava assistindo ao time certo? O nosso era aquele com a garota desastrada de tranças que tropeçou e quase caiu depois de três pulos... Ah e depois de tudo o que nós treinamos. ― suspirou ― Mas acho que Yukari não tem culpa mesmo, acho que sua coordenação motora é tão ruim que para aprender a pular ela precisaria de muito mais tempo do que uma vida humana tem a oferecer.

Zangada Yukari mordeu um pedaço de seu sanduíche, quase teve vontade de gritar “olhe um cão!”, só para espantá-lo dali e livrar-se dele de uma vez, mas teve medo de como ele poderia reagir a isso ― talvez acabasse por mostrar sua cauda e orelhas, ou pior, se transformasse por completo ― e por isso se conteve, limitando-se a enfiar um de seus sanduíches nas mãos dele.

―Toma! Coma e cale-se de uma vez! ― disse impaciente.

―Ah! Itadakimasu então! ― ele aceitou alegremente.

―Vocês... Treinaram juntas? ― Kaoru perguntou hesitante, olhando dela para a raposa ― Mas a Ayakashi-chan não apareceu em nenhum dos treinos, então... Você foi a casa dela Yuki?

A raposa estava distraída comendo, mas agora Yukari tinha sobre si os olhos não apenas de Kaoru como da representante e de Aoi-chan também, e sentiu-se encurralada, pois não sabia como responder àquilo, a representante e até mesmo Kaoru — que não era muito melhor que Yukari, mas ainda assim seus movimentos não eram tão “lamentáveis” — haviam ambas se oferecido para ajudá-la a treinar e ela as recusara, como poderia agora dizer que pedira ajuda àquela “garota” que sequer aparecera para os treinos?

—Ah! Ayaka-chan! — o professor Haruna parou ao lado das garotas surgindo como que para salvá-la da situação sem sequer saber disso. — Meus parabéns! Eu vi sua performance na corrida, e você foi realmente muito bem!

A raposa virou-se surpresa, tão concentrada estava em seus sanduíches — pegara um segundo e um terceiro em cada mão sem nem pedir permissão — que nem sequer notara a aproximação do professor.

—Ah! Professor Haruna! — percebendo que havia falado de boca cheia forçou-se a engolir tudo de uma vez, e então mais calmamente, e quase timidamente perguntou: — Você... Estava me assistindo?

Yukari cerrou os olhos, podia apostar tudo o que tinha que aquele delicado rubor nas bochechas da raposa era fingido.

—Mas é claro que estava! — o professor respondeu alegremente — Como professor responsável pela turma é meu dever assistir ao máximo de competições das quais meus alunos estão participando!

—Então você também nos assistiu professor? — a representante questionou segurando seu obentô enquanto comia com o guardanapo delicadamente estendido sobre suas pernas dobradas.

De repente o professor Haruna pareceu encabulado.

—Hum... Eu sinto muito Kanae-chan, mas a competição de vocês foi na mesma hora que a segunda partida de futebol dos garotos da turma e eu...

—Está tudo bem professor. — a raposa acenou com a mão — Foi mesmo uma competição tão lamentável que deu pena, quase chorei por Yukari.

Yukari suspirou irritada, contendo a vontade de lhe bater.

—Ah, sim? — o professor parecia ainda mais desconcertado — Bem, então eu realmente sinto...

—De qualquer forma. — a representante bufou irritada, só não dava para saber se com o professor Haruna ou com a raposa — Os garotos ao menos ganharam?

—Ah, não, acabamos perdendo por cinco a três para o time dois. — riu o professor — E quem acabou passando para a final foram os times dois e cinco.

A representante arqueou as sobrancelhas.

—O time cinco? O senhor disse que o time cinco de futebol masculino está nas finais?

—Ah, sim! — o professor concordou ainda de forma animada — Por outro lado o seu time feminino de vôlei perdeu já na primeira partida, o nosso por sua vez está indo muito bem, eu só assisti a primeira partida, mas soube que estamos na final!

—Ah, isto é muito bom! — Aoi-chan se animou juntando as palmas das mãos.

—Uhun, talvez pudéssemos ir vê-las jogando. — a representante concordou, terminando seu almoço e fechando seu obentô, mas já não parecia mais estar tão atenta.

