O Que Nos Pertence escrita por André Tornado


Capítulo 3
Tarde


Notas iniciais do capítulo

E estamos já no terceiro capítulo desta história que acontece aos dias 20 de cada mês.
Como será a tarde de um dia repleto de uma das maiores bandas musicais do mundo?



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— Não vais rebentar a comer tanto?!

— É por isso que está gordo…

Joe olhou para Brad e Dave como se eles tivessem falado numa língua estrangeira que ele desconhecia. Um dialeto tribal dos confins do planeta. Piscou os olhos, espremeu os lábios e o seu rosto redondo ficou tal qual o de um boneco oriental inexpressivo, moldado em fria porcelana. Encantador e ameaçador, em simultâneo.

Naquele segundo de hesitação tanto podia rir-se como atacar violentamente.

Ou não fazer nada.

O comentário ofensivo do baixista, indicando que estava acima do seu peso, não lhe causou qualquer mossa e Joe enfiou o resto do hambúrguer na boca, chupando os dedos gordurosos. Ou seja, não se incomodara e ficara-se pela terceira hipótese. Não fazer nada. Para quê? Ele queria era comer… e comer era uma ação sagrada e inadiável quando ele estava com fome.

Esfomeado seria um termo demasiado ligeiro para descrever o seu estado físico atual. Ele estava esganado, debilitado, esvaído. Mastigava de boca aberta a carne, o pão, os molhos, os pickles e ainda punha para dentro daquela caverna munida de dentes frenéticos batatas fritas, umas a seguir às outras, em sucessão rápida, misturando-as com o resto. Formava um bolo asqueroso de alimentos triturados tão espesso que dir-se-ia que estava a tentar engasgar-se. De algum modo conseguia engolir uma parte, aquela já devidamente desfeita e preparada, que se acumulava no fundo junto à goela, para poder continuar a abastecer aquele contentor voraz de mais matéria.

Dave torceu a boca numa careta enquanto observava-o, com uma atenção acima do normal, dir-se-ia. Joe olhava-o de frente, mas o baixista sabia que ele, na verdade, não o estava a ver. Os seus olhos opacos indicavam que o sentido da visão e outras funções corporais estavam em modo de poupança de energia para que toda a sua força anímica se concentrasse na mais do que vital e necessária função de nutrição. Era assustador observar Joe Hahn a comer quando ele precisava absolutamente de se alimentar.

Estavam numa pausa para o almoço, hora tardia, perto das três da tarde, mas os compromissos da manhã tinham-se prolongado mais do que o esperado e a Cammy estava a refazer os horários, adaptando-os ao implacável relógio que não cessava de contar os segundos e a escoar a vida – como cantavam eles na sua canção “In The End”. Uma observação sarcástica. O certo era que a sua agenda estava cheia naquele dia e no dia seguinte ainda seria pior. Mais valia não pensarem muito nisso. A Cammy estava tão irritada com as sucessivas alterações, adiamentos e remarcações que eles resolveram não puxar o assunto. Ela haveria de encaixar o que faltava nas horas seguintes, encontrar um novo cronograma satisfatório e eles obedeciam, contentes e solícitos. Teriam de lhe comprar uma prenda, algures, durante a digressão – o mais conveniente seria mais lá para o fim – em jeito de agradecimento pelo seu incontestável profissionalismo, desde que não parecesse condescendente, ou uma forma trapalhona de lhe dar uma compensação fora do esquema que soasse a mesquinhez. Com a Cammy era sempre preciso ter muito cuidado, pois ela explodia com facilidade.

Eles, por seu turno, estavam mais do que habituados à exigência esmagadora de uma digressão. Sempre que se metiam na estrada, contudo, agiam como se fosse a primeira vez e gostavam de se espantar, para que a alegria nunca os abandonasse. Música sem alegria era como um corpo sem alma. Fazia parte da loucura almoçar às três da tarde. Ninguém se queixava. E porque a Cammy não admitiria uma crítica ou uma observação. Haveria de lhes gritar, apontando para o relógio digital do seu smartphone que ela não mandava no tempo e não tinha a capacidade de fazer recuar as horas! Ninguém queria escutar os gritos da Cammy. Eram realmente tão potentes quanto os do Chester.

