O Que Nos Pertence escrita por André Tornado


Capítulo 4
Ocaso




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O som não lhe estava a sair bem. Já tinha afinado o instrumento um cento de vezes e não lhe soava como ele queria. Começava a desconfiar que não seria do baixo, nem das cordas – até já tinha trocado duas delas, descartando as outras, que também eram novas, como defeituosas – nem dos amplificadores, nem nada externo. O problema era com ele. Era dentro dele.

Um suspiro longo e pesado. Apertou a cana do nariz com os dedos. Estava sentado na boca do palco, as pernas a balançar, os calcanhares a baterem na madeira e a provocar um som seco e irritante.

— Estás a sentir-te bem, meu?

Pelas pernas magras e pelas sapatilhas vermelhas Converse All Star descobriu que era o Brad. Não levantou a cabeça.

— Estou com uma enxaqueca.

— Queres que te peça…?

— Duas aspirinas, por favor, Delson.

— É para já, Phoenix.

O guitarrista foi numa corrida até aos bastidores, afastou uma cortina pesada e negra e desapareceu. Dave espreitou-o. Tinha ido com a guitarra. Nunca se separava da sua guitarra. Sentia-se despido sem ela quando estava num palco ou nas vizinhanças de um. Vestia-se e aconchegava-se e completava-se. Chegou até a vê-lo a sorrir, dissimulado, apaixonado, para a sua guitarra.

Seria isso que lhe faltava? Olhou para o baixo e ficou desanimado. Seria incapaz de amar a sua viola-baixo. Era uma coisa, um objeto. Tinha-lhe apreço e estima, mas nutria apenas sentimentos isentos, os que se deviam a algo inerte. Ser exagerado naquele departamento não estava no seu feitio… E era por isso que o baixo o estava a sabotar, porque sabia que ele não estava concentrado naquilo que era suposto fazer naquele fim de tarde de um dia demasiado comprido.

Estavam na sala de espetáculos para os testes de som. O concerto seria no dia seguinte, naquele mesmo lugar e a banda fora convocada para os últimos preparativos, quando todo o equipamento e cenário estavam montados. Os técnicos afadigavam-se em redor deles e havia um caos de cabos e de aparelhagem empilhada, jorros luminosos e quentes dos projetores, clarões de luz dos monitores, uma cacofonia de sons proveniente da mesa de mistura do Joe e do teclado do Mike, um batuque descoordenado da bateria do Rob que cambiava de ritmo a cada cinco segundos, os berros do Chester a experimentar o microfone e a dar indicações ao técnico que ajustava os níveis dos decibéis. E por causa de tudo isso, cogitou, rendido ao seu mal-estar, por causa de tudo isso é que lhe doía a cabeça.

As sapatilhas vermelhas Converse All Star tornaram a surgir. Dave finalmente levantou os olhos e viu Brad a entender-lhe uma garrafa de plástico com água e dois comprimidos brancos na palma da mão aberta. Continuava com a guitarra pendurada nele. Amiga inseparável, num abraço que tanto era frio como era quente.

— Obrigado.

Atirou o par de comprimidos para a boca aberta, desenroscou a tampa da garrafa e bebeu um gole generoso do líquido fresco. O medicamento ainda levaria o seu tempo a fazer efeito e ele não estava em condições de esperar sozinho – assim julgava. Melhor, não lhe apetecia estar sozinho e miserável. E por que motivo tinha de se sentir daquela maneira, abandonado, irascível, contrariado?

— Ei, Brad.

— Hum?

O guitarrista já se preparava para se afastar, mas travou a passada.

— Diz, Phoenix…

— Gostaste do meu som?

— Mostra-me uns acordes… Há pouco não me soou mal.

Ele levantou-se, agarrou no braço do baixo com vigor. A seguir relaxou os músculos pressionou os dedos nas cordas. Lá e Mi. Simples. Básico. A palheta beliscou as mesmas cordas, pesada, preguiçosa.