Ela provavelmente devia conhecer alguém do time 5 de futebol masculino, isso era mais difícil de dizer porque, diferente das competições individuais e/ou de curta duração — como corda dupla e a corrida de 500m — em que todas as turmas competiam umas contra as outras, as competições com grandes times e/ou longa duração — como futebol e basquete — eram divididas pelos números iguais de cada turma independente do ano, as turmas 1–1, 2-1 e 3-1 formavam o time um, as turmas 1-2, 2-2- e 3-2 formavam o time dois e assim por diante.

—Eu tenho algum tempo antes da minha próxima corrida. — a raposa afirmou abrindo uma garrafa de chá verde que antes estivera intocada ao lado de Yukari e que ela nem sequer percebera quando fora pega — O que o senhor irá assistir agora?

—Ah...! — ele atrapalhou-se buscando nos bolsos por um panfleto com a programação do Dia Esportivo e, pelo que podia ser visto, todo rabiscado com anotações de caneta vermelha — A última partida que assisti antes do almoço foi dos garotos, então pensei em começar agora pelas garotas, nós fomos eliminados na partida inicial de basquete, tínhamos uma garota lá, mas estamos nas finais de vôlei... Ah! As partidas de futebol feminino também começarão agora depois do almoço! Nós temos três garotas lá! — ele voltou a guardar o panfleto — Acho que vou começar por ver a final de vôlei, quero passar lá para dar meu apoio, temos apenas uma garota da nossa sala no time, mas é importante que ela saiba que não foi esquecida, mas não sei se poderei ficar até o fim, porque quando começar a partida de futebol feminino... Oh! Olha aí o sinal! É hora da batalha!

E, juntamente com a campa do final do almoço, o professor se foi correndo.

—O professor Haruna está se esforçando muito hoje. — Kaoru comentou começando a guardar as coisas.

—Ah sim, com certeza. — a raposa concordou com um sorrisinho. — Eu diria até mais que os próprios alunos! — ele levantou-se com um pulinho animado e fechou a garrafa de chá verde em mãos — Bem! Eu também estou indo agora, até mais tarde meninas, ah e não se esqueçam de ir me assistir correr na corrida de obstáculos depois! Oh, e Yukari, isso aqui é seu obrigada.

Ele jogou a garrafa de volta para Yukari, longo antes de afastar-se correndo... Na mesma direção que o professor tinha ido.

Yukari olhou desconfiada a garrafa de chá verde com pouco mais da metade do conteúdo em suas mãos, como se ela fosse beber aquilo agora!

Embora Yukari não tenho mais participado de nenhuma competição, o resto do dia foi quente e cansativo, e se dependesse de si ela teria ido para a casa, mas a representante a mandou ficar com as outras e assistir algumas partidas para “incentivar o espírito esportivo”, ou coisa assim.

—Seria melhor se vocês se dividissem para ver mais partidas, mas também não tem problema se quiserem ficar juntas. — foi o que ela disse, levantando-se com a bolsa debaixo do braço onde guardara o obentô, depois que terminaram de guardar tudo.

Yukari franziu o cenho.

—Mas e quanto a você?

—Eu vou assistir a final de futebol masculino.

—Mas o professor Haruna acaba de dizer que nós não... — Aoi-chan piscou.

—Eu sei. — a representante virou-se acenando para elas — Mas há algo divertido lá que eu quero ver.

Então Yukari e as garotas acabaram indo assistir à partida de futebol feminino.

—Quem está ganhando? — Kaoru perguntou olhando perdida para o campo.

—Acho que... Estamos empatados? — Aoi-chan sugeriu.

Yukari forçou a vista, as garotas no campo não paravam de correr de um lado para o outro, de forma que era impossível ler os nomes e números em suas camisas.

—Qual deles é o nosso time? — perguntou por fim.

Nem Aoi-chan e nem Kaoru souberam responder.

Levou todo o primeiro tempo e quase metade do segundo até Yukari e as garotas finalmente perceberem que estava assistindo à partida errada — aquela era a partida do time 1 contra o time 2.

Então elas foram à partida de vôlei, mas entenderam tanto lá quanto havia entendido na partida de futebol, e não se demoraram por muito tempo por ali também, até decidirem ir ver como estavam indo os meninos no basquete... E eles não estavam jogando, era a partida do time 5 contra o time 6, mesmo assim ainda decidiram dar um tempo por ali.

