O Que Nos Pertence escrita por André Tornado


Capítulo 5
Noite


Notas iniciais do capítulo

No dia 20 de julho de 2017 o mundo conhecia a notícia do desaparecimento de Chester Bennington, vocalista dos Linkin Park.
A sua voz, o seu talento, as suas canções, a sua personalidade e até a sua luta constante contra os seus demónios pessoais inspiraram milhões.
No fim, importou - sempre importa. E continua a importar.
Chester jamais será esquecido.
Descansa em paz, lenda!
Rest in peace, legend!

Quinto e último capítulo desta história que foi dedicada ao Chester do primeiro ao último capítulo - em que se pretendeu narrar um dia na vida dos Linkin Park.

Muito obrigado por me terem acompanhado até aqui.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/775935/chapter/5

Encostava um ombro à parede do corredor e conferia o seu telemóvel. Era um viciado naquele aparelho, admitia-o. Ligava-o ao mundo e principalmente, distraía-o. Deixava-o ocupado e ele precisava de se manter sempre ocupado. Se existisse um momento de silêncio, as sombras insinuavam-se e preencheriam os hiatos. Tinha de ter cuidado para não se deixar dominar pelo silêncio. Era um dos seus grandes inimigos.

Escutava as gargalhadas vindas dos quartos que tinham as portas entreabertas ou até escancaradas, em flutuações quentes. Percebia o riso como calor. Outra necessidade sua. Algo morno e sonoro.

Algures num dos quartos o Brad jogava com o Joe e ele conseguia escutar também as imprecações e os urros do coreano sempre que vencia qualquer coisa ao guitarrista. O Dave estava com eles, de vez em quando gritava de alegria.

O Rob não dormia ali, tinha ficado com um quarto no outro corredor. Ele ocupava o quarto ao lado daquele do baterista, ou seja, seria um intruso naquela ala. Ele sabia-o, mas mantinha-se firme na sua posição. Estava determinado em estar naquele lugar. E quando ele se determinava, ninguém o fazia desistir do seu propósito. Quando não lhe arrasavam as fundações desse objetivo e ele, antes de se desmoronar, atacava com toda a sua furiosa indignação.

Gente passava por ali e que o cumprimentava. Ele devolvia a saudação automaticamente, sem ver quem seria, sem largar o telemóvel, que usava naquele momento para conversar com a mulher sobre como tinha sido o dia dele, para saber como iria ser o dia dela – a diferença horária colocava-os desfasados nas suas tarefas quotidianas – como estavam os miúdos, queixas, indicações, declarações curtas de amor com muitos emojis com corações e beijos e tudo o que se utilizava entre apaixonados delambidos.

Sim, ele era um apaixonado delambido e não se importava de o ser. O amor salvava-o todos os dias. Todos os minutos, para ser exato. Precisava de se afadigar e de amar para calar o que era negativo na sua vida, que era praticamente tudo. Ele não era capaz, para ser sincero, de encontrar satisfação naquilo que o rodeava. Nunca era inteiramente feliz. Sabia mostrar-se agradecido, encantado, amoroso, humilde, atencioso, mas no fundo ele não sentia totalmente os sentimentos que aprendera a imitar e a fabricar. Existia sempre uma barreira que cortava a ligação antes de alcançar o seu sistema nervoso. Ele conhecia a amplitude do sentimento, de qualquer um, sabia explicá-lo e defini-lo, mas era incapaz de o fazer seu, de experimentá-lo em pleno, de encher o coração com ele.

Naquele momento, porém, não se punha nessas elaborações. Só digitava no teclado minúsculo do telemóvel as mensagens, letras de rajada a compor frases e pequenos parágrafos, numa ligação imprescindível com a sua casa e com o ruído que o impedia de mergulhar no torpor.

Em seu redor continuava o barulho suave, o aconchego de não estar completamente só na sua espera.

Ouviu, conseguiu discernir esse pequeno som entre tantos outros, a porta do fundo do corredor a abrir-se. O suave raspar na alcatifa, trinco a reentrar na ranhura. Olhou por cima das armações dos óculos, enrugando a testa. Viu apenas a imagem desfocada do outro, pois sem a correção das lentes a sua miopia deixava-lhe o mundo fosco. Forçou-se a olhar através das lentes, erguendo o queixo um nadinha, os contornos ficaram notoriamente mais nítidos e verificou, encantado, que o amigo também estava de óculos – coisa rara, ele não gostava de andar de óculos e fazia-o sempre em privado, em ocasiões muito específicas, quase envergonhadas. Caminhava distraído a murmurar uma melodia, com uma toalha turca branca em redor do pescoço que puxava pelas pontas. Vinha calçado com meias felpudas e vestido de forma casual, com uma blusa e calças largas. Pela postura e atavios teria ido experimentar o ginásio do estabelecimento hoteleiro, onde também havia um spa que dispensava massagens relaxantes – sem duplo sentido! O Josh, da comitiva, já lhe tinha falado disso e ele ficou a considerar ir também receber uma massagem. Melhor no fim do espetáculo do dia seguinte, pensou… Também havia uma piscina de água quente.

