O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 17
Amigos e negócios


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :D



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/775088/chapter/17

Sentado sobre a cama, Valter colocou as botas de couro. Estava finalmente trajando seu antigo uniforme de cangaceiro. Utilizou-o da última vez para dar um tiro em Breno Farias a mando do mesmo. Agora, seguiria as instruções do político para dar uma surra em Gustavo Água-Santa. O ricaço tinha um tratado com Marcondes e estava livre de qualquer ameaça por parte dos cangaceiros da região. Um ataque de um deles – ou advindo de alguém que se parecesse com eles – seria um grave infortúnio.

Com isso em mente, Valter tinha consciência dos riscos. Cada vez mais, o homem esguio entrava em um terreno perigoso. Qualquer erro ou ato falho poderia lhe custar tudo. No entanto, o que é que não tinha um preço? Olhava para seu filho, que dormia na rede ao lado, e não conseguia pensar em outra alternativa. Levantando-se da cama, caminhou em silêncio para não acordar a criança. Deixando o quarto para trás, foi até a sala e encontrou-se com Maria. A senhora aguardava pacientemente a chegada do homem. Sentada, ela virou os olhos para a direção dele assim que ouviu os passos.

— Como ele ? — Maria perguntou como de costume.

— Dormindo como um anjo — Valter respondeu com uma doçura atípica. — Agora cuide dele direitin. Devo chegar mais tarde.

— Vá com Deus, seu Valter.

Saindo da sua casa, o ex-cangaceiro foi até o cavalo deixado por Breno na noite anterior e partiu o mais rápido que pode. O tempo corria. O candidato a prefeito havia revelado a Valter que Gustavo estava fazendo uma série de viagens entre as cidades do estado. Era o de sempre: negociações, bajulações e novos contratos. No dia em questão, o magnata da água deveria passar por um ponto próximo de Água Funda, local exato onde o ex-cangaceiro deveria atacar.

“O fi duma égua mal pode esperar”, Valter pensava. Não sabia dizer o porquê, mas detestava o velho. Talvez fosse pela enganação, pela união quase criminosa com Marcondes Maia, pela petulância ou mesmo pela pura e simples antipatia. O fato era que Valter se divertiria muito dando uma surra naquele magnata rico e sujo. “Aqui, este é o ponto”, concluiu quando finalmente se viu na encruzilhada. Estava entre areia, aridez e secura. Nada exatamente novo ou belo. Na verdade, a morte o cercava, mas ele já estava acostumado com isso. Pegou um pano e colocou-o sobre a boca e o nariz, ocultando assim a sua identidade. Logo em seguida, conferiu o revólver em seu coldre. Não pensava em dispará-lo, mas era melhor ser precavido. E então aguardou.

O ex-cangaceiro não saberia dizer quanto tempo se passou. No entanto, o calor já estava o incomodando a ponto de quase desistir daquela empreitada. Todo o ambiente ao seu redor parecia tremular como chamas de uma fogueira e o amarelo do sertão estava mais vivo do que nunca. Aos poucos, o suor começou a encharcar as suas roupas e um odor incômodo começou a adentrar suas narinas. O cavalo sem nome também já dava sinais de cansaço, quase pedindo para deixar aquele lugar.

Valter chegou a pensar que havia se atrasado, ou mesmo que recebera a informação errada por parte de Breno. No entanto, uma imagem de esperança apareceu no limite do horizonte: conduzindo uma grande carroça, um solitário Gustavo Água-Santa cruzava o sertão sem medo do desconhecido. O poderoso velho mantinha a petulância de sempre: estava acima do bem e do mal, dos eleitores e dos eleitos. Sem medo de cangaceiros ou animais selvagens, seguia de cidade em cidade com as velhas conversas de sempre. No entanto, sua situação estava para mudar.

Quando percebeu a figura do suposto cangaceiro a algumas dezenas de metros de distância, Gustavo Água-Santa sorriu. O trato era claro: aqueles bandidos da região jamais atrapalhariam a sua vida. Marcondes Maia mantinha tais seres acorrentados pelos tratados e pelo dinheiro. Livre de preocupações, o ricaço estava pronto para dizer um “bom dia” para Valter, até que viu o homem levantar o revólver.