Rob sorveu um pouco de refrigerante pela palhinha colorida que lhe ornamentava o copo de tamanho XL. Tinha deitado, segundos antes, uma olhadela a Brad e a Dave, mas foi ao Joe que se dirigiu:

— Ei, companheiro… não precisas de provar nada. Vai comendo e deixa-os falar.

Joe encolheu os ombros, como sinal de que, mesmo a devorar imparável os hambúrgueres que se empilhavam no tabuleiro, conseguia aperceber-se de alguns estímulos ao seu redor. Ou pelo menos aqueles que lhe interessavam. Dave movimentou as sobrancelhas, mais curioso com a atitude defensora do baterista, do que propriamente com a indiferença do outro. 

— Estás a sancionar o que ele está a fazer…

— O que ele está a fazer… O que ele está a fazer? Não compreendo, amigo. O Joe está a comer, como nós todos – explicou Rob calmamente.

— Embora ninguém se esteja a portar como ele…

— O Joe está com fome.

— Todos estamos com fome!

Por alguns segundos, Joe parou de mastigar. As suas bochechas reluziram de tão cheias. As suas pálpebras abriram-se um nadinha para que fosse inequívoco que estava a fixar as suas pupilas dilatadas no baixista, estimulando-o a continuar com a sua observação. O seu lábio superior arrepanhou-se, subindo ligeiramente para cima, o lado esquerdo, numa espécie de sorriso trocista. Ele queria estar a comer de um modo alarve para deixar todos incomodados, não apenas o senhor bem-educado David Farrell. O mais cómico de tudo aquilo é que se o Brad, aparentemente, se tinha colocado ao lado do Dave, o Rob parecia estar a querer encetar uma tímida cruzada para defendê-lo e em breve teriam também a inclusão no debate do peso pesado do grupo, aquele cujas palavras eram lei, Michael Kenji Shinoda. Aí sim, valeria a pena assistir ao desenrolar da competição.

De qualquer modo, ele estava-se borrifando para o que o Dave pensava, ou mesmo o que Mike pudesse acrescentar. Nada o podia afetar durante a comezaina e retomou o ato feroz de mastigar. Ele precisava de ingerir todas aquelas calorias para continuar a funcionar durante o resto do dia, principalmente para estar em condições para fazer a sua parte no teste de som do fim da tarde. E ainda teria de lanchar ou acontecia ele enganar-se nas transições… Já tinha acontecido, algumas vezes, e até em pleno espetáculo! Era confrangedor. Ao lhe perguntarem o que se tinha passado depois desses lapsos, Joe dizia, com um aspeto desolado, de que estava com fome. Era uma desculpa idiota, mas no caso dele resultava sempre bem.

Dave regressou à carga, depois de se hidratar com um pouco de sumo de laranja natural. Adotou um tom falsamente conciliador.

— É tarde demais para o almoço, admito…

— Nós, os americanos, somos conhecidos por comermos a qualquer hora e por não sermos muito normais a comer – observou Brad. Dave olhou-o como se ele tivesse acabado de o insultar, boquiaberto e espantado. Julgava que o tinha do seu lado, afinal não seria bem assim e ele podia traí-lo ao menor sinal de derrota. O guitarrista não se apercebeu da gravidade da sua declaração e indagou: – O que foi? Disse alguma asneira? Para onde vamos, somos conhecidos por não termos refeições fixas e sermos…

— Delson, estás a destruir o meu argumento!

— Se estamos a comer a esta hora, é porque não conseguimos sentarmo-nos à mesa a uma hora mais decente. Somos pessoas bastante ocupadas! – comentou Rob na sua postura pacifista. Não sublinhava qualquer palavra, mantendo-se num tom absolutamente neutro.

Se havia alguém calmo naquele grupo de doidos, era aquele baterista. O mundo podia tombar lá fora, estrebuchando em grande catástrofe sonora, numa tragédia inominável, abrindo abismos profundos, que Robert Bourdon agiria sempre com calma, graça e consciência. Era admirável, quando não se tornava irritante por contrariar o espírito global. Ou, mais precisamente, a mensagem que precisava ser passada e apreendida.

Dave agitou a mão esquerda, com impaciência.