— Isto não me parece bem…

— Há distorção. Pede ao Jakes que baixe o volume. Jakes!

— Espera, Delson! Não estou desafinado?

— Não, não estás. É só distorção. Queres ouvir pelos auscultadores?

Brad usava sempre uns enormes auscultadores durante os espetáculos. Podiam ter sido substituídos por auriculares mais pequenos, como usavam os outros, como ele usava, mas ele acabou por mantê-los e fazer destes uma imagem de marca. Mais discretos, mais berrantes, negros ou brilhantes, era acessório indispensável do guitarrista principal dos Linkin Park.

— Não preciso… Não quero – emendou Dave, depressa. – Quis escutar pelos altifalantes das colunas de som. Quis fazer uma coisa diferente e lixei-me.

— Lixaste-te? – Brad riu-se, sem perceber. Levantou um braço, estalou os dedos e chamou: – Ei, Jakes! Precisamos de ti aqui, connosco.

Feitos os ajustes necessários, o som continuava a soar-lhe mal. Mentiu para que o Jakes se fosse embora, mas o Brad desconfiou de que ele não estava a ser sincero. Pois que não estava mesmo a ser sincero. Com um berro mais prolongado de Chester, seguido de um urro triunfante, ele encolheu-se, estremecendo os ombros. Aquela reação não passou despercebida a Brad. Ele deu alguns passos em círculo, como se fosse casualmente, rodeando o baixista. Rasgou alguns acordes na guitarra, aumentando o ruído. O Jakes fez-lhe sinal de que estava tudo bem, com o polegar esticado para cima. Mexia na consola que controlava o som. Dave não reagiu de forma tão pronunciada daquela vez. Aliás, até pareceu ignorá-lo com o olhar fixo em nenhures, a mão direita mole sobre o corpo do baixo.

— Sentes-te melhor? – perguntou.

Dave encarou-o.

— Hum? Sim, sim… Acho que sim. A enxaqueca está a passar. Obrigado por me teres trazido as aspirinas.

— Estás bem? Pareces-me um pouco…

— Era da dor de cabeça – desculpou-se, quebrando o contacto visual.

— Pareces-me um pouco aborrecido. Não estás a pensar naquela merda que aconteceu ao almoço com o Joe, pois não? Já devias saber que as parvoíces do Joe não são para levar a sério.

— Claro que sei disso, Delson – replicou Dave, irritado. – E o Joe consegue atingir-me com as suas parvoíces?! Já somos meninos crescidos.

— Meninos crescidos… Pois. Acho que é esse o nosso problema.

Compreendendo, Dave arrebitou o lábio superior, numa espécie de esgar sorridente. A irritação avolumava-se. Era mais impertinência, a somar ao maldito cansaço. Aquele dia estava realmente a ser uma tortura de tão longo e ele já não aguentava mais. Só queria regressar ao hotel, fechar-se no seu quarto, às escuras, cobrir a cabeça com o travesseiro e dormir até que fossem chamá-lo, aos socos na porta, a julgar que tinha morrido naquela noite pois não dava sinal – era assim que ele queria dormir. Sem preocupações, abandonado e completamente prostrado até que o chamassem de novo na manhã seguinte. Sim, até que o chamassem, aflitos por julgarem que alguma coisa lhe tinha acontecido, ele que era sempre tão pontual, ele não aparecia e iriam atrás dele. Nunca tinham ido atrás dele, bem vistas as coisas. Ele é que sempre ali estivera, que os procurara, que os deixara e depois regressara.

— Sermos crescidos?