— Parado! — O homem disfarçado ordenou.

— Minha nossa! — Gustavo assustou-se e, num impulso, puxou as rédeas. Depois, ao acreditar que não havia motivos para temer, começou a rir. — Você é doido, homi? Eu sou Gustavo Água-Santa!

— Eu sei bem quem você é! — A voz de Valter era forte como um trovão. Segurava o revólver com firmeza e tinha uma postura verdadeiramente ameaçadora. — Desça da carroça agora!

Ainda sem compreender a situação, o velho balançou negativamente a cabeça. Aquilo parecia inconcebível. Estava há dias realizando negócios e fazendo novos amigos. Como um aliado poderia simplesmente virar as costas para ele? Aquilo era imperdoável. Era pura e simples traição.

— Amigo — Gustavo apelou para uma voz calma e calorosa. Quem a ouvisse, não pensaria que tinha uma arma apontada para o velho. — Marcondes Maia te paga muito bem para não atrapalhar os meus negócios. Marcondes, conhece? O prefeito!

— Desça! — Valter repetiu com um grito. Para deixar a sua ordem ainda mais explícita, deu um tiro na cabeça do cavalo que conduzia a carroça do magnata da água. O veículo balançou com a queda do animal. — Entendeu?!

Horrorizado, Gustavo colocou as mãos atrás da cabeça e desceu lentamente. Caminhou até o suposto cangaceiro e, com uma expressão desgostosa, disse:

— Espero que você me dê um novo cavalo! Marcondes vai ficar sabendo disso, vai sim!

Como resposta, Valter acertou um forte golpe no rosto do velho com a coronha da arma. Ouviu um estalar e, ao olhar para o rosto da vítima, pôde perceber que o nariz estava quebrado e pintado de sangue.

Fi de rapariga! — Gustavo xingou enquanto gemia de dor. — O que ocê quer?!

Dando um sorriso maldoso, o homem disfarçado apontou com o revólver para o Leste. Finalmente submisso, o velho caminhou na direção indicada lentamente. Morria de medo e de contradição. Como aquilo poderia estar acontecendo? Era rico, pagava bem a todos e tinha contatos. Não, não aceitaria aquela traição de forma alguma. Marcondes, os cangaceiros e qualquer outro envolvido pagariam por aquilo.

— Eu vou lembrar de você, disgraçado — ainda que sentisse grande medo e dor, Gustavo não conseguia escapar de sua própria arrogância.

Valter riu mais novamente, só que dessa vez em voz alta. Olhando para o espaço ao seu redor, viu que estava completamente isolado. A única exceção talvez fosse a de alguns abutres que se alimentavam do corpo de um jumento ali perto.

— Aqui está bom — o homem com o rosto coberto disse em voz alta. — Você num acha?

— Bom pra quê? — Gustavo tremia de medo enquanto buscava uma escapatória. Não havia nenhuma, afinal.

— Pra uma mensagem — Valter deu prosseguimento a resposta com agressividade.

Puxou Gustavo pelo colarinho e jogou-o no chão. Mais velho, o homem cheio de fortuna não teve como reagir. Caído, viu seu algoz se aproximar com os punhos cerrados e os olhos despejando ódio. Apesar de tentar se proteger, as mãos de Água-Santa na frente do rosto de nada serviram: foram quase esmagadas pelos potentes punhos de Valter. O ex-cangaceiro despejou uma sequência de socos e chutes contra a carne e ossos da sua pobre vítima. Debatendo-se, Gustavo tentava contra-atacar, mas de nada adiantava: era uma batalha perdida.

— Marcondes mandou lembranças, seu véi traíra! Ele num se esqueceu daquela água amaldiçoada do poço! — Valter voltou a falar antes de acertar um forte chute no rosto do velho. — Se alembre bem disso!