— Mas esse facto, ou qualquer um dos factos lançados recentemente, como sermos americanos, não termos horários para comer e não termos podido comer mais cedo, não nos transforma em seres irracionais. Estamos todos com fome, verdade, porque passa da nossa hora de comer, mas não é necessário que fucemos nos nossos respetivos pratos. Existe uma certa exigência de… de decoro precisamente por sermos quem somos. Temos os olhos do mundo postos em cima de nós.

— Decoro? Traduz, por favor – pediu Rob.

— Decência – corrigiu Dave com um certo cansaço.

— Decência – repetiu Rob.

— Por seres irracionais… referes-te a animais, certo? – disse Brad, genuinamente sério. – Estás a dizer que o Joe está a comer como um animal.

— Ui, essa foi forte, Phoenix! – exclamou Rob, também genuinamente sério. – Tens algum animal em mente?

— Querem que eu explicite?

— Explicite… Explicite? O que queres dizer com essa agora? Estás a falar assim para te destacares, Phoenix?

— Assim, como?! – exclamou o baixista. – Eu sempre falei assim! Porra! E o que é que se passa contigo, Bourdon? Eu não me estou a destacar. Estás a embirrar comigo.

— Amor com amor se paga… – murmurou Brad escondendo um sorriso com as costas da mão que segurava o garfo. Tinha as pernas cruzadas e pousava o prato, cheio de massa colorida polvilhada de queijo no joelho ossudo.

— Falas assim, com essas palavras caras – esclareceu Rob, espantado com a reação de Dave.

— Ah, eu não uso… Eu uso palavras caras, Delson?

— Diz lá o que é ‘explicite’. Senão vais ficar mesmo com a fama de usares palavras caras… mesmo que não as uses – disse Brad.

Dave respirou fundo. Completou, contrariado:

— Está bem, está bem… Querem que eu seja mais claro?

— Sim, pode ser – pediu Rob. – Que animal estás a dizer que vês no Joe?

— Só pode ser um porco – respondeu Brad desfazendo a cara num sorriso travesso. Estava a apreciar a troca de galhardetes entre o baterista e o baixista. Sem dúvida era quem estava realmente a aproveitar o momento. Dave estava a levar aquilo demasiado a peito e Rob estava a armar-se em defensor quando ninguém lhe tinha encomendado a tarefa.

— Um porco…

— Quiseste que eu explicitasse… que eu fosse mais claro. Portanto, só me faz lembrar um porco.

— Já viste um porco a comer?

— Por acaso, já vi.

— Onde? Num programa de televisão não conta.

— Uma vez levei a minha filha a uma quinta pedagógica e estavam a alimentar os animais.

— Entre esses, o porco.

— Sim, os porcos.

— Com hambúrgueres?

Dave empertigou-se, indignado com a graçola. Os seus ombros ficaram tensos.

— Claro que não! Desde quando se dá hambúrgueres a porcos? Eles têm as suas rações.

— Então nunca viste um porco, efetivamente, a comer hambúrgueres.

— Um porco… animal?

— Então como consegues visualizar o Joe como um porco… se ele está a comer hambúrgueres?

— É a forma como ele… Espera lá! Estás mesmo a implicar comigo!

Num movimento suave, como se estivesse a cavalgar uma onda nos seus momentos de liberdade proporcionados pela prática do surf, desporto que Rob adorava e que o ajudava a escapar-se da exigência profissional de pertencer a uma das bandas de música mais famosas do mundo, descendo essa onda e virando subtilmente de direção para continuar a aproveitar a energia da massa de água, mudou o rumo da conversa e disse:

— O mais engraçado é que parece que o alvo da tua lição não está a ligar nenhuma às tuas preocupações. Nem sequer quando o chamas de porco com todas as letras. É por isso que estás a insistir tanto? Para veres se a tua mensagem passa?

— Ei, o porco veio à baila porque tu quiseste que eu fosse mais claro. E depois vieste com essa ideia disparatada de que os porcos comem hambúrgueres. Eu estou a insistir? – perguntou Dave a Brad, girando o pescoço rapidamente.

— Parece-me que sim.

Dave respirou fundo uma segunda vez. Precisava de ser mais inteligente. Apercebeu-se de que estava a enredar-se na armadilha de Brad e de Rob. Que ele se lembrasse, fora o Delson que puxara a questão ao apontar como Joe comia demasiado. E agora o Rob fechava o cerco levando-o a ser insultuoso, aparentemente sem nenhum propósito a não ser pela simples ofensa. Humedeceu os lábios e tentou um tom mais empático:

— E se ele se engasga? Não podemos ficar sem o Joe para o espetáculo de amanhã.