Regressou ao telemóvel, fazendo de conta que não o vira. Uma risada especialmente alta de Phoenix fê-lo sorrir, trespassado por aquele singelo arrepio de alegria. Esse parecia bastante melhor. Não lhe dissera, nem ao Brad, mas ele tinha reparado como a conversa durante o teste de som tinha sido séria. O assunto fora sanado ou esclarecido, pois assim que ele se aproximara tanto Dave como Brad disfarçaram e puseram uma cara menos grave. Ele não queria saber, para ser sincero. Já tinha os seus próprios problemas. O amigo Chris respondeu-lhe a uma mensagem que ele tinha enviado duas horas antes, noutra caixa de conversa que ele tinha encetado. Ele insultou-o, aborrecido por estar a ser desprezado, que merda era aquela ter respondido só depois de tanto tempo. Veio a réplica imediata, com um insulto ainda pior, ilustrado pelos devidos emojis. Ele sorriu. As hostilidades tinham sido abertas!

Mike estacionou ao pé dele, colocou uma mão na maçaneta da porta do quarto. Observou-o, intrigado. Ele sabia que o estava a fazer, mas não descolou o olhar do telemóvel. Tinha um sorriso maroto a enfeitar-lhe os lábios por estar a trocar asneiras com o Chris Cornell. Antes de falarem alguma coisa de jeito, e isso contava com uma frase seca a perguntar se estava tudo bem, sim era a resposta e terminava, havia uma conversa imprópria, de fazer corar um santo.

Ele sabia por que razão o Mike estava especado a observá-lo. Ele encostava-se ao lado da porta, a segurar um travesseiro debaixo do braço, vestido também de forma casual, uma t-shirt interior de alças coberta por um casaco de capuz, umas calças de fato de treino, sapatos de tecido próprios para andar no interior de casa, sem meias. E tanto ele como Mike bem sabiam, o seu quarto ficava noutro lado, junto ao de Rob.

— O que fazes aqui, Chester?

— Venho dormir contigo.

O silêncio foi, de certo modo, denso. Ele continuava a debitar as piores má-criadices no teclado digital. Mike estranhou:

— Dormir comigo…

Yep. O Brad disse-me que estavas à minha espera.

Foi a primeira desculpa que lhe veio à cabeça. Uma coisa inocente e estúpida. Não iria colar, o Mike nunca fazia o que ninguém mandava, muito menos seguia os conselhos do Brad. Finalmente o Chris pediu-lhe que contasse o que havia e ele escreveu que estava tudo bem. Fim de conversa. Regressou à caixa de mensagens com a Talinda e avisou-a de que o Mike tinha chegado.

— Eu não…

Ele baixou o telemóvel, pela primeira vez. Exigiu, agitado:

— Vá. Abre a porra da porta e entra de uma vez.

— Eu não conversei com o Brad desde o teste de som e, bem… O Brad não me disse nada. Como pode ter-te dito alguma coisa? Queres dormir outra vez comigo?

O pânico insinuou-se no seu sistema, como um líquido gelado a misturar-se com o sangue. Controlou-se, mas sentiu as mãos começarem a tremer. Apertou os lábios, na tentativa de engolir saliva. Debalde. A boca tinha secado de repente. A mentira fora descoberta e ele, sendo um mentiroso refinado nos grandes temas, era péssimo a enganar nos pequenos.

— Sim, quero.

A resposta tão rápida e sincera surpreendeu-o. Não era suposto admitir a necessidade, mas o Mike tinha uma dúvida esquisita no olhar e era daquelas vezes em que ele iria perder a batalha. Não lhe apetecia nada daquilo que se estava a construir à sua volta, como um muro demasiado alto e claustrofóbico. Não lhe apetecia dar-se por vencido e regressar ao seu quarto. Se acontecesse iria ter uma insónia medonha… cheia de sombras…

Uma aspiração curta. A sobrancelha esquerda de Mike contraiu-se com o cheiro que detetou. Largou a maçaneta da porta, cruzou os braços e declarou:

— Estiveste a beber.