Por fim, Gustavo Água-Santa viu o suposto cangaceiro se afastar vitorioso. O velho estava deitado na areia quente com o seu corpo coberto de hematomas e sangue. Nunca estivera tão rico no quesito dor: sentia que alguns dentes haviam sido quebrados, além de algumas costelas rachadas. Seus olhos e lábios estavam inchados, de forma que sua fisionomia estava mais feia que o usual. Para piorar, havia perdido o cavalo, de maneira que tinha consciência de que sofreria para chegar em seu destino original. Deveria deixar a carroça para trás e pedir apoio na cidade mais próxima, ou contar com a ajuda de alguma boa alma pela estrada. Entretanto, uma decisão já havia tomado: não iria para Água Funda, ao menos não naquela condição. Marcondes haveria de receber a sua resposta, mas isso teria que esperar.

Por outro lado, Valter estava tremendamente satisfeito. Já fora do campo de visão do magnata, o ex-cangaceiro não mais sentia o incômodo do suor e do mau odor. Tudo que queria, na verdade, era voltar para Água Funda, tomar um banho e trocar de roupa para poder trabalhar para Marcondes como se nada tivesse acontecido. O prefeito não poderia suspeitar dos trabalhos alternativos de seu empregado. “Ele nunca vai desconfiar”, Valter pensava com fé, quase como uma oração fervorosa. Subiu no cavalo e começou a cavalgar. Na sua cabeça, já sentia o dinheiro que ganharia de Breno Farias. No entanto, lembrou-se: ainda havia o trabalho que o padre oferecera. Entretanto, não deveria ter pressa: não era a hora ainda. Antes disso, o religioso deveria dar o equipamento e o sinal. O mercenário aguardaria com ansiedade.

E, como se lesse os pensamentos de Valter a grande distância, Miguel já iniciava os preparativos para a execução de seu plano. Sentado de frente para o altar, o padre segurava uma pesada caixa de madeira. Posta sobre suas pernas, ela causava algum desconforto. No entanto, tal desconforto não se limitava ao plano físico: era, antes de tudo, psicológico. Dentro da caixa havia o dinheiro arrecadado na festa de São João. Fiéis de todas as classes, cores e lugares haviam depositado ali o seu dinheiro e a sua confiança na igreja. Esperavam que o dinheiro fosse ser utilizado para ajudar o sertão como um todo em relação ao problema da seca. Céus, até mesmo Breno, Sérgio e Marcondes depositaram boas quantias de dinheiro. Certamente que, no caso deles, havia uma certa obrigação política no gesto. No entanto, não deixava de ser uma ajuda necessária.

E, diante daquilo, o padre se sentia dividido. A destinação oficial daquele dinheiro era clara: construção de poços e doações em alimentos para famílias carentes, além de outras formas de auxílio. Entretanto, Miguel tinha outra coisa em mente. Na sua cabeça, a libertação de Diabo ainda era de grande importância para o futuro de Água Funda e, principalmente, para a derrota de Marcondes Maia nas eleições que estavam por vir. E o que aquela caixa tinha a ver com isso? Tudo.

Abrindo-a, o religioso viu notas e mais notas de dinheiro. Algumas amassadas, outras sujas de comida e uma minoria em perfeito estado. No fim do dia, todas valiam independente da aparência. Doía-lhe o coração pensar no destino que tal dinheiro não teria. “O destino oficial, o destino certo”, refletiu com pesar. No entanto, outra parte de sua consciência lhe dizia que “sacrifícios precisam ser feitos e você sabe bem disso”. E, com isso em mente, fechou a caixa outra vez.

Seus olhos se elevaram e pôde encarar a imagem de Cristo crucificado logo após o altar. Jesus parecia julgar-lhe, mas Miguel descartou aquilo. “É apenas coisa da minha cabeça”, concluiu. Até que ouviu aquela voz gasta:

com dúvida, padre? — Sorrateiro, João Cego observava as ações do religioso há minutos. — Num para de abrir e fechar essa caixa.