— Sermos meninos…

Passou a alça por cima da cabeça e foi pousar o instrumento musical no respetivo suporte. Sentou-se no chão do palco, dobrando as pernas como se fosse meditar, em posição de flor de lótus. Brad não se descartou da sua guitarra, continuava a apreciar a sua companhia e o seu peso, amiga inestimável da qual não se queria separar. Cruzou os braços, inclinou a cabeça, observou-o. Mike e Joe riam-se às gargalhadas e Chester pulava no mesmo lugar, pés juntos, a fazer um aquecimento desnecessário com uma corda imaginária. Mexia os braços, rodava os pulsos, na perfeita imitação desse exercício. Rob providenciava o ritmo aos pulos do vocalista.

— Estás chateado com alguma coisa – observou Brad, curioso. – Se não é o Joe…

— Estou cansado e a cabeça dói-me.

— Vais estar bem para amanhã?

— Tenho de estar, Delson. O Shinoda não vai admitir faltas. Nem quero vê-lo furioso com algum percalço. Ele está bastante ansioso pelo início dos espetáculos.

— Ele fica sempre ansioso com qualquer coisa… A banda do Shinoda.

— A banda do Shinoda – concordou Dave, triste.

Por fim, Brad sentou-se ao lado dele, aconchegando a guitarra no colo. Perscrutava-o com os olhos pequenos e afilados, em busca da falha, do defeito, do pecado. Ele sentiu-se um idiota, mas naquela fase não podia simplesmente disfarçar ou fingir. Acabava de ser denunciado. O seu rosto era demasiado sincero e nele conseguia-se ler toda a sua alma.

— Achas que ele alguma vez me perdoou?

— Do que é que estás a falar, Phoenix?

— Quando eu me fui embora… logo no início. Achas que o Mike alguma vez me perdoou? Sim, isso já foi esquecido… Aconteceu tanta coisa depois da minha saída! E muito mais depois do meu regresso. Mas perdoar e esquecer são duas ações distintas. Podemos esquecer e nunca perdoar. Ficar com o ressentimento guardado. Tu conheces o Mike melhor do que ninguém. O que é que achas? Achas que ele me perdoou?

— Por que é que estás a falar disso agora? Tens a certeza que as aspirinas estão a fazer efeito? Posso ir buscar-te algo mais forte.

— Ei, quero que me passe a enxaqueca, não quero apanhar uma overdose!

— Que porra estás aí a dizer, Phoenix? Eu não te daria nada que te fizesse mal. 

Deu-lhe uma cotovelada amigável.

Yeah, estou mesmo a sentir-me melhor. Sossega, companheiro… Estava a brincar contigo, meu. Mas sabes… Por vezes a melancolia também me chega, não é só ao Chester. E ponho-me a pensar. Olho para mim e fico com dúvidas. Incertezas. Inseguranças.

— Isso não é nada normal, vindo de ti… Tu és sempre tão seguro de tudo, Phoenix.

— Sou… Eu sei que sou. Algumas vezes, não muitas, é uma maneira que eu tenho de disfarçar as minhas fraquezas, hesito muito. Ninguém se apercebe…

— E agora lembraste-te de ser inseguro.

— Lembrei-me? Não é uma questão de me ter lembrado… É só que…

— O cansaço.

— Não sei, não sei – murmurou. – Estou a pensar nisso, é verdade.

— Se o Mike te perdoou por te teres ido embora?

Brad pousou-lhe a mão no joelho, deu-lhe uma palmada amigável. Abanou gentilmente a cabeça e disse-lhe:

— Somos uma banda. É normal que alguém se zangue ou que se vá embora. Acho que o Mike sempre soube disso, quando começámos com esta brincadeira. As pessoas podem ir embora, podem receber ofertas mais interessantes, encontrar projetos mais apelativos. Sei lá… Acho que é um milagre que nós os seis sejamos tão amigos, se queres que te diga. Há famílias mais pequenas que devem ter mais zangas e problemas do que nós. Quando te foste embora, no início da nossa carreira, não foi um acontecimento assim tão catastrófico, se queres que te diga…

— Isso não me está a fazer sentir melhor, Delson.