Por fim, lá pelas 15h, acabaram indo ver a corrida feminina de obstáculos, não que Yukari realmente quisesse ver e muito menos torcer pela raposa — francamente ele não precisava de mais nada para inflar ainda mais o seu ego —, ela só queria estar ali para ter certeza de que ele não roubaria todas as medalhas de uma vez — não que ela pudesse fazer algo para impedi-lo disso também — a representante se juntou a elas ali, e junto com ela estava outro representante de classe, que lhe sorriu de maneira que fez Yukari lembrar-se muito da raposa quando ele lhes foi apresentado — chama-se Yonekura Eisuke.

Embora a raposa tenha ficado para trás na parte do circuito onde deveriam pegar o pão de batata[iii] — provavelmente de forma proposital — as garotas vibraram quando ela cruzou a linha de chegada novamente em primeiro lugar, exceto Yukari, para quem tal vitória não havia sido surpresa, embora ela tenha se assustado quando de repente a representante começou a gargalhar bem ao seu lado com a vitória, dando tapinhas nas costas do representante Yonekura.

Levou quase uma eternidade, mas finalmente aquele dia estava chegando ao fim, e agora tudo o que restava era a corrida de revezamento, que seria a última competição do dia, e uma das poucas modalidades unissex, e novamente, como havia sido em todas as outras corridas, os membros do time de atletismo estava em peso ali... Mas a raposa também estava entre os competidores.

—... a terceira corrida de Ayakashi-chan hoje? — Yukari ouviu Nishitake-kun, de sua sala, dizer enquanto procurava um lugar para ficar junto com Kaoru e Aoi-chan. — Será que ela vai ficar bem?

—Está tudo bem. — Kijima-kun outro garoto de sua sala, respondeu confiante — A nossa Ayakashi-chan é mesmo muito veloz!

—Ela pode ser veloz. — concordou Nishitake-kun — Mas essa é a sua terceira corrida, ela deve estar cansada, e olhei isso! O time de atletismo está todo nessa competição! A representante é muito má por fazer a Ayakashi-chan correr em três corridas.

Ao que Kijima-kun respondeu:

—Ah... Mas eu bem que queria que ela fosse comigo.

Ao que Yukari girou os olhos e virou o rosto... E só então notou Kaoru e Aoi-chan preocupadas a olhando.

—Yuki. — Kaoru a chamou. — Você acha que a representante e a Ayakashi-chan vão ficar bem?

Cada turma era representada por um time de três na corrida de revezamento, a representante era a integrante n° 1 da equipe, a raposa era a integrante n° 3, e entre elas o integrante n° 2 era um garoto chamado Ueno Ryo.

Yukari arqueou as sobrancelhas.

—Claro que sim. — respondeu um tanto surpresa.

Não havia razões para acreditar que algo de mal lhes passaria, a representante só havia participado da competição de corda dupla pela manhã, Ueno-kun não havia participado de nenhuma outra competição naquele dia, e a raposa nem sequer era humana... Mas elas não tinham como saber disso para início de conversa.

Quando a largada foi dada não foi surpresa eles já começarem em desvantagem, assim como Nishitake-kun havia feito questão ressaltar todo o clube de atletismo havia resolvido se escrever naquela competição de uma só vez, e boa parte deles havia sido colocado como membro n° 1 de suas respectivas equipes para já começar a corrida com uma boa vantagem, de forma que a representante foi apenas a 9° a passar o bastão para o próximo membro da equipe, e Ueno-kun, por sua vez, foi o 17° a conseguir passar o bastão para o terceiro e último membro da equipe e a essa altura a desvantagem era ainda mais gritante, pois havia membros do clube de atletismo na segunda fase também e mesmo da distância em que se encontrava a agitação da raposa era papável, o bastão mal tinha tocado sua mão quando ele o agarrou e disparou.

E pior: algumas das equipes tinham membros do clube na segunda e na terceira fase, aumentando ainda mais a sua vantagem para a desesperança das equipes restantes, o que deixou Yukari com uma pontinha de nervosismo, temendo que, a qualquer momento, a raposa colocasse o bastão na boca e voltasse a sua forma animal para correr de quatro na frente de todos ali.

Ele ultrapassou os primeiros 15 competidores a sua frente, mas os dois competidores que estavam liderando a corrida naquele momento eram justamente Kimura Masao, correndo pela sala 3-7, e Hanyu Saykis, correndo pela sala 2-5, ambos estrelas do clube de atletismo — Kimura-senpai era inclusive o presidente do clube! — e contra aqueles dois e com tamanha desvantagem mesmo a raposa parecia estar tendo dificuldades em alcançá-los... Ou então era apenas parte do show.