Miguel deu um sorriso triste. Sua situação deveria parecer patética para um espectador descontextualizado. Olhando para trás, viu que o homem de um olho só estava a poucas cadeiras de distância. Convidou-o para que se sentasse ao seu lado, bem próximo do altar. João aceitou o convite e sentou-se ao lado de seu bom e velho amigo.

— Algumas pessoas pensam erroneamente que nós, padres, somos homens cheios de certezas — Miguel começou a explicar como se desse uma aula. — Ledo engano! Somos homens tão cheios de dúvidas como qualquer outro. Talvez, para ser sincero, a nossa posição de responsabilidade nos coloque em dilemas ainda maiores. Não, isso não é um “talvez”; Isso é um “com certeza”.

— Padre, eu gosto muito de suas palavras, mas às vezes não entendo — Cego aproximou o olhar. — Seja sincero: como mesmo diz, qual o “dilema” de agora?

Mais uma vez, a densa barba branca do religioso escondeu o sorriso melancólico que se formou em seus lábios. No entanto, seus olhos encurvados entregaram a tristeza que a resposta poderia trazer.

— Como te explicar, João? — Miguel começou enquanto costurava as palavras futuras. — Eu sempre penso na maioria, entende? Penso a longo prazo, penso no bem comum e penso em como ajudar ao próximo. Penso, penso e penso. Às vezes, acredito que chego a pensar mais do que deveria, inclusive. Você já deve ter notado isso. E neste momento, eu tenho pensado muito sobre o futuro deste dinheiro.

O padre segurou a caixa com mais força, como se indicasse o peso que aquilo tinha em seu espírito, muito mais que em seu corpo. João Cego pensou em falar, mas optou pelo silêncio. Podia sentir muito bem que o religioso tinha mais o que dizer. No fim, estava certo.

— Estas notas suadas do povo de Água Funda deveriam ser destinadas para o auxílio do sertão — prosseguiu. — Isto é, doações, construções, entre outras coisas. O que fosse possível dentro das finanças, claro. Mas tenho outra coisa em mente. Algo que, talvez, muitas pessoas pensem ser errado ou imoral. Mas eu vejo diferente: enxergo como uma maneira de também contribuir com o sertão, mas de forma ainda mais efetiva. De forma duradoura!

— Como, padre? Mim explique — João queria genuinamente entender aquilo.

— Vivemos num mundo de estruturas políticas, João. Mudar algumas peças não adianta de nada, entende? — Miguel já falava com mais convicção e conforto. — Podemos doar alimentos e água, mas um dia eles acabam. Um Maia da vida pode aparecer e tomar, subverter ou mesmo usar essa ajuda a seu favor. Pode transformar o povo em gado. Afinal, não é isso que todos somos? Não, eu não acredito em “bem a curto prazo”. Deus que me perdoe, mas os meios não são realmente importantes. Precisamos mirar na estrutura, nos nomes grandes, nas mudanças profundas. Nos fins! Em síntese: não acho que esse dinheiro deva servir para comprar alimento e obter água, mas para impactar diretamente nas estruturas políticas. Só assim para tirarmos Marcondes Maia do jogo e alterarmos um pouco o panorama geral.

Óia, até que faz sentido, padre — Cego colocava a mão no queixo barbado enquanto processava aquelas ideias. Nunca tivera uma conversa daquele tipo com o padre anteriormente. — Mas o senhor acha que Breno Farias pode mudar essa “estrutura”? E se ele for um outro “Maia da vida”, como o sinhor mesmo disse?

— Não, ele não é — Miguel respondeu com uma convicção questionável. — Ele é diferente. Sei que parece meio exaltado, mas quer o melhor para Água Funda assim como eu e você. Ele só precisa do guia certo, e é exatamente isso que estou fazendo. O que você acha disso, João?

O homem de apenas um olho ficou pensativo. Refletia sobre todas aquelas questões filosóficas e políticas. Eram temas relativamente novos para ele, mas, ao mesmo tempo, pareciam tão humanos e ordinários. Que contraditório! Não conseguia conceber a normalidade daqueles elementos estranhos, mas deixou que seu instinto falasse mais alto. Assim, o instinto venceu a barreira da voz e libertou-se pela boca.