— Duas cervejas. No bar, com o Josh. – Endireitou as costas, acusando a repreensão, ligeiramente indignado e magoado. – Foi mais do que isso… Duas cervejas e alguns shots… Porra, estou cansado! Quero dormir depressa. Jantei bem, não me sinto… embriagado. Estou bem. Não consegues ver que estou bem? Queres que ande numa linha reta? Eu ando. Abre a porta, Spike.

— Sabes que não deves beber, Chaz. Prometeste-me antes da viagem.

— Não estava sozinho. Disse-te que não iria beber sozinho.

— Falámos em beber, ponto final.

— Está bem, está bem… Amanhã volta a lembrar-me.

— Não preciso que te lembre de uma resolução que tu próprio tomaste, antes da digressão. As promessas são para cumprir. Não foi o que me disseste? Não foi o que quiseste que eu soubesse?

— As promessas são sempre para cumprir – repetiu num fio de voz, baixando a fronte, como um menino malcomportado.

— Então…

Chester não conseguiu prosseguir. Sentia as palavras engasgadas no peito, todo ele a arrefecer por dentro, as mãos a tremer, a perder a sensibilidade nos dedos. O telemóvel apitou algumas vezes. Mais mensagens. Não teve coragem de as ir verificar.

— Então, boa noite, Chester.

— Quero ficar. Dormi bem ontem. Sem pesadelos.

— Ontem não tiveste pesadelos…

— Quando estou contigo… Quero dizer, quando estou calmo não tenho pesadelos. Foda-se, tu sabes disso, meu! Amanhã vamos ter o nosso espetáculo e quero estar bem. Tu… Quando tu… É isso. Quero dar o meu melhor, vai ser o nosso primeiro espetáculo. Eu não vou beber mais. Está bem? Estás contente? Já me humilhei o bastante?

Escutou o pequeno som da porta a ser destrancada. Finalmente, Mike rodara a maçaneta. Encararam-se. Ele sentia as faces coradas, a raiva que lhe fazia os olhos negros como a noite. Mike abanou subtilmente a cabeça, preocupado.

— Não quero que te humilhes. Para com a cena, estás a deixar-me desconfortável.

Ele susteve a respiração. Continuava com a boca seca – e agora os risos quentes já não o aqueciam, as luzes amarelas encandeavam-no e a tontura avisou-o de que provavelmente estava mais embriagado do que quisera admitir. Os braços também começaram a tremer. Mike deu-lhe um soco amigável no ombro. Pediu-lhe:

— Ei, Chazy. Vamos a acalmar?

— Se me deixares entrar aí, vou ficar mais calmo… Vou ficar bem. Sem pesadelos.

— Claro que te deixo entrar no meu quarto. Nunca te proibi de estares no meu quarto e ontem, efetivamente, partilhámos o espaço… como já o tínhamos feito outras tantas vezes. Vá, podes dormir comigo. Mas o Brad não me contou nada.

— Trouxe o meu travesseiro. Assim não me podes acusar de andar a babar os teus…

Mike riu-se, mas tudo continuava demasiado tenso e ele demasiado encurralado. Apanhado na sua fraqueza com o álcool. Ele sabia que iria ser apanhado, mas não conseguiu aguentar-se, porque precisava de todas as ajudas possíveis para passar uma noite razoável – já não dizia boa. Razoável era o suficiente para ele. Beber, falar com o Chris, estar com o Mike. Sobretudo, não estar sozinho. Não se sentia preparado para estar sozinho naquele gigantesco grupo de gente.

— Desde que não babes o meu travesseiro, quer lá saber o que fazes com os outros – disse Mike com um meio sorriso.

— Posso saltar-lhes em cima?

— Como?

— Nos outros travesseiros… Montá-los. Desde que não seja no teu. Posso dar-lhes umas trancadas secas? Ou se me entusiasmar bastante, que sejam molhadas…

— O quê?

Nisto, sem que eles se tivessem apercebido, intrometeu-se o Brad. Vestia apenas umas cuecas e uma camisa aberta. Torso exposto, pernas à mostra, descalço, sorriso patético e rasgado num rosto descontraído.

— Ei, Chaz… Pensava que estavas com o Josh no bar. Mandaram-me uma foto há pouco de lá, está a haver uma grande festa. Estás de óculos, Mike? Preparado para a caminha?

— Ei, meu… O que estás a jogar? – perguntou Chester, sem, contudo, mostrar um grande interesse.

— GTA. Deixei o Joe a bater no Phoenix. Querem vir? Só uma ronda… Juntem-se a nós, vai ser divertido.