Enquanto a plateia gritava e torcia, Hanyu-senpai e Kimura-senpai lideram a corrida cabeça a cabeça, faltava agora menos de meia volta para a linha de chegada, e a raposa vinha logo atrás deles! E estava se aproximando! Mas ao mesmo tempo Hanyu-senpai começou também a se afastar e tomar à dianteira... Começou com uma vantagem mínima, quase imperceptível, mas ela foi crescendo, e crescendo a uma velocidade assustadora, até que já havia pelo menos um metro o separando de Kimura-senpai.

Quando a distância entre a raposa e Kimura-senpai começou a aumentar de tamanho também e a raposa foi ficando cada vez mais para trás Nishitake-kun se colocou de pé e com as mãos em volta da boca se pôs a gritar ainda mais alto do que já estava gritando:

—Vamos Ayakashi-chan! Não desista! Ayakashi-chan! Força!

A distância entre os três competidores que lideravam do resto era absurda, o resultado já parecia praticamente definido, há três metros da linha de chegada Hanyu-senpai já esticava a mão com o bastão, prestes a ganhar a corrida... Quando foi repentinamente ultrapassado e vencido por Ayaka Shiori, da turma 1-3.

Por quase quatro segundos inteiros a escola se calou, absorvendo o choque daquele resultado, e de repente explodiu em gritos e comemorações, na pista a raposa erguia os braços também comemorando a vitória, enquanto um pouco mais para trás, perto da linha de chegada, Hanyu-senpai e Kimura-senpai olhavam ao redor parecendo meio perdidos, como se ainda tentassem entender o que havia acabado de acontecer ali.

Um show, fora isto o que aquela raposa armara para si mesmo ali: Um verdadeiro espetáculo. Yukari cruzou os braços e girou os olhos.

...

Ainda sob o disfarce de Ayaka Shiori, cerca de uma hora depois que todo o evento acabara, Gintsune saltitava feliz com as três medalhas penduradas em seu pescoço tilintando a cada movimento, ele andava sob um céu poente vermelho sangue sem rumo e não prestava atenção por aonde ia, mas de qualquer forma isso não tinha muita importância, se caso se perdesse bastava transferir-se para o plano espiritual e sair voando para que do alto localizasse a pousada Shibuya, mas de repente parou quando captou algo com sua visão periférica que lhe chamou a atenção: professor Haruna Kakeru.

Gintsune não havia percebido até então, mas estava passando naquele momento ao lado de um pequeno bosque cercado por uma grade de ferro negro, cuja entrada apresentava-se na forma de um arco negro também de ferro, e cortando esse pequeno bosque seguindo a partir do arco de entrada havia um sinuoso caminho onde — ora vejam só! — o professor Haruna encontrava-se.

Haruna por sua vez não havia notado-o ali ainda, ele estava agachado na beira da trilha há alguns metros de distância, e toda a sua atenção estava voltado para algo por entre as árvores.

Dando um sorrisinho travesso com aquela oportunidade que se apresentava de tão boa vontade a sua frente, Gintsune acenou para o professor.

—Professor! Professor Haruna! — chamou aproximando-se.

Erguendo a cabeça Haruna voltou-se surpreso.

—Ayaka-chan! — exclamou surpreso — Mas que surpresa, o que faz por aqui?

Gintsune deu um sorrisinho inocente parando ao seu lado e inclinando-se para frente com as mãos juntas nas costas, fazendo as medalhas em seu pescoço tilintarem.

—Apenas passeando! — afirmou — É que ainda sou nova por aqui, o senhor sabe, e esta cidade é tão bonita...

—Ah sim, eu entendo. — ele sorriu — Mas você não devia andar por aí assim numa hora dessas, o crepúsculo é chamado “A hora do demônio” sabia? Porque é quando o dia e a noite se encontram, e é quando os seres deste mundo se recolhem e se abrigam da escuridão e os seres do outro mundo vêm à tona, por isso não são raros tipos de encontros sobrenaturais acontecerem a essa hora. — ele falava num tom sério, embora continuasse sorrindo, querendo empregar algum “ar de sinistro” ao que dizia, e querendo empregar mais seriedade ainda, ajeitou os óculos e completou: — E veja só este céu vermelho, não parece mesmo o prelúdio de alguma coisa sobrenatural prestes a acontecer?