— Eu confio em você, padre. Mas ainda quero te deixar um aviso — João dizia com uma calma que transmitia sabedoria. Miguel ouvia tudo atentamente. — O homem pode ser mau. Eu digo, o bicho homi mesmo. Aprendi isso tarde, mas aprendi da pior forma. Num tem como eu esquecer. Mas se ocê acredita mesmo nessa bondade toda, faça o que pensa. O senhor já mim ajudou demais. Você é bom, Miguel. Você é bom!

E, acreditando plenamente que era bom, o padre olhou para a caixa uma última vez antes de se despedir de João Cego e carregá-la para fora da igreja. Tinha negócios a tratar. A estrutura política tinha que mudar e ele se via como um catalisador dessa mudança.

As horas rapidamente passaram e a noite chegou. Mais uma vez, o céu se apresentava limpo, quase sem nuvens. As estrelas brilhavam em todo seu esplendor enquanto a vida noturna de Água Funda dava seus primeiros passos. Já tendo conhecido a maioria dos estabelecimentos voltados para o entretenimento, José de Lima decidiu que estava na hora de levar a sua mulher para um lugar agradável. Não, não poderia ser um bar. Esses locais costumavam ser sujos e cheios de bêbados inconvenientes. Um restaurante, sim! Mas qual? Zé vasculhou em sua memória até se lembrar de um bem interessante.

—  Cê vai amar! — Prometeu a Bia enquanto ajudava a moça a montar no jumento Carlinhos.

O restaurante nem ficava tão longe, mas o casal já sentia uma certa saudade do tempo em que andavam juntos a cavalo, ou melhor, a jumento. Bia se agarrava nas costas do seu amor e aproveitava toda a viagem enquanto trocavam calor. Ela já havia contado a ele sobre o destino terrível de Antônio e a nova situação dos membros restantes da Lagoa da Esperança. Enquanto a garota ainda estava triste com tudo que descobriu, o rapaz parecia preso num estado de negação. Até tinha derramado algumas lágrimas ao saber da morte de Antônio, mas desde então parecia ignorar o assunto, como se nada tivesse ocorrido. Bia odiava aquele comportamento, mas respeitava o luto diferenciado de seu noivo.

— Chegamos! — José exclamou.

O casal se via de frente para um casarão. Com as portas abertas, podia-se ver a amplitude do espaço interno, além da organização do lugar: com mesas e cadeiras bem distribuídas, o dono havia ainda dedicado um bom espaço para a exposição de instrumentos musicais antigos. Contava ainda com cabeças de gados bem preservadas na paredes, algo que causava nojo ou admiração dependendo de quem observasse. Porém, os olhos de José olhavam para outro local. Antes mesmo das grandes portas que davam acesso ao salão principal, estendia-se uma espaçosa varanda. Por ela, circulava uma brisa leve e podia-se olhar para a cidade enquanto se deliciava com o jantar. “Bia vai amar”, Zé pensou antes de escolher uma mesa.

Quanto a movimentação, o lugar estava quase vago, apesar de haver uma ou outra família pelo salão principal. Após prender Carlinhos e oferecer-lhe um pouco de palha que levava na algibeira, José caminhou com Bia até a mesa escolhida momentos atrás. Como um cavalheiro, ele puxou a cadeira para a moça, que soltou uma breve risada antes de se sentar. Rindo de uma orelha a outra, Zé foi até o outro lado e sentou-se olhando nos olhos de sua amada.

— “Capim de bode” — O homem revelou o nome do lugar. — Chique, né?

— Mais ou menos — Bia não segurou o riso. Apesar de seu estado emocional ainda fragilizado, a garota conseguia encontrar diversão no jeito brincalhão de José. — Este canto parece bom.