As sobrancelhas de Brad subiram-lhe na testa.

— O Joe pode engasgar-se? Nunca o vi engasgado – comentou, olhando ora para o baixista, ora para o DJ.

— O Joe está habituado a comer assim – considerou Rob, após uma curta pausa em que analisava aquele novo argumento. – Não é a primeira vez que ele engole hambúrgueres praticamente inteiros, aos pares de cada vez. Lembram-se daquela vez, no Arizona? Ou terá sido no Novo México? Onde foi que nos fizeram aquele desafio de comermos duas toneladas de carne…?

— E só o Joe é que o aceitou – lembrou-se Brad, sem fazer um grande esforço de memória. Se havia alguém que se lembrava de tudo, era o guitarrista. – Foi em Nova Jérsia. O desafio aconteceu por causa de um qualquer patrocínio estúpido inventado pelo Andy… O que vale é que temos connosco o Joe que nunca se corta quando se trata de comer, senão o Andy haveria de ficar mesmo muito chateado connosco. Esse nosso agente inventa demasiado quando se trata de nos promover…

Disse aquela última frase num murmúrio, mais como uma observação de si para si. Mike levantou os olhos do seu prato, um prato muito bem arranjado, com um pouco de cada iguaria que estava à disposição deles numa mesa comprida onde eles se podiam servir, estilo buffet. A palavra mais correta para o prato de Mike seria arrumado. A comida no prato de Mike estava perfeitamente organizada e ele não misturava nenhum pedaço com outro, nem sequer os molhos se envolviam numa papa indistinta. E tinha sempre o preceito de começar pelas entradas frias, depois é que se servia dos pratos quentes, por fim vinha a fruta e só de vez em quando atacava as sobremesas.

Rob ficou à espera que Mike entrasse na conversa, numa expetativa quase masoquista. Porque quando Mike falava era mesmo para obedecer. Mas Mike limitou-se a espetar o garfo numa torta folhada guarnecida com uma pasta de peixe.

— Deixem o Joe comer em paz – pediu Rob levantando-se para abastecer novamente o seu prato de umas fatias de carne assada que ele já tinha repetido. – Sabem como é perturbador quando nos quebram a concentração quando estamos a saborear uma refeição que nos está a deixar satisfeitos? Se implicassem comigo quando estivesse a comer marshmallows assados numa fogueira, era capaz de esmurrar alguém.

Brad assobiou.

— Essa é a tua comida favorita, de todos os tempos?

— Podes crer!

— Um homem do teu tamanho não pode gostar assim tanto de marshmallows assados numa fogueira.

— Queres apostar? – Rob piscou-lhe o olho e Brad levantou-se, atrás dele.

— A carne está assim de boa? Já te vi comer três vezes a mesma coisa…

— Está deliciosa! Ainda não comeste? Melhor que os hambúrgueres do Joe.

— Ui, o Joe sabe disso?

Joe resmungou, encolhendo outra vez os ombros. Agarrou no frasco de ketchup e espalhou uma mancha generosa desse molho sobre o segundo monte de batatas fritas. Dave deu um estalo com a língua.

— Meu, de toda a comida que nos colocaram à disposição, essa é a que tem menos graça. Hambúrgueres e batatas fritas… Pfff! Onde está o teu arrojo? Prova a carne do Rob, os canapés gourmet do Mike, a massa do Brad. Olha para mim! Estou a comer uma combinação de fruta, queijo e presunto que está uma maravilha. Depois já irei experimentar as massas, que me parecem ótimas também.

— Humpf! – desdenhou Joe – Tu e o Mike é que gostam de experimentar essas comidas bonitas que mal se conseguem saborear por serem tão pequenas, todas tão compostinhas que até dá medo de desmanchar. Esse tipo de comida costuma dar dor de barriga. Já te vi de caganeira por causa desses arrojos

— Isso não é verdade – defendeu-se Dave abanando uma mão, um gesto que varria o que o DJ estava a afirmar, supostamente.

Joe abriu os olhos.