Gintsune sorriu da ironia daquilo, o professor Haruna nem sequer fazia ideia do quanto estava certo...

—Mas e quanto a você, professor? — perguntou — Se essa hora é assim tão perigosa, o que o senhor faz aqui fora? Por acaso está querendo encontrar-se com algo do além? É isso?

Haruna jogou a cabeça para trás e gargalhou.

—Nessa você me pegou! — admitiu — Mas não, a verdade é que moro justamente do outro lado deste bosque.

—Oh. — um lento sorriso cresceu em seus lábios — Isto é algo bom de saber.

—E claro. — continuou o professor Haruna — Também parei para cumprimentar Yurigami.

E então acenou para um pequeno hokora alinhado por entre as árvores à beira da estrada.

Virando a cabeça com expressão surpresa Gintsune afastou-se com um salto para trás.

Um hokora!

Ele nem sequer havia percebido que havia entrado no território de um deus! E deuses, por vezes, costumavam não ser muito tolerantes com intrusos adentrando em seus domínios.

—Claro que o Yuri-Sama provavelmente nem está em casa. — o professor Haruna seguiu falando sem sequer notar a sua reação exagerada — Afinal estamos em pleno Kannazuki[iv].

Ele riu.

E só então, passado o susto, foi que Gintsune notou que na verdade quase não sentia presença alguma ali, a não ser por um leve vestígio, então ele provavelmente estava realmente vazio.

—Está vendo como os lírios aranha brotam aos montes naturalmente ao redor do templo? — o professor indicou as flores que cresciam amarelas e brancas em pequenos montinhos ao redor do templo, com duas os três vermelhas espreitando por trás também — Elas crescem aqui porque Yurigami é o deus das flores, e estas são as flores favoritas dele, especialmente as vermelhas.

—Ah, então é por causa deste Yurigami-Sama que esta cidade é chamada Higambana?

—Creio que sim. — e apoiando o queixo sobre a mão ele olhou para o pequeno santuário — Embora ele tenha sido quase que completamente esquecido pelo povo desta cidade, eu mesmo só descobri o seu pequeno templo por acaso. Quem sabe não seja preciso um terceiro Ano do Bibougami para que Yurigami seja relembrado novamente?

Finalizou com um sorrisinho brincalhão.

Gintsune franziu o cenho.

—Ano do Bibougami. — repetiu — O que é isto afinal? Eu sempre ouço as pessoas usarem essa expressão por aqui, mas não tenho ideia do que se trata.

—Ah! O Ano do Bibougami! — o rosto do professor se iluminou com a chance de contar mais uma das lendas da cidade, e principalmente para alguém que nada sabia sobre elas! — Bem, acontece que antigamente mais do que uma área turística Higanbana era uma área rural, com grandes plantações, principalmente arroz, mas então...

“Por volta do final do século XIX, muitas plantações começaram a murchar e morrer sem qualquer explicação aparente, animais e pessoas caiam doentes todos os dias também e muitos vinham a falecer, e não apenas isso, também há relatos de grandes desastres: Vendavais, enchentes nos rios e terríveis tempestades de raios. Muitos começaram a mudarem-se daqui, tanto os grandes fazendeiros quanto o povo mais simples, e os sacerdotes começaram a dizer que esta terra havia sido amaldiçoada, mas então, alguns moradores notaram que em toda a região uma única área parecia não estar sofrendo tanto quanto as outras: um pequeno bosque.”

“Os moradores restantes, desesperados, começaram então a fazer procissões a este bosque para implorar a fosse qual fosse à divindade que o estivesse protegendo para que protegesse as suas terras também, seus animais e filhos estavam morrendo, suas plantações murchando, e o que restava era queimado e destruído pelos raios e enchentes, eles então construíram este pequeno santuário e lhe fizeram oferendas, implorando por misericórdia”.

“Embora o deus daquele bosque pouco tenha podido fazer por suas plantações perdidas, as flores, por outro lado, brotaram por toda a região e, graças ao deus das flores esta cidade sobreviveu”.