— Como disseste, Brad, estou preparado para a caminha – indicou Mike abrindo mais a porta. Chester passou por esta e entrou no quarto, esquivo como um pequeno roedor. – Obrigado pelo convite, fica para outro dia.

 Brad perguntou, curioso:

— O que é que vocês os dois vão fazer?

— Jogar às cartas. Boa noite, Brad.

— Eu também podia jogar às cartas… Estou a fazer um intervalo no GTA. O Joe está a amansar o  Phoenix que estava demasiado convencido, eu já irei voltar para apanhar os pedaços do que restar dele e enterrá-lo de vez. O Phoenix consegue ser tão merdoso! Estão a pensar em que jogo, meus? Cartas é bom. Ajuda-me a pensar… Tenho os neurónios preguiçosos.

— Boa noite, Brad – sentenciou Mike e fechou a porta na cara do guitarrista.

— Assim ele vai pensar que andamos a esconder alguma coisa…

— Nós não estamos a esconder nada, Chaz.

— Não estamos?

Mike colocou as mãos na cintura e fixou-lhe um olhar carrancudo. Chester sorriu. Adorava provocá-lo com insinuações que iam contra os seus valores e crenças arreigadas. Mike era um conservador chato, cioso da sua privacidade, amante da discrição, defensor de uma certa dignidade pedante. Ao contrário dele que adorava expor-se, ferir-se, exibir-se, desnudar-se, dissecar-se, reconstruir-se, enganar-se. Não podiam ser mais diferentes.

O amigo espetou um dedo indicador que agitou devagar.

— Vais portar-te bem, Chester, ou expulso-te do meu quarto. E ainda te vou fazer andar nessa linha reta…

— Estou pronto! Por onde queres que caminhe?

Chester atirou com o travesseiro que carregava para a cama. Descalçou-se, despiu o casaco e as calças, deixou tudo no chão, no lugar onde tombaram. Ficou somente de blusa interior e boxers, foi conferir as suas mensagens. Declarou o seu amor, mais uma vez, à mulher Talinda, repetiu como sentia falta dos filhos, mensagens exageradas novamente carregadas de emojis. Ao olhar para Mike, este sentava-se na ponta do colchão e colocava o computador portátil sobre o colo, abria o monitor e ligava-o. As suas lentes dos óculos tornaram-se brancas.

— E tu também te vais portar bem, Mike. Nada de trabalho!

Ele deixou o telemóvel bloqueado na mesa do seu lado da cama e começou a pular no mesmo lugar, a rodar os braços. Soprava o ar pela boca, controlando a respiração naquele exercício. Mike espreitou-o por cima do ombro, a mão direita a segurar o monitor.

Yeah… tens razão. Se me ponho a mexer nisto vou ter outra noite de merda como a de ontem.

— Tiveste uma noite de merda… Dormiste mais do que eu e tiveste uma noite de merda. Admiro-te.

— Sim, acordei com a cabeça toda lixada. Isso é sinal de uma noite de merda, meu amigo. E não me esqueci de que saíste daqui de manhã e nem sequer me acordaste.

— Estavas a dormir demasiado bem. Mas eu ainda te abanei e tu… nada. Continuaste a murmurar.

— A murmurar?

— Não te lembras? Estavas a sonhar com alguma coisa muito boa, aposto. Era comigo? Sorriste quando eu te toquei.

Mike fechou o portátil e devolveu-o à mesa de onde o tinha tirado. Esticou os braços para cima, numa curta espreguiçadela.

— Combinado! Eu não vou trabalhar e tu largas o teu telemóvel. Acabou por hoje.

— Fechado, companheiro.

Parou de saltitar, deu meia volta e atirou-se ao chão, amparando a queda com as mãos, sustendo o seu peso nos braços. Voltou a soprar. Fixou a alcatifa lisa. Sentia-se excitado, agora. Acossado como se tivesse de se defender da ameaça invisível que se escondia na aparência anódina daquele quarto. Cerrou os dentes, expurgando de si a paranoia. Começou a fazer flexões.

Ele estava acompanhado. Ele estava bem. Ele iria dormir.

Repetia isso por cada flexão, por cada vez que o corpo quase tocava no chão. A pressão sobre os bíceps aumentava, os músculos retesavam-se, ele a aguentar-se, a evadir-se de si próprio naquele esforço. Ele a focar-se em todas as suas pequenas dores, a apagá-las como quem apagava minúsculas chamas de um mar compacto de velas.