— Porque estávamos no início da carreira. A nossa cabeça andava a mil. Estávamos a arrancar com a banda, concertos, empresas discográficas, o primeiro clube de fã, as músicas, gravar o nosso material, as tretas com o dinheiro que era sempre pouco, as personalidades de cada um. Numa banda a começar, todos têm um ego demasiado grande e julgam que são demasiado bons para os outros. Eu é que presto, os outros são todos uma porcaria e estou a estragar-me aqui… Esse tipo de merdas. Então, quando saíste acabou por ser natural.

— Continuas a não me fazer sentir melhor, Delson!

— Mas… Mas! – cortou Brad animando-se, erguendo um dedo veemente no ar e ele calou-se. – Mas desde o primeiro dia que te foste embora, nós sentimos a tua falta, meu. A banda sentiu a tua falta. Eras tu que controlavas os ânimos, que desfazias as discussões e que acalmavas os temperamentos mais exaltados. Percebemos isso com a tua ausência… O Mike percebeu isso melhor do que ninguém. Sem ti, não foi capaz de dominar os acessos de mau génio do Joe, ou os amuos do Rob. Ou mesmo o meu pavio curto, que eu sei que me salta a tampa com demasiada facilidade. Imagina o Chester sem os teus conselhos! Era intratável… Nunca chegava a tempo e a horas para um compromisso, estava sempre a baldar-se e quando aparecia vinha naquele estado que nós bem sabemos… O outro tipo que tocou connosco durante esse período era bom, mas não tinha… como é que eu hei de dizer? Não tinha o teu carisma.

— Oh… carisma! – E Dave riu-se sem alegria.

— O Mike sentiu a tua falta. Principalmente sentiu falta da tua presença necessária para colar tudo quando parecia que a coisa toda se desagregava antes de termos tido um princípio digno desse nome. Se ele te perdoou? Acho que sim… Nunca foi dito explicitamente, isso é verdade, mas o que interessa uma frase eloquente e digna de filme? Um monólogo sobre faltas e sobre o incrível poder do perdão e essas tretas? O Mike falava muito em ti, nessa época, porque queria que voltasses. Lembro-me de uma conversa dessas, mais para o lamechas, numa bebedeira acidental de cervejas.

— Bebedeira acidental de cervejas?

— Sim. Começámos a beber e quando demos por ela já estávamos no modo confessionário… Era eu, o Mike e uns tipos de um grupo qualquer que tínhamos ido ver nessa noite. Uns rappers daqueles mesmo manhosos, bem ao estilo underground do Shinoda, gente que, entretanto, desapareceu de cena. – Espetou-lhe um dedo no ombro, junto à axila. – E agora para de fazer de coitadinho. De certeza que te lembras de como te implorámos várias vezes para voltares a tocar connosco!

Yeah, lembro-me – admitiu, a cabeça oscilando de um para outro lado. – Lembro-me como o Mike estava a ser um chato…

— Um chato que nunca te largava o pé. Ah, afinal lembras-te.

O sorriso débil indicou que a memória estava presente. Desvanecida, sem detalhes específicos, convenientemente truncada para aumentar a autopiedade. Ele percebeu que se enredava na própria armadilha.

— Um chato que nunca te esqueceu e que só descansou quando te teve outra vez no grupo. E tu voltaste, Phoenix, e desde então está tudo bem. Com o Mike e connosco. Sem ressentimentos.

— Por vezes é preciso ouvir essas coisas.

Brad soprou o ar pela boca.

— Não te ponhas com essas merdas, Dave. O Mike não pensa nisso. De certeza que não se põe a matutar em problemas que ele considera tão pequenos, porque no fim de contas nem são bem problemas. Aliás, ele tem outros problemas. Tem de cuidar deste circo enorme que são os Linkin Park e acho que lhe sobra pouco tempo para se pôr a pensar no passado. Ele está sempre com os olhos postos no futuro… O que é que vamos fazer a seguir? O que é que vamos tocar a seguir? Qual vai ser o nosso próximo som? O nosso próximo disco? O nosso próximo projeto?

