O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 16
O fim do cangaço


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :)



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Parecia que tudo havia sido orquestrado pelo próprio universo. Era dia de São João, no entanto, naquela manhã, as pessoas se concentravam na praça central para acompanhar outra festividade. Era uma comemoração atípica, única, sendo ela planejada por ninguém menos que o prefeito Marcondes Maia. Sobre um palco improvisado, o homem olhava para as pessoas que se amontoavam na praça. Seus olhos passaram pelos pobres coitados e sedentos que esperavam pela próxima esmola da prefeitura, ao mesmo tempo em que também percebeu os mais abastados e confortáveis que desconfiavam de tudo que vinha da política, ou simplesmente se aproveitavam disso.

Ao seu lado, no palco, sua família se espremia. Francisca, sua esposa, já era acostumada a dar sorrisos falsos para o público. Lino e Luana, as duas crianças, ficavam atormentando o irmão mais velho, Guilherme, que estava com uma cara péssima. Olhando para o nada, o rapaz transmitia uma clara mensagem de decepção e derrota, algo que contrastava com o clima geral do momento. Do outro lado, Augusto Nunes se incomodava com tantos olhares em sua direção. Ele sabia: tudo aquilo era apenas teatro e nada mais. Era incômodo para o homem fazer parte daquela peça, mas ele já estava tão afogado naquilo que não via outra escolha.

Entretanto, apesar de tais figuras importantes, havia outra que chamaria ainda mais atenção. Com um atraso de quase vinte minutos, o governador do estado vinha para cidade de forma luxuosa: era transportado por um automóvel, a expressão máxima do futuro e do desenvolvimento. O som do motor logo atraiu olhares curiosos. Até mesmo pessoas que preferiram ficar em casa – que eram uma minoria – colocaram as cabeças para fora das janelas para ver aquilo ao vivo.

Descendo do carro, Sérgio Bezerra se apoiou na bengala para não cair. Tinha os braços gordos e era bastante corpulento, contrastando com o rosto chupado, quase como se tivesse morrido e fugido do caixão. Era quase careca, optando por pegar o tufo de cabelo que tinha e penteando ele para o lado, cobrindo assim a área desnuda de sua cabeça. Era uma figura caricata, mas ainda assim muito poderosa. Caminhou lentamente por entre o povo, que o reverenciava como um imperador. Dom Pedro II sentiria uma pontinha de inveja.

Sentindo ciúmes daquele tratamento diferenciado, Marcondes Maia fingiu um sorriso para esconder seu descontentamento referente ao atraso. Não mais importava: o homem havia finalmente chegado e o evento poderia prosseguir com normalidade. Após alguma dificuldade, Sérgio Bezerra subiu no palco e apertou a mão suada do prefeito. Deu o sorriso político de sempre e, para não perder o costume, acenou mais uma vez para o público extasiado. Após isso, cumprimentou os demais presentes ao seu lado.

Recolocando um sorriso um pouco mais sincero no rosto, Marcondes lubrificou os lábios e se preparou para falar. Sim, aquele seria o melhor momento do ano até então. Depois de vários golpes advindos de seu rival político, ele poderia finalmente revidar com algo concreto. Seria impossível não ser reeleito depois daquilo.

— Povo de Água Funda — começou com a falta de originalidade de sempre. — A cada dia tenho a impressão que vocês se importam mais e mais com política. Isso é muito bom! Só assim para fazermos nossa cidade e nosso estado crescer! Sendo assim, quero pedir que vocês manifestem todo o nosso apreço por Sérgio Bezerra, nosso governador!

Aplausos e gritos de apoio. Sérgio retribuiu com acenos e sorrisos, chegando a olhar para o prefeito e apertar-lhe a mão mais uma vez. Aquele era o jogo político de sempre. Não havia sinceridade ou ideologia, apenas poder. E disso, o prefeito e o governador entendiam muito bem.

— A cada dia, a união entre estado e municípios fica mais e mais importante — Marcondes prosseguiu. — Mas chega de lero-lero. Ouçam a boa nova da boca do próprio Sérgio Bezerra.

E, dando a palavra ao governador, Maia olhou para Augusto Nunes. Não disse uma palavra, mas o delegado entendeu tudo. Acenando de forma positiva, o homem fez o político entender que tudo funcionaria como planejado. O teatro estava armado e todos tinham ensaiado.