Por pouco tinha perdido aquela oportunidade. Por pouco o Mike tinha-lhe fechado a porta na cara, como fizera com o Brad. Merda! Ele só fazia merda…

Depois cansou-se e parou. Deixou-se cair, rebolou, ficou deitado de barriga para cima a olhar para o teto. Largou os braços ao longo do corpo. Arfava. A alcatifa era também macia. Acariciou-a devagar, desenhando um círculo largo com as mãos abertas.

Mike tinha ido à casa de banho e agora regressava, com os óculos numa mão, a coçar os olhos com um punho e a bocejar, num trejeito infantil. Seguiu-o com o olhar. O outro reparou que estava a ser observado e entreolharam-se. Mike parou junto à cama. Agarrou no cobertor e puxou-o para trás, criando uma dobra enviesada perfeita.

Sentou-se de repente. Fletiu as pernas, apoiou os braços nos joelhos.

— Mike…

— Diz.

— Neste momento, alguém está a masturbar-se a olhar para uma qualquer imagem minha. Ou tua. Ou da banda. Pensas nisso?

Mike suspirou, sentando-se no colchão. Agarrou na caixa dos óculos e guardou-os aí, com o habitual cuidado que lhes dispensava, para não riscar as lentes, torcer as hastes e todas essas picuinhices. Respondeu-lhe:

— Não, não penso. E nem tu devias pensar, Chester. Somos figuras públicas e a nossa imagem encontra-se difundida por todo o lado, nos lugares mais inimagináveis. Estamos certamente num poster minúsculo num recanto qualquer do planeta Terra que nem tu, nem eu, conseguimos conceber. E as pessoas são muito imaginativas, digamos assim. Ao olhar para nós podem estar a masturbar-se, podem estar a inspirar-se e a começar uma carreira na música. Podem até estar a enraivecer-se e a criar uma seita demoníaca. Podem estar a chorar ou a rir-se. – Fez uma pausa. – E tu já aprendeste há muito tempo a não pensar nesse problema e a lidar com a pressão da fama. Meu amigo, não somos propriamente virgens nisto… Fomos vacinados no século passado contra essa doença e estamos perfeitamente blindados contra influências externas específicas, nomeadamente sabemos muito bem distinguir quem somos e quem são o Mike e o Chester dos Linkin Park.

— Somos virgens noutros assuntos.

— Perfeitamente de acordo. Deve haver mais coisas que não sabemos do que aquelas que sabemos, mas neste departamento relacionado com os espinhos de se ser alguém famoso, acredito que nos safamos muito bem.

— Quando eu me masturbo também penso… tenho algumas imagens na cabeça.

— Tu não precisas de… – Mike voltou-se para ele, ainda sentado. – Tu…? Tu sentes necessidade de…? – Mostrou-lhe as mãos. – Escuta, não quero conhecer os detalhes.

— Sim, masturbo-me. De vez em quando ponho-me a esgalhar o pessegueiro no duche. Especialmente quando andamos em digressão. Porra, recebemos muitos estímulos. Temos fãs… atrevidas, algumas delas insinuam-se e não sou feito de ferro, porra!

— E vais para o duche… Meu, isso é tão nojento!

— Ah, tu nunca bates uma fora do casamento? Ora, é melhor bater uma do que trair a minha mulher! E oportunidades não nos faltam… Estou a ser honesto. Estou a ser o mais sincero que posso ser. Não acredito que nunca te tenhas vindo a pensar numa gaja qualquer que te espetou as mamas na cara quando te pediu um autógrafo num dos nossos meet & greet. Ou que nunca tenhas ficado duro ao veres as pernas de uma gaja bem feita. Isso é impossível!

Mike apertou os lábios, incerto se deveria rir-se ou levar aquilo a sério. Mas ele estava mesmo a falar a sério. Nem conseguia sequer desfazer a gravidade do seu rosto, sentia as faces paralisadas e a dormência a atacá-lo impiedosamente. A desligar-se da sanidade. A implorar para que o compreendessem.

— Sim, já fiquei duro… mas até masturbar-me no duche… – Nisto, Mike agitou-se. Apontou um dedo a si próprio. – Espera… Não bates uma a pensar… a pensar em algum de nós, pois não? Isso seria mesmo muito nojento!

— E se pensasse?

— Chester! – Mike tornou a mostrar as mãos. – Calma, calminha… vamos lá a parar. Estamos no meu quarto. Sozinhos. Já estivemos outras vezes sozinhos no mesmo quarto, eu sei, confio em ti e tu confias em mim. E ontem foi uma dessas noites. Julguei, então, que não estavas necessitado a esse ponto. E acho que a situação não se alterou porque não tivemos nenhum encontro com fãs atrevidas que te tivesse despertado o desejo. Qual a necessidade? Só estou a ver que tenha sido o álcool que te deixou baralhado. Não deves beber, meu. Não deves beber… Estás tenso e ansioso, estás a pensar em sexo. Estás a pensar em sexo agora?