— E é! — Zé rapidamente gesticulou para que um garçom viesse oferecer o cardápio ou ao menos falar as opções de jantar. — Tentei trabalhar aqui, mas num tinha mais vaga. Por sorte, ainda pude ver as comida que os homi faz. Que negócio bom!

Beatriz pôde conferir: viu um dos garçons levando um prato recheado de carne de sol na nata, feijão verde e arroz da terra para uma família no salão principal. Ela não podia falar do sabor, mas a aparência era maravilhosa. Mesmo de longe, a carne brilhava e ela podia jurar que sentira o cheio do tempero do feijão.

— Acho que vou querer o mesmo — disse para José enquanto apontava discretamente para o prato em questão.

— Seu desejo é uma ordem — Zé respondeu com a voz abobada de costume. Assim que o garçom chegou, fez o pedido e voltou a olhar para sua esposa. — Mas então, meu bem? Ocê parece meio...

Não sabia exatamente o que dizer. Admitir que ela estava mal seria admitir que ele também estava. Confrontar os sentimentos da garota requereria que ele confrontasse os seus próprios, e isso seria duplamente difícil. Mas, no fim das contas, ela era o amor de sua vida. Ele tinha que fazer esse esforço e sabia disso.

— Ainda triste com o negócio de Antônio, né? Eu também — admitiu o que ambos já sabiam.

— Sim, só que tem mais — Bia ainda não havia falado do diário de Augusto Nunes e da resolução que tivera com Padre Miguel. — Quando eu falei com o padre, também tinha outra coisa. Sabe a casa em que trabalho? A do delegado?

— Sei sim — pela primeira vez na noite, Zé fez uma expressão de seriedade. — O que foi?

— Ele tem um diário em que escreve tudo que faz — ela explicou. — Acontece que eu li e descobri que o homi junto dos cangaceiros. Quer dizer, não ele, mas Marcondes. Só que como o delegado trabalha pro prefeito, então dá no mesmo, né?

Cobrindo o rosto com as mãos, José de Lima parecia querer não ver aonde aquilo daria. Por que a confusão parecia sempre segui-los? Ou será que eram eles que a seguiam? Não saberia dizer, mas podia pressentir muito bem que aquilo iria resultar em algo terrível.

— Ei, ei — Bia odiava aquele gesto, ainda mais naquele contexto. — Olha pra mim.

Lentamente, José de Lima retirou as mãos do rosto. A sua face expressava um sorriso forçado, representando toda aquela negação que retornava. Beatriz riu com desgosto, pois sabia que não restava mais nada a não ser contar o resto da história.

— O padre já sabe disso, Zé — prosseguiu. — Ele pediu pra que eu continuasse trabalhando lá. Quer que eu descubra mais coisas.

— Ah, não! — A voz de José de Lima saiu com maior intensidade, de forma que chamou a atenção dos poucos presentes no restaurante. Percebendo que era ouvido por alguns curiosos, ele rapidamente reduziu o volume vocal. — Bia, é mais confusão! Num dá mais. Já foi a Lagoa, agora você. Vamos parar com isso, tá?

“Confusão”, a palavra ficou ecoando na cabeça do homem. Ele sabia que estava sendo hipócrita: “trabalhava” no lugar e da maneira mais propícia para que esse tipo de coisa acontecesse. Mas o que podia dizer? Acreditava piamente que conseguia se livrar das consequências. Quanto a Bia? Ele não tinha certeza se a garota contava com as mesmas capacidades.

— Devem ter outras casa — falou para a moça como se a decisão já estivesse tomada. — Um monte de gente precisa de arrumadeira e esses negócio.

— José de Lima, não é questão de confusão! — Sentindo-se desafiada, Maria Beatriz falou com assertividade. — É a Lagoa da Esperança! Você se esqueceu do último nome? É isso que o padre faz, era isso que Antônio fazia: esperança! O que ocê espera de mim? Que eu fique parada sem agir? Não, isso não! Eu vou ajudar o Padre Miguel e ponto. Se você num gosta disso, meus pêsames.