—E tão terrível foi aquele ano repleto de calamidades que, mais tarde, ele ficou conhecido como “O Ano do Bibougami”, porque dizem que só mesmo o Bibougami em pessoa é que poderia causar tantas desgraças. Yurigami o expulsou daqui, dizem, e por isto a cidade se tornou grata a ele... Mas esqueceu-se dele com o passar dos anos. — o professor levantou-se, limpando os joelhos das calças com as mãos — Até que tudo voltou a acontecer, em 92 parece, foi quando as últimas plantações de arroz secaram e os fazendeiros restantes se mudaram, e as pessoas repentinamente lembraram-se da existência de Yurigami-Sama e voltaram-se para ele mais uma vez a procura de ajuda, dizem que este ano foi ainda pior que o primeiro.

Gintsune pensou sobre aquilo.

—Em 1992? Então houve, mais ou menos, um século de diferença entre o primeiro e o segundo Ano do Bibougami?

—Hum... Na verdade um pouco mais de cem anos, eu creio.

—Sei... Entendi.

—Bem, já está ficando escuro Ayaka-chan. — o professor tocou-lhe gentilmente o topo da cabeça — Então é melhor você ir para casa logo.

—Ah, é claro professor! — curvou-se se despedindo do professor.

Porém, mesmo depois que o professor Haruna se foi, Gintsune ainda deteve-se ali por mais um momento.

Plantações, animais e humanos que adoeciam e morriam sem qualquer explicação aparente, enquanto uma região inteira era assolada por calamidades, durante aproximadamente um ano a cada século, Gintsune duvidava muito que aquele tal deus das flores tivesse qualquer coisa haver com “a salvação” da cidade, pois quer ele intervisse ou não a calamidade continuaria a acontecer durante um ano inteiro uma vez por século, e o próximo sempre seria pior que último... Bibougami uma ova, o mal daquela região era outro.

Ele lançou mais um último olhar ao pequeno templo, e só então, estalando a língua, virou-se e retirou-se dali, mesmo que o deus não estivesse em casa não era bom ficar abusando da sorte... Gintsune apenas não notou, atrás de si, uma das portas do templo entreabrindo-se levemente.

***

Satoshi e os meninos haviam partido para a vila há cinco dias, e há quatro noites a yunomi debaixo da casa não parava de correr, e Mayu sabia o que aquilo queria dizer: uma tragédia se aproximava.

Gintsune perdera completamente a fé naquelas criaturinhas, e Satoshi também nunca fora de dar muita credibilidade a elas, mas Mayu, ― que durante a infância fora quase cética ― era justamente o oposto daqueles dois, e embora soubesse que não eram assim que as coisas funcionavam, no momento em que a criaturinha começara a correr Mayu a perseguira tentando impedi-la, não que isso fosse fazer qualquer diferença no futuro eminente que ela anunciava.

E agora a preocupação não a estava deixando dormir direito, então não foi de se admirar ela acordar espantada quando a corrida da yunomi recomeçou, por mais suave que fosse o som de seus passos.

Ele estava correndo de novo!

Mayu era capaz de ouvi-lo claramente, estava correndo debaixo da casa novamente, parecia até que estava correndo em círculos bem debaixo de onde ela dormia.

O que estava acontecendo? Por que ele estava correndo de novo? Porque ele não parava de correr?!

De repente, sob o som dos miúdos passinhos que a atormentavam, Mayu ouviu um som de arrastar, que vinha se aproximando pelo corredor, e junto ao arrastar o som seco de passos.

Mas quem seria? Aquela era apenas a quinta noite e Satoshi e os meninos sempre passavam dez dias na vila e voltavam na manhã do décimo primeiro dia, às vezes na noite do décimo dia mesmo, mas nunca no quinto.

Então quem seria? Gintsune?

Gintsune sempre agia como se morasse ali, entrava sem receios e nem sequer batia antes, mas ele sempre era extremamente silencioso, ou extremamente barulhento, não tinha nada haver com aquele arrastar soturno que se aproximava do quarto.

Os tengus eram youkais guerreiros, amantes da guerra por natureza e embora Satoshi fosse um tengu de índole gentil ele não podia renegar suas raízes, mesmo a casa do mais pacífico dos tengus era repleta de armas, dos mais diferentes tamanhos e formatos.

No inicio Satoshi era tão inexperiente a respeito do mundo exterior como a própria Mayu, mas Satoshi, diferente dela, havia crescido sendo ensinado sobre os perigos e a violência do mundo exterior e assim quando abandonara a vila ele tornara a sua casa num verdadeiro arsenal espalhando armas para proteção e auto defesa por cada cômodo dela ― embora não houvesse levado nenhuma arma quando saiu para explorar o mundo humano pela primeira vez.