— Eh…

Mike chamou-o com uma mão.

— Vem cá.

Chester ergueu-se num pulo.

— Vais bater-me uma? Eu posso fazer sozinho, obrigado…

— Não sejas ordinário. Senta-te na cama, de costas para mim.

— De costas? Estás a ir muito depressa. Não me vais beijar primeiro?

— Só se mereceres…

— Hum, eu mereço, pelo menos, um beijinho – queixou-se, espremendo os lábios.

— De costas, senhor Bennington!

Ele obedeceu. Sentiu as mãos do amigo nos ombros.

— Os preliminares?

— Vais parar, Chaz?!

— Estou a irritar-te?

Um apertão nada meigo. Todo ele se endireitou, susteve um grito. Porra! A massagem estava a parecer-lhe, primeiro, uma agressão. A voz de Mike era áspera com o sarcasmo, num tom quase de aviso, quase de ameaça:

— Queres perceber até onde eu te aguento? Eu aguento tudo e mais alguma coisa vinda de ti, caso ainda não te tenhas apercebido, meu chato de merda.

Os dedos do amigo abriram-se, soltando-lhe as clavículas. Ele permitiu-se ficar menos tenso, menos encurralado e assustado. A massagem começou, por fim, com suavidade e firmeza. Fechou os olhos, a apreciar o contacto saudável das mãos de Mike nos seus músculos.

— Só quero um beijo antes.

— Eu dou-te os beijos todos que quiseres, senhor Bennington.

— E a seguir expulsas-me do teu quarto.

— Não, não te vou expulsar do quarto. Esta noite quero-te aqui comigo, depois daquilo que andaste a dizer, meu amigo. Não quero que tenhas pesadelos. Não quero que passes esta noite em claro. E seguramente não quero que vás para a festa do Josh, no bar. Já bastou o que bebeste antes que te está a deixar instável. Ou bem que te anulas, ou bem que explodes. Merda, Chazy! Tens de equilibrar essas tuas vontades.

— Nunca fui equilibrado, porra.

Mike calou-se, as suas mãos hesitaram também.

— Eu sei que não, mas preciso que estejas bem amanhã e nos dias seguintes.

— Não te vou desapontar, senhor Shinoda.

Seria uma tragédia se algum dia ele causasse um desgosto a Mike Shinoda. Ele não iria suportar-se olhar ao espelho depois desse dia. Sentia-se bem e protegido na companhia dele. Se havia coisa que ele não queria estragar era o que tinha com aquele amigo. Como ficaria depois com os Linkin Park, se os dois resolvessem divergir? Ele nem queria pensar. Haveria um dia, contudo, em que tudo iria colapsar. Ele sabia-o. Era uma questão de tempo, de oportunidade, de tentação. Não sabia como seria, mas iria acontecer. De alguma forma dúbia, sabia também que ele não seria inocente nessa ruína.

Mike disse-lhe:

— Escuta-me. Estás a escutar-me? Bom… Eu não me incomodo nada de te ter a dormir comigo, na mesma cama. Não me faz qualquer confusão. Na verdade, parece-me que és tu quem leva isso demasiado a sério. Claro que brincas e que atiras todo esse fogo-de-artifício para cegares os outros que estão à tua volta, para que julguem que para ti é fácil e natural, mas não o é. Estás sempre a querer antecipar-te à crítica, a escapares da censura. Esta manhã estavas comprometido e evitaste-me durante o dia todo. Agora, de noite, regressaste. Não precisas de ter vergonha… Ninguém te critica ou te censura. Nunca o iremos fazer, Chester. Somos todos amigos e entre amigos falamos e agimos francamente.

— Eu não tenho vergonha. – Olhou atrapalhado para as unhas pintadas de preto e pôs-se a limpá-las da sujidade inexistente. Os nervos atacaram-no, ficou trémulo, a visão turva.

— Quando dormes com o Dave também ficas a sentir-te assim?

— Não… Não sei.

— Nós conhecemos os nossos segredos, meu idiota. Eu conheço os teus, tu conheces os meus. Até o Brad sabe mais sobre ti do que eu próprio! Sabemos de coisas que nem sequer partilhámos com as nossas mulheres. Coisas de homens! Se a Anna soubesse, bem… acho que ficaria com ciúmes. Ela é bastante ciumenta.

— A Anna tem ciúmes de mim?

— A Anna tem ciúmes dos Linkin Park, foi por isso que lhe escrevi aquela canção.