— Como? Ah… Agora sou mentiroso…

— Não é isso, Joe. Não me lembro de que isso me tenha acontecido…

— Ah, não te lembras? Pois eu tenho uma excelente memória – indicou Joe com um dedo a calcar na têmpora. – E essa excelente memória diz-me que já te vi a borrares-te todo pelos cantos porque resolveste comer o que os olhos acharam bonito e que as tuas tripas americanas e nada arrojadas acabaram por rejeitar. – E depois de atirar essa farpa envenenada, riu-se.

— E o Mike?

— E o Mike também! Ele é que nunca conta nada e gosta de cagar em segredo. Aliás, acho que o Shinoda nunca caga, para não estragar a sua lenda. As lendas não têm necessidades fisiológicas. Não cagam, não mijam… acho que até nem criam cera nos ouvidos! E outras merdas que os corpos normais produzem.

Dave olhou para Mike que avisava, fazendo uma careta de indignação:

— Rapazes! Estão a passar das marcas. Moderem o tema, ou simplesmente mudem-no. Estamos a comer. Isso é lá assunto para se ter à mesa. Começo a concordar com o Dave de que estamos a perder as maneiras e a portarmo-nos como animais.

— O Mike tem razão – concordou Dave. – Muda a conversa, Joe.

— Como sempre – resmungou Joe. – O Mike tem sempre razão…

— Muito bem, voltando à comida…

— Estamos conversados! – rugiu Joe inclinando-se para a frente, segurando um hambúrguer com as mãos luzidias. – O que é isso, Phoenix? Até parece que não me conheces… Nunca me viste a comer essas amostras de comida que esses cozinheiros mariconços inventam para nos agradar, já que somos uns tipos famosos de uma qualquer banda rock que eles nem sequer conhecem, nem nunca ouviram falar. Nem sequer conhecem uma música nossa que seja. Podem beijar-me o cú com essa bajulação foleira!

Mike fixou-lhe um olhar intenso, mas o DJ limitou-se a encolher os ombros. Passou a língua pelos lábios e ia para morder a monumental sandes, mas lembrou-se que podia ser ainda mais acintoso:

— A seguir vou empanturrar-me com as pizas. Não estão ali por minha causa? Vou provar todas! São minhas. Acho que pedi as pizas à Cammy. Ou ela é uma querida e lembrou-se das minhas necessidades alimentares. Ela é melhor do que os meus amigos que me chateiam os cornos por causa daquilo que eu como ou deixo de comer. Ela é mesmo uma querida.

— Não é por causa do que tu comes que eu te estou a chatear os cornos! – zangou-se Dave, o sangue a subir-lhe ao rosto.

— Se eu não me alimento como deve de ser – queixou-se Joe fingindo um ar miserável, ignorando a irritação de Dave –, não funciono. Não vou conseguir funcionar… E como vai ser no teste de som desta tarde? Quem vai girar os meus pratos e apertar os meus botões? Quem vai fazer a introdução perfeita às canções e quem vai dominar nos interlúdios para o Bennington ir refrescar-se? Ninguém! Ouviste-me? Se não for eu, ninguém será. Ninguém mexe no meu equipamento! Nem o Mike, que eu sei que estás aí a pensar em fazer essa sugestão.

Dave apertou os lábios, as suas narinas dilataram-se. Joe fez um gesto com o braço esquerdo a cortar o ar, indicando que estavam conversados. As costas de Shinoda endireitaram-se. Ele não estava preocupado, contudo. O brilho dissimulado no olhar indicava que ele estava a divertir-se.

— Não te estou a chatear os cornos por causa daquilo que tu comes – insistiu Dave. – Estás demasiado gordo, meu. É um aviso legítimo, porque é algo que toda a gente pode observar. Estás gordo! É um facto. Estás gordo. E esse estado físico pode acarretar doenças e problemas muito sérios. Obesidade, colesterol, diabetes, baixa autoestima…

— Ah! – exclamou Mike alto o suficiente para que Joe o espreitasse enquanto dava uma segunda dentada gigantesca no hambúrguer. – Finalmente sabemos a que se devem os insultos gratuitos.

— Gratuitos?! – indignou-se o baixista.

— O Dave está a dar-te um conselho amigo, Joe. Ele está a zelar pela tua saúde.