Mas as décadas foram passando, e os tempos de paz acabaram por fazer Satoshi relaxar, primeiro ele fazia rondas noturnas todas as noites, depois uma a cada nove dias, e então deixou de fazê-las... As armas foram as próximas, elas que pareciam ter como única função acumular poeira ao longo dos anos começaram a ser, uma a uma, relegadas a serem guardadas e esquecidas no velho galpão no canto da propriedade ― que na verdade tinha a mesma idade da casa, mas ainda assim era chamado de “velho galpão” ―, e agora não havia mais nada no quarto de Mayu com o que ela pudesse se proteger além de quimonos e cosméticos, enquanto uma sombra crescia do outro lado das portas de papel arroz.

Prendendo a respiração Mayu escancarou as janelas e sem perder mais tempo saltou por ali, sentiu o quimono ficar úmido na altura dos joelhos quando caiu do outro lado sobre a grama ainda molhada de orvalho, levantando-se ela puxou a barra do quimono para cima e fugiu.

Os pés chapinharam na lama, que espirrava e manchava na alvura de seu quimono de dormir, dobrou na esquina de sua casa escorregando e quase caindo no exato momento em que a janela de seu quarto voou com um estrondo e uma figura magra, pálida e comprida esgueirou-se pelo rombo. 

Mayu continuou correndo, seguindo pela lateral da casa em direção ao antigo galpão — que ficava na parte da frente do terreno —, tropeçando assustada ao ouvir um estrondo e virando-se de olhos arregalados, perto do poço agora parcialmente destruído uma criatura magra, alta — com, pelo menos 2m10cm de altura — e muito pálida erguia-se usando um quimono esfarrapado, seus braços e pernas eram extremamente compridos e desprovidos de pés e mãos assemelhavam-se a espetos, a cabeça, com o formato de uma cabeça de alfinete, era desprovida de olhos, boca e nariz, parando a figura enrolou um de seus braços, como se fosse um tentáculo, ao redor do cabo do que parecia ser um machado — daí aquele soturno som de arrastar — cravado nas pedras parcialmente demolidas do poço, forçando-o para puxá-lo e certamente arremessá-lo novamente contra ela.

Com um grito engasgado Mayu virou-se e voltou a correr.

Quem era aquele? O que ele queria? Por que a estava atacando? Por que queria matá-la?

O antigo galpão não era aberto há muito tempo, e havia um pesado pedaço de madeira trancando as portas, Mayu forçou-a e tirou-a dali, em seguida puxando as portas e lutando para fazê-las abrir e no exato momento em que conseguiu a lâmina do machado surpreendeu-a cravando-se repentinamente na madeira e fazendo-a gritar e saltar para trás, arrastando a porta junto consigo para fechá-la.

Na absoluta escuridão do galpão, Mayu ficou completamente cega, ela virou-se tropeçando e chutando objetos invisíveis, apalpando grandes móveis indefinidos e mantas de proteção à procura de uma arma, qualquer uma, mas como era possível? Naquele galpão abarrotado de armas os dedos de Mayu não conseguiam encontrar nem uma adaga sequer.

De repente a madeira cedeu com um som de quebrar horrível que foi seguido de outro e mais outro quando o youkai começou a destruir a porta com o machado, com os olhos arregalados Mayu viu a luz da lua invadir parcialmente o velho galpão através da porta quebrada, enquanto o pálido youkai arrastava-se para dentro, primeiro a cabeça, um braço e uma perna, e depois o braço que segurava o machado e a outra perna até que ela virou-se e fugiu para as escadas que sabia que havia ao fundo e que a levariam para o primeiro andar — querendo colocar o máximo de distância possível entre si e o seu atacante.

Mas mal os pés haviam chegado ao terceiro degrau e um puxão cortante a arrancou das escadas e a fez voar por meio segundo até que seu corpo caiu pesadamente no chão, quando o youkai a alcançou e a puxou pelos cabelos.

A criatura estava sobre si agora, puxando-a pelos cabelos e pondo-a de joelhos, Mayu gemeu.

No passado Mayu havia sido a filha de um damyo, ela viveu uma vida rica, mimada e protegida, e então abandonou tudo isso quando se apaixonou por um tengu e fugiu para casar-se com ele.