— Hum-hum. A Tali também não sabe…

— O que é que ela não sabe?

— Essas coisas…

— Essas coisas que são nossas. Precisamente.

Os dedos de Mike faziam movimentos circulares sobre os seus ombros até ao pescoço, percorrendo os músculos trapézios. Estava a ser muito bom e ele estava quase a admitir que tudo o que o assombrava se tinha ido definitivamente embora. Mas era mentira. Assentou os punhos no colchão, tensionando os braços. Movimentou o pescoço. Gemeu.

— As mulheres podem interpretar mal certas cenas – prosseguiu Mike, concentrado na tarefa de o acalmar. A voz era menos repressiva. – Serão mesmo ciúmes, segundo a minha classificação. A Anna queixa-se, mesmo depois de todo este tempo, depois de eu lhe ter escrito a canção que foi um sucesso mundial, queixa-se que dou demasiada atenção aos meus amigos. Não só a ti, ao Brad ou ao Joe, ao Rob e ao Dave, mas também a todos os outros tipos com quem convivo.

Yeah. Tenho o mesmo em casa. Pela atitude da Tali, quando falo de ti, ela fica com aquela cara de que devia haver menos entre nós, não te sei explicar. E como pode haver menos, se trabalhamos juntos? Tem mesmo de existir toda esta ligação e muito mais. Além disso, não lhe conto porque gosto de ter os meus segredos.

— Os segredos… que eu conheço. Se soubessem que dormimos juntos e que és tu quem me procuras…

— Sou eu que te procuro?! Motherfucker! – Cerrou os dentes.

— Nunca fui para o teu quarto. Vens sempre para o meu.

Vai terminar depois desta noite!, gritou dentro de si próprio, perplexo e zangado.

— O meu quarto é uma pocilga. O teu é mais arrumadinho – justificou-se Chester, orgulhoso. Estava a perder o jogo. Ele sempre perdera, nunca tivera a deusa Fortuna do seu lado em qualquer contenda.

— Eu nunca dormiria na tua pocilga, é verdade – assumiu Mike num tom casual.

Calaram-se durante alguns segundos. A massagem prosseguiu, o seu efeito a espalhar-se no silêncio do quarto. As suas costas, pensava ele agora, eram um ponto quente. Um ponto imaculado e completo que irradiava por uma imensa paisagem imaginária onde ele se erguia no centro. Era ele que transmitia aquela luz e achou caricato, porque ele nunca era luminoso. Depois compreendeu que a mudança derivava das mãos de Mike, das mãos mágicas e talentosas de Mike que era um dos melhores criadores que ele tinha alguma vez conhecido. Pintura, cinema, música. Só ele podia dar-lhe luz onde havia treva. Só ele lhe podia dar paz onde havia conflito.

O melhor dos amigos. Um irmão. Embalou-se na sensação de não estar mais sozinho. Ali, sem dúvida que não estava sozinho. Tinha de terminar com a dependência, porém. Tinha de se deixar daquela estúpida loucura de procurar pela companhia de Mike e enganar-se que era só ele que o podia fazer sentir-se assim. Amado, completo, indispensável, quente, luminoso, tranquilo. Tinha outros… A comitiva era grande. Aquela seria a última noite em que estariam juntos. Não o procuraria mais, jurou. Tinham sido duas noites seguidas e seria estranho aos olhos dos outros. O que Brad estaria a contar ao Joe e ao Phoenix sobre aquele jogo de cartas? Camas a ranger, pelo menos.

— Quero ver-te bem, saudável e feliz no nosso primeiro espetáculo.

A declaração despertou-o do mergulho nos seus pensamentos.

— És muito atencioso… Estás a fazer isto tudo para eu não lixar o espetáculo da banda. Não é por causa de mim. No fundo é só por causa dos Linkin Park.

— Claro que é só por causa dos Linkin Park. A banda é mais importante do que qualquer um de nós.

— Que lógica fodida, Spike. Nós é que somos os Linkin Park. Sem nós não existia Linkin Park.

— E sem os Linkin Park, quem serias tu?

— Estás a confundir-me… Estou bêbado, estou sob a influência das tuas mãos que me estão a derreter todo, não consigo raciocinar. E ainda preciso de um beijo.

— É esse o objetivo. Desliga essa cabeça que nunca para. A seguir, vais deitar-te e dormir. Dormir como deve de ser e não vais sair deste quarto antes de mim. De manhã quero ver-te na tua melhor forma. Mas quero ver-te, percebe bem. Ver as tuas fuças!

Yeah, yeah… eu acordo-te mesmo que estejas a ter um sonho molhado comigo.