— O Mike nunca se cansa, bolas…

— Alguém tem de usar o chicote e fazer os escravos remar no porão do navio. – Espevitou-se. – Ei, ei ei, Phoenix! Estamos no início da digressão, não podemos estar abatidos quando isto está a começar. Isso fica para o fim.

— E temos permissão para ficarmos abatidos? Mesmo no fim?

— O Mike não vai deixar, tens razão – afirmou Brad, a coçar a orelha esquerda. – Porque depois da digressão entramos no estúdio. E depois do estúdio iremos novamente para a estrada.

Dave riu-se, desta feita com alegria.

— Porra! Já me tinha esquecido que iremos regressar ao estúdio quando voltarmos a casa. Ele tem novas composições, ideias, canções. O Chazy também disse que tem andado a escrever umas coisas e pronto, lá se vão as nossas férias…

— Como vês, prepara o teu stock de aspirinas, porque se pensas em ter dores de cabeça e lamentares-te com coisas do antigamente, vais ter muitas oportunidades para isso.

— Estás a ser cínico, agora.

— E tu estás a ser um idiota!

— Ah! O Brad simpático, de repente, mostra as garras…

— Os amigos servem para isso. Para te dizerem a verdade. Se algum dia eu não o fizer, já sabes…

— Deixaste de ser meu amigo.

— Deixei de me importar. Basicamente.

— Basicamente deixaste de ser meu amigo – emendou Dave.

Brad olhou por cima do ombro. Mike e Joe estavam junto à mesa de mistura do último, a trocar impressões sobre alguns sons de efeito que seriam usados nas transições dos blocos musicais. Um bloco musical era constituído por canções debitadas de seguida, com a energia no máximo. No fim, impunha-se um descanso, especialmente para que os vocalistas se hidratassem e como introdução ao próximo bloco usavam-se transições que vinham beber a pedaços de outras canções, com alguns efeitos imaginados por Joe e também por Mike. Eram faixas remisturadas, com um pequeno twist que Mike adorava introduzir para dar um ar de novidade ao que sempre se tinha escutado, que Joe aproveitava para inovar, para alegria de Mike. Era sobre isso que debatiam de forma excitada e alegre. Tudo estava mais do que programado, mas nos testes de som e no ensaio que iria acontecer no dia seguinte, antes do espetáculo propriamente dito, havia sempre espaço para detetar a falha invisível, para melhorar o acorde mais discreto. As alterações eram depois comunicadas aos restantes membros do grupo, algumas vezes apenas a poucos minutos da entrada em palco.

Chester, por seu turno, cantava uma das canções que lhe puxavam mais pela voz. Os seus berros inundavam a grande sala como um maremoto quente de som. Brad girou o pescoço, espreitou do outro lado para vê-lo a agarrar-se fortemente ao microfone com ambas as mãos, o sangue a pintar-lhe as faces de vermelho. Depois mandaram-no parar e ele parou, endireitando as costas. Escutou algumas indicações pelo auricular.

As batidas de Rob, entretanto, tinham-se calado. Ele segurava as baquetas numa mão e olhava com uma expressão vazia para um dos técnicos que passava cabos debaixo do estrado onde estava a bateria. Aguardava.

Brad desabafou:

— Compreendo-te, companheiro. Percebo porque te dás à melancolia… Não é fácil pertencer ao grupo musical de Mike Shinoda e de Chester Bennington.

Esses dois, mesmo que diluídos naquele palco enorme e caótico, entre sombras e espaços esconsos, pejado de equipamento por arrumar, brilhavam por si só. Eram as estrelas da banda e mesmo que os dois nunca tivessem assumido particularmente o protagonismo – faziam-no para o exterior, pois eram sempre eles os solicitados para as conferências de imprensa e para as entrevistas, eram eles os compositores principais das canções – esse protagonismo existia e era aceite, pelo menos pelos restantes membros do grupo.