O coreano mostrou-lhe o dedo do meio. Ao Mike e não ao Dave. Mike apontou com o garfo e disse-lhe, quase zangado:

— Ei, não sou eu que tenho estado a atacar-te.

Quase, porque não havia ali matéria suficiente para criar uma animosidade, nem sequer um ligeiro atrito. Estavam a picar-se, mas não iam demasiado fundo para não fazer sangue. Só ficava a marca na pele, à superfície, que haveria de se desvanecer antes de constituir uma prova do crime.

— E a história da fotografia não está esquecida!

Aquela ferroadela foi mais ácida. Joe remexeu-se na cadeira e riu-se, de boca cheia de comida.

— Vinga-te e tira-me uma foto igual. A legenda pode ser “boss 2”. Eu não me importo.

— Não te importas de ser fotografado a dormir, com um grande plano manhoso do teu nariz?

— Não me importo de ser o segundo boss. O teu lugar de primeiro boss ninguém to tira. Acho que isso será impossível, mesmo depois de um golpe de estado.

— Oh… um golpe de estado…

Brad sentou-se ao lado de Dave, com um prato bem recheado de panados de diversos feitios. No caminho tinha-se separado de Rob e desistido das carnes que deliciavam o palato do baterista ao deparar-se com aquelas maravilhas douradas. Seria peixe, carne, legumes, tudo embrulhado no mesmo polme apetitoso de ovo, farinha e pão ralado devidamente frito e estaladiço. Rob também se sentou, mas longe deles.

— Desiste – pediu o guitarrista, agarrando num pedaço redondo que enfiou na boca. – Já perdeste essa guerra.

— Uma guerra que tu começaste, Delson, ao dizeres que ele iria rebentar a comer tanto – disse o baixista ressentido, de olhos fixos no garfo que usava para empurrar os bagos de uva uns contra os outros.

— E tu mordeste o isco que nem um peixinho ingénuo – riu-se Rob.

— Acho graça que ninguém se mete com o que o Bennington não come— resmungou Joe. – Se eu estou gordo, então aquele está quase a desaparecer. Nunca vos vi a apontar como ele está magro e como isso também faz mal à saúde. Quais são as doenças por sermos demasiado magros, Phoenix?

Mike voltou a cabeça para o vocalista que se sentava muito calado e quieto num banco alto, com o prato sobre as pernas, a mexer no telemóvel.

— Estás a comer, Chester?

— Hum-hum – respondeu ele sem tirar os olhos do aparelho.

O prato estava cheio e com sinal de não ter sido tocado. Os dentes do garfo roçavam a comida, talher suspenso da mão direita. Ele estava mais ocupado com o que lia e digitava no telemóvel com o polegar da mão esquerda. Tinha pintado as unhas de preto, entretanto.

— Tens de comer, Chester.

— Eu sei.

— Não queres fazer uma pausa?

— Estou a fazer a pausa, Mike… como vocês…

— A pausa é para comer. Larga o telemóvel.

— Sim, já vai.

— Quais são as doenças por sermos magros? – insistiu Joe. – Bulimia, anorexia…

— Isso são distúrbios alimentares – esclareceu Dave.

— Ah, já sei. Cai-nos o cabelo!

— O Chaz ainda tem cabelo.

— Agora estão a voltar as baterias para o Bennington? – perguntou Rob.

— Ele não liga, podem falar dele à vontade. Está mais interessado no namoro à distância com o telemóvel. Nem vos está a escutar – observou Brad mastigando de boca aberta. – Hum, isto aqui está muito bom, sabiam? Já foste provar, Phoenix? Ou estás em dieta e só vais ficar pelas frutas e pelas massas, como o Shinoda?

Mike foi até à enorme mesa onde se dispunha a refeição volante que tinham colocado à disposição deles. Havia comida para todos os gostos – até confeções típicas do lugar onde estavam, cortesia dos promotores que os tinham contratado e que queriam agradá-los com novidades gastronómicas, mimos que não iriam encontrar em mais lado nenhum, esse era o anúncio pomposo.

— Eu não fico só pelas massas! – exclamou Mike a sorrir, de costas para os companheiros. – Ao contrário de certas pessoas… eu como de tudo.