— Os políticos são eleitos pelo povo, mas Água Funda foi eleita por Deus! — Sérgio não tardou para começar a bajulação. Já pensava nos votos da eleição de dois anos no futuro. — Eu não conheço uma cidade no interior deste estado que tenha tantos feitos fantásticos. Água Funda é o oásis do sertão! Aqui tem-se energia elétrica, uma saúde que presta, educação, tudo, tudo e tudo. Já pensaram sobre isso? Acho que todo dia o cidadão de Água Funda deveria olhar pro céu e agradecer a Deus pela benção de viver aqui. Eu até gostaria, mas sou obrigado a morar no palácio do governo, aquela desgraça.

Gerou gargalhadas e mais aplausos. Sérgio tinha uma voz que misturava a calmaria e a sedução. Parecia entrar em sintonia com o povo e o carisma dele aparentava ser inesgotável. Prosseguiu:

— E agora, além de todas essas bençãos, podemos dizer que Água Funda tem uma segurança exemplar! Exemplar, vou repetir aqui para todo mundo entender — disse com convicção. Tal comentário, no entanto, levantou olhares desconfiados por parte do público. Como assim a segurança da cidade era exemplar? Um político fora baleado recentemente, uma delegacia havia sido invadida, entre outras coisas. O lugar parecia um tanto quanto infernal, na prática. — Calma, calma! Eu sei que essas palavras podem surpreender, mas eu posso provar o que digo. Não jogo palavras ao vento, não falo por falar! Sou governador do estado e posso dizer que Água Funda é uma das cidades mais seguras para se viver. Mas veja, de que adianta só dizer, né? Que venha a prova!

Sabendo que aquele era o momento mais esperado do dia, Augusto Nunes gesticulou na direção de uma charrete que estava parada ali perto. De dentro dela, três homens saíram. Dois deles eram policiais, enquanto o terceiro era ninguém menos que Diabo. O ex-cangaceiro estava algemado e expressava um claro abatimento em seu rosto. Além disso, a humilhação perturbava seu espírito. Mas o que iria fazer? Estava perdido e não tinha escapatória. Sendo arrastado de forma humilhante até o palco, foi exibido como Barrabás.

— Após um trabalho maravilhoso de Augusto Nunes e de todos os policiais de Água Funda, o Diabo do sertão foi preso! Diabo está preso, repito! — Sérgio se empolgava ao mesmo tempo em que as manifestações de apoio cresciam. Agora o povo acreditava: Água Funda estava se tornando um lugar mais seguro. Era só questão de tempo para se transfigurar no próprio Éden. Simples assim. — Comemore, povo de Água Funda. A bonança de uma administração maravilhosa só tende a aumentar!

A maioria das pessoas não entendia aquelas palavras, mas que importava? Soavam bem na boca do governador. Política não é exatamente sobre isso? Sobre soltar umas palavras bonitinhas para empolgar o público? Sérgio Bezerra acreditava nisso, assim como Marcondes Maia e até mesmo Breno Farias. Claramente fazia sentido.

A manhã prosseguiu com muita empolgação. Foram servidos pães amanteigados, cuscuz temperado e bastante café. O povo teve muito a ganhar com aquele São João antecipado. Sabiam que teria ainda mais: no turno da noite, a igreja deveria celebrar uma missa e fazer uma pequena festa, como a tradição mandava. Seria um dia feliz para todos, menos para Diabo, obviamente. Não tardou para o ex-cangaceiro ser posto atrás das grades. Nem reagiu: sabia que não adiantaria. Já havia aceitado em seu espírito que sua única função seria agir como a ferramenta de terceiros. “Que se dane tudo”, eram as palavras que mais ecoavam em sua mente.

Outro que sentia dor e desesperança era Augusto Nunes. Fazia parte do teatro de Marcondes Maia há anos e estava ficando cansado disso. Para piorar, ainda recebeu uma medalha do governador: era de bronze e tinha a bandeira do estado marcada nela. O delegado deu um sorriso falso, agradeceu, colocou-a no bolso da camisa e teve que ouvir que fizera um grande serviço pela cidade e pelo estado.

— Pelo Brasil até! — Sérgio quase gritou.

Após receber um típico tapinha no ombro, Augusto Nunes pôde se retirar e foi até a delegacia. Só queria trabalhar e nada mais. Não aguentaria olhar para o rosto daqueles mentirosos por muito mais tempo e nem mesmo para o da sua família. Estava desgastado e precisava de um breve exílio. “Tomara que tenha uma papelada gigante pra eu cuidar”, desejou de corpo e alma.