Dave concordou, rendendo-se, mais uma vez, à constatação dessa evidência:

— Pois não. Haveremos sempre de ser invisíveis.

— Estás a ter um ataque de invisibilidade, é o meu diagnóstico – analisou Brad num tom jocoso, fazendo-se passar por um físico competente a dar a sua análise final a um dos seus pacientes frequentes. – A enxaqueca, a tristeza descabida é tudo resultado desse ataque. A minha receita é muito simples, senhor Farrell. Isso passa com umas cervejas e uma jogatina. O que te apetece jogar esta noite? Vamos para o meu quarto… Tenho uns jogos novos que trouxe e que gostaria de experimentar na minha PS4.

— Jogos novos? Trouxeste a PS4? Apetece-me mais dormir.

Yep, jogos novos. Nunca saio sem a minha PS4… Como é que eu sobrevivo à pressão disto tudo, meu? O Joe também vai. E não vais nada dormir! Ficas com mais dor de cabeça. Quando se dorme demais, acabamos por lixar os miolos.

— O Joe está convidado?

— Se eu não convidasse o Joe, ele também me haveria de surpreender pela calada da noite e tirar-me uma fotografia daquelas que tirou ao Mike. Só que eu não seria o “boss”, seria um plebeu qualquer, um camponês que iria ser julgado em praça pública no centro da aldeia antes de ser pendurado no pelourinho… Alguma coisa assim ainda bem mais humilhante que a foto do Mike com aquele narigão cheio de pelos.

Dave soltou uma gargalhada.

— Acho que não há nada de mais humilhante do que aquela foto do Mike!

— Olha que não sei. O Joe tem o talento único de saber captar imagens surpreendentemente embaraçosas de qualquer um… Ele tem olho para a coisa feia.

— Então ainda bem que aconteceu com o Mike – considerou Dave tentando dizer aquilo sério, mas os lábios tremiam-se-lhe com o esforço de os manter numa linha reta. – O Mike sabe colocar o Joe na ordem. Se fosse outro qualquer…

— É como te digo. Se fosse outro qualquer era reduzido a pó pelo poder supremo do humor sarcástico do senhor Hahn.

— Estás a exagerar!

— Quero que te sintas bem.

Brad piscou o olho ao amigo.

— Esquece lá essas merdas do passado, meu. O Mike não guarda ressentimentos, como te disse. Diz sempre tudo o que é preciso dizer, depois passa-lhe o azedume. Sim, o Mike consegue ser mais bruto do que o Joe quando diz o que pensa… É pior que uma metralhadora num pelotão de fuzilamento. Mas depois sabes que a fúria se desvanece e ele até nem se apercebe de quem atingiu com as suas balas ácidas.

— Ih, estás a pintar um quadro terrível do Shinoda, Delson!

— Eu conheço-o há mais tempo do que vocês… O que eu tive de aturar do Mike, meu. Nem te passa pela cabeça! Era terrível, com aquela mania de que sabia tudo.

— Ele ainda tem essa mania, de que sabe tudo.

— Ele tem mesmo de saber tudo, está a liderar o circo.

— Pois é, tens razão. Ele é que carrega com isto tudo às costas. Então, agora, estarei a ser insensível e caprichoso.

— Estás a ser uma besta, mas eu não vou contar nada ao Mike.

— Estás a importar-te comigo e a ser meu amigo.

— Basicamente.

Dave respirou fundo e concordou com o cenário descrito.

— Nada de ressentimentos. Se o Mike não os tem…

— Nada de encheres a cabeça de merda. Concentra-te na música.

— Afirmativo, senhor Delson.

Passos pesados vibraram ocos pelo tabuado do palco, que oscilou ligeiramente debaixo deles. Partículas pequenas de pó ergueram-se em nuvens junto das sapatilhas que provocavam aquelas passadas vigorosas, anunciando uma chegada triunfante.