Zé não encontrou qualquer resposta que pudesse dar. Respirou fundo e soltou o ar pela boca. Esperava que alguma palavra mágica saísse, mas nada foi ouvido, com exceção do som da sua insatisfação. Entretanto, não fazia diferença: Beatriz estava decidida e não havia nada que fizesse ela mudar de ideia. Minutos passaram-se e o silêncio se tornava mais e mais insuportável. Por sorte, os pratos de comida chegaram: o jantar estava servido.

Comeram em silêncio por alguns minutos. Bia queria falar algo, mas havia muito orgulho envolvido. Quanto a Zé, ele sentia-se pequenino demais para levantar a voz. Levou um tempo para então entoar as primeiras palavras.

— Desculpe — disse em baixa intensidade, quase inaudível. — Desculpa, Bia. Eu num quero ser mandão. Só preocupado. Você pode trabaiar onde quiser.

Falou de forma atrapalhada e quase infantil, mas cheia de verdade. Realmente pensava no bem estar da sua mulher e de sua criança, mas também entendia que ela tinha suas vontades e sonhos. Não queria lutar contra isso. Com um pouco mais de segurança e firmeza, Maria Beatriz respondeu:

— Tudo bem — sua voz veio um pouco mais doce que minutos atrás. — Ocê quer meu bem e eu quero o seu. É isso que importa.

E, dessa forma, quase como crianças, voltaram a trocar ideias carinhosas enquanto apreciavam a boa comida. No entanto, o momento de calmaria perdurou por pouco tempo. Enquanto alimentavam-se e conversavam, o restaurante começou a receber mais visitantes. A maioria deles trajava roupas boas e aparentava ter uma quantidade elevada de recursos financeiros. E, em meio roupas finas e cabelos bem penteados, Bia se deparou com aquela terrível feição.

Com uma camisa abotoada manchada e uma grande barba recheada de fios brancos, um homem com rosto peculiar se vangloriava diante das pessoas sentadas na sua frente. Tinha um sotaque único e, mesmo que estivesse de longe, Beatriz podia sentir seu terrível hálito regado a álcool. Era o maldito para quem sua mãe trabalhava!

José não via o homem, mas imediatamente percebeu a reação de sua amada: olhos arregalados, corpo retraído e um certo afastamento, como se quisesse fugir.

— Bia? — Perguntou antes de se virar para conferir o que a garota tanto olhava. — Que foi?

— É ele — a voz quase não quis sair, mas foi ouvida após algum esforço. Bia continuava com os olhos fixos no homem, que até então não havia percebido que era observado tão atentamente. — O homem que era dono da minha mãe. Foi por causa dele que mainha me deixou com Padre Miguel.

— O quê?! — Zé foi pego de surpresa. — O barbudo com cara estranha?

— Sim.

José de Lima observou o homem com grande indiscrição. Por sorte, o barbudo estava muito distraído com o prato que tinha sobre a mesa.

— Eu tenho que sair — Beatriz, dominada pelo medo, só pensava em fugir dali.

Zé não respondeu. A sua consternação inicial parecia ter se transformado em algo completamente diferente. O rapaz mal havia notado que sua noiva já estava de pé até ser cutucado por ela.

— Bia — ele disse em voz baixa, como se tivesse descoberto um grande segredo. Gesticulando para sua mulher se sentar novamente, só prosseguiu com a ideia até ter seu pedido atendido. — Ocê num vê? Se esse homi tá aqui em Água Funda, então sua mãe também tá!

— Mas... Não tem como... — Beatriz havia agora compreendido o estado de negação de seu homem.

— Não se preocupe — José colocou as suas mãos sobre as de Bia. Queria passar a mensagem de que poderia protegê-la de todos os perigos. — Ele num me conhece. Vou dar um jeito de encontrar sua mãe, Bia. Confie em mim.

E, vendo grande emoção nos olhos da sua amada, pediu a conta. Já tinha um plano em mente e mal podia esperar para pô-lo em prática.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigado pela leitura!

Preparem-se que o Sertão vai pegar fogo.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Diabo do Sertão" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.