Joe desmanchou-se numa sonora gargalhada artificial, espirrando pedaços de batata frita mastigada. Abanando a cabeça, finalmente a desistir, Dave puxou outro banco alto e foi sentar-se ao lado de Chester, que prosseguia na sua atividade frenética no telemóvel. Tinha mesmo perdido aquela guerra e o Brad, que fora quem realmente começara o debate, deliciava-se com os seus panados, alheado de qualquer culpa ou de qualquer responsabilidade. Estava tudo bem para ele. Rob tocou-lhe no braço e perguntou-lhe onde fora buscar o que estava a comer. Brad apontou para a mesa e disse-lhe que iria repetir. Levantaram-se os dois e juntaram-se a Mike.

Para além dos membros da banda, também estavam naquela sala que o hotel lhes tinha disponibilizado os restantes elementos da comitiva, distribuindo-se pelo espaço em pequenos grupos, que partilhavam qualquer coisa entre eles, nomeadamente a atividade profissional. Eletricistas com eletricistas, técnicos de som com técnicos de som, administrativos com administrativos, gestores com gestores, seguranças com seguranças, músicos com músicos. Isso não acontecia por qualquer imposição para que não existissem misturas, acontecia simplesmente cada um juntar-se àqueles com quem se sentiam mais à vontade e com quem partilhavam os problemas diários de uma digressão mundial de um famoso grupo musical.

O facto incontornável era de que estavam todos famintos e não se punham a pensar em definições ou convenções. As horas eram preciosas e naquela hora deveriam nutrir os corpos e retemperar energias. Comiam em paz porque não havia mais ninguém na sala que lhes era exclusiva – nem sequer ficava no mesmo piso que o restaurante do hotel, mas sim numa zona destinada a conferências e outras reuniões do género. Empregados impecavelmente fardados prestavam todo o apoio necessário, renovando as bandejas que se esvaziavam, ajudando a servir os pratos quando tal ajuda era solicitada. Um chefe de mesa coordenava tudo e assegurava-se de que o repasto corria de acordo com os elevados padrões de qualidade daquela unidade hoteleira, que estava acostumada a receber hóspedes ilustres.

Rob e Brad atracaram à zona onde estavam os célebres panados. O guitarrista ia apontando o que já tinha provado, o baterista provava também e retirava uma segunda porção para o prato que se ia enchendo de nacos amarelos. Mike passou por eles e disse-lhes que nesse ritmo iriam ter dois gordos na banda. Rob pestanejou, confuso com a observação.

— Eu é que não sou – disse Brad. – Continuo elegante.

— Magro é o termo correto. Magro como o Chaz! – acrescentou Mike.

— Mais magro do que o Chaz – completou Rob. Passou uma mão pela barriga, com um certo ar de culpa. – Sim, acho que preciso de ter mais cuidado. Estou a acumular umas gordurinhas. Estou a ficar mais mole e pesado… Posso começar amanhã a fazer uma dieta? Hoje a mesa tem demasiadas tentações. Não vou conseguir resistir.

— Começa a dieta depois da digressão. Já sabes como nunca vamos ter horários decentes para comer, nem comidas muito saudáveis. Estão sempre a fazer-nos agrados. Provas de aperitivos, provas de bebidas, provas de isto e provas daquilo. E mais a comida de casa que o Joe tanto gosta… Hambúrgueres, pizas, batidos, bolachas e gelados. Comida para desenjoar de tanta coisa extravagante. Não é, Mike?

— Sim – concordou Mike com Brad. – Começa a dieta depois da digressão. Os panados que aí tens não são extravagantes, companheiro.

— Gosto de ser conservador, depois de ser ousado.

— Diplomata.

— O diplomata és tu, Mike.

— Cauteloso.

— Talvez… Cauteloso, sim. Estive antes a comer aquela salada de folhas diferentes. Havia umas bem amargas!

— Tu, a comer salada?

— O quê, Mike… Também gosto de saladas!

— Salada é uma excelente opção se não quiseres perder a linha.

— Eu já perdi a linha! – esclareceu Rob sorrindo. – E mais a mais, preciso de força nos braços ou as vossas guitarras deixam de ter ritmo. Passam a ser apenas barulho, sem o pulsar do coração.

— Convencido!

— Bastante, Mike. – Brad apoiou-se no ombro do japonês. – Nunca julguei ouvir o Bourdon a demarcar o seu lugar na banda. Sempre a surpreender, hum? Desde quando o teu posto esteve em causa?