— Ei, Dave!!! – berrou Chester, a correr na direção deles. – O que é que se passa, companheiro? Já desististe?! E tu, Brad?!

Eles dobraram o pescoço e olharam cima.

— O teste está feito, Chaz – explicou Dave. – Amanhã, no ensaio geral, completo os eventuais buracos que o Shinoda apurar. Não vamos tocar assim tantas canções novas. Posso fazer o espetáculo de olhos fechados.

— Estão a conversar sobre o quê? Estão com cara de enterro. Quem morreu?

— O Phoenix está com uma enxaqueca.

— Ih… Isso é fodido no meio de um teste de som. Queres umas aspirinas?

— Já tomei, obrigado. Foi o Brad que mas trouxe…

— O Brad? Deves-lhe dinheiro ou quê, Delson? Normalmente não te dás a moço de recados.

As sobrancelhas do guitarrista arquearam-se na sua testa comprida.

— Desde quando não fiz um favor a alguém? Hoje de manhã, por exemplo, trouxe café ao Mike.

— Hum… Isso chama-se dar graxa, meu amigo. O que vais querer em troca?

— Oh, cala-te. Estás só a ser estúpido.

O vocalista sentou-se entre eles, abriu espaço com a ajuda dos joelhos que espetou entre os dois, enquanto cruzava as pernas. Colocou os braços sobre os ombros de cada um, apertou-lhes as clavículas. Estava cheio de vitalidade, de alegria, de aceleração.

— Isso é só porque gosto de ti. E também gosto de ti, Phoenix. São os dois os meus melhores amigos aqui. Não vou contar os vossos podres.

— Pfff, o que é que queres, Bennington? – estranhou Brad.

— Só quero participar no acampamento, amigos escuteiros. Estão aqui sentados a contar histórias de terror e a meterem medo um ao outro… Só falta a fogueira! Querem que vá buscar alguma lenha?

— Não sejas palerma…

— Eu sou sempre palerma, Delson!

— Estás preparado para o concerto?

— Estou, Phoenix. Amanhã treino um pouco mais, faço uns exercícios com a voz e tal. Continuo a dominar esta merda, sem problema… Ainda não fui atraiçoado pela minha garganta. Terei os cuidados habituais e pronto. E tu? Já não te dói a cabeça? Vê lá se as aspirinas do Delson foram suficientes. Porque eu também sou teu amigo.

— Sim, já não me dói a cabeça. E as aspirinas do Delson seriam iguais às tuas. Ou tens outras?

— Já me deixei disso, Phoenix, não me lixes…

Dave fez cara de caso, mas depressa descontraiu os músculos do rosto.

Chester recolheu os braços, colocou as mãos no espaço aberto entre as pernas.

— Hoje foi um dia cheio. Porra, estou cansado. Vocês, não?

— Também, Chaz – respondeu Brad cingindo a guitarra a si.

— Apetece-me um copo.

— Chaz, não vás por aí – avisou Dave, pousando a mão na perna de Chester. – Não precisas de copo nenhum. Já te deixaste das outras coisas, deixa-te disso também. Olha que o Mike…

— Não tenho medo do Mike – disparou Chester zangado. Depois moderou a irritação, abriu um sorriso deslumbrante, daqueles que o faziam adorável e perfeito, um homem sem qualquer pecado e completou, num humor translúcido: – Como posso ter medo do Mike depois da fotografia do Joe? Eu guardei aquilo no meu telemóvel, antes de ter sido apagada do grupo. Se a quiserem recuperar, é só falarem comigo… Terá um preço, obviamente. As coisas boas da vida nunca são de graça.

— Tu és um demónio! – criticou Brad, com um meio sorriso.

— Um demónio com voz de anjo. – Chester pestanejou, vestindo inocência.

— Um anjo com voz de demónio – corrigiu Dave “Phoenix” Farrell.


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Notas finais do capítulo

Próximo e ÚLTIMO capítulo (20 de julho):
Noite.



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