— Vai ser um dia muito importante – continuou, Mike ignorando o comentário. – O arranque da digressão. Teremos os media em cima de nós, a escrutinar os nossos passos. Vamos iniciar as filmagens para a LPTV. Nada de falhas, nada de dúvidas, nada de polémicas. Nada de constrangimentos e de questões mal finalizadas.

— Não tenho questões dessas com ninguém.

— Boa. Era isso que eu queria ouvir.

Deu-lhe uma palmada em simultâneo nos ombros e perguntou:

— Melhor?

— Sim, melhor.

— Para a cama agora, senhor Bennington.

Chester tirou os óculos e atirou-os para cima da mesa de cabeceira. Esfregou o rosto e sem pensar duas vezes deixou-se cair para cima do monte de travesseiros onde estaria aquele que ele tinha trazido. Mike enfiou-se debaixo dos cobertores, aconchegando-se com o mínimo de movimentos.

— Eu conheço os teus segredos também, Spike. Muito segredos. Tu és peludo para caraças! – atirou Chester, jocoso, colocando as mãos atrás da cabeça, espetando os cotovelos. Estava tonto. Era interessante ver o teto do quarto a redemoinhar, o peso que ele ganhava nas pálpebras, a embriaguez que o puxava para longe, o abraço insistente que lhe abafava o peito. – A foto do Joe, com aqueles pelos a espreitarem das tuas narinas… é uma prova.

— Essa foto passou à história. Já chega, Chester!

— Tens a certeza de que não existe uma cópia algures, para a chantagem no futuro?

— Eu acalmo o Joe. Sei o que ele quer e dar-lhe-ei isso no tempo certo. Ficará desarmado e novamente sob o meu controlo. Vou exigir-lhe a imagem como moeda de troca. E também os nomes de todos aqueles que a tiverem. A persuasão será tão dissimulada que o Joe nem vai dar por ela. A fotografia embaraçosa é como se não existisse.

— Ah! Tu és um manipulador maníaco!

Mike forçou uma gargalhada malévola, bem ao estilo de um vilão de banda desenhada. E no silêncio posterior ouviram a algazarra do corredor, portas a bater, alguém a chamar por outro alguém, uma corrida de passos abafados sobre a alcatifa.

Riram-se um para o outro até que os risos se calaram nas respetivas gargantas.

— Até amanhã, Chaz – despediu-se Mike.

— Até amanhã, Spike – respondeu Chester.

Fechou os olhos.

Flutuou durante algum tempo entre notas musicais que encheram o remoinho que pairava sobre a sua cabeça fatigada. Solto, incorpóreo. A forçar a sua leveza num céu inventado sem cor de tão deslavado. Porque ele nunca voava a não ser que sonhasse, que era evento raro na sua mente em turbilhão. Mas agora estava bem. Relembrou o alinhamento do concerto, trauteou mentalmente alguns refrões. Tudo em ordem. Não seria ele que falharia, ou que lançaria a dúvida, ou criaria a polémica. Não daquela vez. Era demasiado cedo. Continuava no mesmo lugar quente e brilhante proporcionado por Mike. Dali não iria sair.

Amanhã seria outra história para contar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Neste capítulo também nos recordamos de Chris Cornell, pois hoje era o seu aniversário.

Chester Charles Bennington pode ter partido, transitado de plano, ter-nos dito adeus, marcado encontro no outro lado, mas ficará eternamente nos nossos corações.
Que a sua música e a dos Linkin Park nunca deixe de tocar, animar o mundo e nos ensinar a mais importante lição de todas: o amor. Confiem no amor.

Se se sentem sozinhos, desamparados, tristes, a julgar que não vale a pena... vale sempre a pena! Procurem ajuda, chorem, gritem, tentem falar com alguém. Nunca estamos sozinhos e há sempre alguém que se importa, que escuta, que compreende.

Deixo alguns números de telefone que poderão usar para pedir ajuda. Não sei se os telefones do Brasil estão corretos - se não estiverem, digam-me, que eu faço a alteração. Ou o acrescento.

BRASIL

CVV Curitiba
Tlf (41) 342 4111

CVV Rio de Janeiro
Tlf (21) 233 9191

CVV Brasilia
Tlf (61) 326 4111

Centro de Apoio a Vida
Tlf (11) 247 4111

PORTUGAL

SOS Palavra Amiga
Tlf (232) 42 42 82

SOS-Estudante
Tlf (808) 200 204

Mais uma vez, muito obrigado por todo o vosso apoio.
Até à próxima história!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Que Nos Pertence" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.