— Se estiver demasiado gordo…

— O Joe está gordo e não o pomos a andar.

— Ah! Pois, pois claro! – exclamou Rob julgando perceber. Estalou os dedos. – Os gordos ficam na parte de trás do palco, nas sombras, para não estragar o enquadramento bonito proporcionado por vocês os quatro. Dois esqueletos ambulantes, um ruivo sensual que é um atleta e o bonitão que é o dono da banda.

— Os Linkin Park não me pertencem há muito tempo, Rob – respondeu Mike e deu meia volta.

Brad e Rob trocaram um olhar, como que a comunicar entre si que o Mike podia lançar esse tipo de afirmação, mas a verdade era apenas uma e irrefutável: os Linkin Park pertenciam-lhe e continuariam a pertencer-lhe. Ele era o motor que fazia funcionar toda a máquina. Sem ele, nada se iniciava. A viagem nunca acontecia. A magia jamais seria conjurada. A música não existiria. E era dele também a palavra final.

Sem ressentimentos, sem melindres, sem ofensas, porém.

Mike postou-se junto a Chester e a Dave. O primeiro tinha largado, finalmente, o telemóvel. Sentiu o cheiro ácido do verniz das unhas recentemente pintadas. Ficou de pé, junto dos dois bancos altos. Passou o peso de uma perna para a outra.

— Ele está a comer? – perguntou a Dave.

— Afirmativo.

Chester semicerrou os olhos por detrás dos óculos graduados. Naquela ocasião tinha descartado as lentes de contacto. Pestanejou e franziu os lábios, espetando o garfo numa enorme porção de massa embebida num espesso molho de tomate.

— Sim, papá. Estou a comer.

— Hum… Não te quero apático no teste de som desta tarde.

— Sim, senhor general!

Chester bateu uma continência atabalhoada. Voltou-se para Dave:

— Já alguma vez me viste apático num teste de som ou em qualquer outro lugar, Phoenix?

— Não, senhor – respondeu Dave.

— Porque nunca aconteceu. Mike, estás bem? Sentes-te bem?

— Perfeitamente… porquê?

— Só para me assegurar. Pareceu-me que tens a vista turva…

— Chester…

— Acho que vou experimentar os panados do Brad. – Saltou do banco, pousou o prato numa mesa próxima, lançou um braço ao alto. – Brad, companheiro! Ajuda-me também com esses panados, meu! Está a nascer-me água na boca só de olhar para ti e isso nunca é bom sinal, porque tu não tens nada de interessante. – Passou pela mesa de Joe e agarrou numa garrafa de vidro de coca-cola, desenho clássico. Bebeu dois goles enormes.

Rob e Brad rodearam-no e encaminharam-no para a travessa certa. Brad deu-lhe um encosto e disse-lhe que era interessante todos os dias, que era ele que tinha a vista turva, não o Shinoda. Chester desdobrou-se numa sonora gargalhada.

— Quanto à fotografia do Joe…

— Esse assunto está arrumado, Dave – sentenciou Mike num tom duro e seco.

— Certo… Não quero mais polémicas neste almoço…

A voz da Cammy encheu a sala:

— Trinta minutos, minhas senhoras e meus senhores! Daqui a cinquenta minutos encontro no átrio do hotel. Sim, sobretudo vocês. Quero a banda comigo! Temos um novo agendamento e novidades quanto ao teste de som. Mike, ficas encarregado de reunir as tuas tropas.

Mike e Dave entreolharam-se. Rob, Chester e Brad não pararam de conversar sobre os panados, nem Joe parou de chupar os dedos que escorriam molho do último hambúrguer.


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Notas finais do capítulo

Para fazer justiça ao Joe Hahn, Joseph de seu nome, Mr. Hahn como apelido de guerra, ele está bastante elegante e irreconhecível de tão magro, nos dias que correm. Mas a sua figura, que todos os fãs dos LP aprenderam a conhecer e a ver num palco, era assim para o anafado e ele sempre demonstrou que gostava bastante de comer.

Nem no almoço o ritmo das provocações abranda...
Continuam todos amigos, companheiros e irmãos, no fim de tudo.

Próximo capítulo (20 de junho):
Ocaso.



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