Em seu mundo sua beleza destacava-se, ali era muito menos do que mundana.

Em seu mundo suas mãos, macias e delicadas, nunca haviam erguido nada mais pesado do que uma yunomi de chá, lavar roupa, limpar, cozinhar... Tudo isto era serviço para as servas fazerem, não para a filha favorita do senhor, mas ali não havia servas que a servissem, havia Satoshi e os meninos, mas os serviços de casa eram seus também.

Em seu mundo, Mayu vestira-se de ricos quimonos, perfumados com incenso e usara os cabelos sempre bem perfumados e oleados, e longos até além dos joelhos, como era próprio de uma dama de sua posição... Mas ali, embora Satoshi — e às vezes Gintsune também — sempre gostasse de presenteá-la com finos quimonos, caros incensos e óleos perfumados, não havia tempo para tais ornamentos tão nobres, era uma vida simples, e Mayu a vivia como tal... Com exceção dos cabelos.

O youkai deu mais um firme puxão nos cabelos de Mayu, arrancando dela um profundo soluço, e ergueu o machado bem alto, mantendo-a firmemente presa pelo couro cabeludo.

Os dedos de Mayu roçaram em algo... Parecia ser... O Cabo de uma espada.

Lágrimas rolavam de seus olhos, seu cabelo... Seu longo e belo cabelo, que por todos aqueles anos, tanto em seu mundo como naquele, ela cultivara sem nunca aproximar uma tesoura sequer dele e agora se estendia para muito além dos joelhos até arrastar-se no chão... Ele era tudo o que lhe sobrara, a última herança do mundo e da família que abandonara.

Seus dedos fecharam-se em volta do cabo da espada, e com mais um puxão o agressor ergue-lhe a cabeça e expôs completamente seu pescoço, ele pretendia cortar-lhe a cabeça fora! Mas Mayu não podia morrer, não ali, não daquela forma, não sem ver Satoshi e seus filhos uma última vez...!

O machado desceu sobre Mayu, e ela, com as mãos bem fechadas em torno do cabo ergueu a espada a frente de seu corpo, com a lâmina voltada para si, e puxou-a em direção ao seu ventre — num movimento similar ao que os samurais faziam ao praticar o sepukku[v].

Mas o seu alvo não era a si própria.

E num movimento rápido... Ela o cortou.


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Notas finais do capítulo

Então o que acharam do capitulo de hoje?
Quem será essa misteriosa mulher e quem ela está esperando? Teorias?
E esse final então? Será que Mayu está bem? (música de suspense)
Até a próxima!

Curiosidades do Japão:

[I]Amuleto do bom tempo:
Teru Teru Bozu é um amuleto japonês com a forma de um bonequinho careca de cabeça redonda, feito de pano ou papel, seu nome significa “Monge do bom tempo”, mas é mais conhecido entre as crianças como “Brilha brilha amiguinho”, diz a tradição popular que se você pendurar um destes haverá sol no dia seguinte e é muito popular entre as crianças, principalmente nos meses de junho e julhos que costumam ser chuvosos no Japão ― mas caso a simpatia não dê certo deve-se cortar fora a cabeça do boneco.
Caso queira ouvir a música cantada por Yukari, basta acessar esse link: https://www.youtube.com/watch?v=JnXl9jNy7o0

Obs: Se você pendurá-lo de cabeça para baixo o efeito é contrario e o dia seguinte é chuvoso.

[II] Valor do Iene:
Atualmente (cotação de 02/2020) cada ¥1.000,00 equivale aproximadamente a R$39,00

[III] Corrida de obstáculos:
As corridas de obstáculos realizadas nesses dias de gincana das escolas japonesas incluem bem mais do que apenas “saltar alguns obstáculos”, os desafios são os mais variados e criativos possíveis, incluindo até, às vezes, pegar com a boca um pão embalado preso em alguma corda.

[iv] O mês sem deuses:
No Japão o décimo mês é comumente conhecido como “Kannazuki” que significa “mês sem deuses”, pois é quando grande parte dos deuses se retira para um grande encontro em Izumo — onde o décimo mês é conhecido como “Kamiarizuki”, isto é: mês com deuses.

[v]Sepukku:
Tradicional ritual suicida japonês, realizado até meados do século XIX praticado principalmente pelos guerreiros samurais visto, em muitos casos, como única forma de recuperar sua honra.



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