Após toda a festança, as pessoas foram retornando para suas casas. Precisavam se preparar para a noite de São João que chegaria em questão de horas. Entretanto, Marcondes sabia que ainda havia trabalho para fazer. Além de toda politicagem feita aos olhos do povo, conversas deveriam ser travadas com o governador. Negociações, ideias e acordos. Era assim que a coisa funcionava e ela estava longe de mudar. Isto é, caso mudasse algum dia.

Assim que adentrou a casa do prefeito, Sérgio apreciou os quadros de família espalhados, além do próprio espaço do local.

— Muito melhor que o palácio — disse de forma polida, ainda que os dois na conversa soubessem que aquilo não era verdade.

— Sem bajulação, por favor — Marcondes soltou uma risada meio abafada.

A dupla de políticos não tardou para se sentar. Enquanto isso, o restante da família Maia cuidava de seus próprios problemas: sabiam que não deviam interromper o patriarca enquanto ele cuidava do “futuro de Água Funda”. A família seguia muito bem essa regra.

— Podemos começar? — Bezerra tentou manter um bom nível de educação. Ao ver o gesto positivo por parte do prefeito, prosseguiu. — Olha, confesso que estou mesmo impressionado pela forma como você conseguiu prender Diabo. O homem era uma peste. Você soube que uma vez a força estadual fez uma emboscada para ele e seu bando? Jesus, foi terrível. Ele saiu do nada e conseguiu matar seis agentes da lei. Seis! Dá pra acreditar? Parece coisa de filme, pelo amor de Deus. Fico impressionado que você tenha prendido o homem sem perder ninguém.

— Nem foi tão difícil — Maia sentia-se poderoso. — Todo homem tem um ponto fraco. Todo! Num tem um que não tenha um momento de fraqueza. Foi só esperar esse Diabo ter o dele. Simples assim.

— Simples assim? E que momento foi esse?

— Ah, vai parecer engraçado, mas é real: eu soube que ele não mata criança. Tem um código moral ou coisa parecida. Se ele vê uma criança em perigo, parece que algum negócio dispara na cabeça dele, não sei explicar.

— E como você obteve essa informação? — O governador ficou genuinamente interessado em saber. Como o prefeito poderia entender tanto a respeito de um criminoso como Diabo? Aquelas informações eram deveras íntimas. Só alguém próximo do bandido poderia tê-lo contado.

— Eu tenho minhas fontes — Marcondes decidiu ser minimamente explícito. — Todos devemos ter, não é mesmo? O importante é que agora Diabo descansa atrás das grades. Isso será bom para todo o estado, não acha?

— Mas é claro — Sérgio soltou um largo sorriso. Ele sabia o que viria pela frente. “É a hora da barganha”, adivinhou. No entanto, seguiu com o teatro de sempre. — Eu não minto em meus discursos. O estado agradece, claro. E eu imagino que você queira um retorno referente a isso.

— Um incentivo por um trabalho bem feito e nada mais.

— Claro, claro! — O governador se ajeitou na cadeira. Sentia que estava chegando o momento dele mesmo fazer a proposta. Antecipar-se poderia ser algo realmente vantajoso. — Incentivos movem a humanidade. Sempre foi assim e sempre será. Acontece que recentemente eu tive uma conversa com o presidente. Como você sabe, essa história de cangaço é um verdadeiro pesar para o Nordeste de maneira geral. Ele quer que isso tenha um fim definitivo. E sabe, eu entendo que capturar Diabo foi um desafio. Sei como tudo isso pode ter sido arriscado e dificultoso em aspectos que você prefere ocultar. Não te julgo por isso. No entanto, Vargas não vai se interessar por apenas uma cabeça famosa. Ele quer o fim e apenas isso. O fim do cangaço.

— Agora pronto! — Marcondes quase se levantou incomodado com aquele pedido absurdo. — Eu sou só um prefeito de uma cidade pequena, pelo amor de Deus. Quer que eu acabe com o cangaço, é? doido! e o presidente!

— Não, não, Marcondes! — Apesar do momento mais quente da conversa, Sérgio Bezerra mantinha uma voz serena. — Pedir pelo fim do cangaço a um simples prefeito seria estupidez. Mas existe um bando nas proximidades e você sabe disso. Já falei com os outros prefeitos, mas você me parece o único capaz de resolver o problema. Acabe com eles. Eu posso te oferecer apoio da força estadual. Faça isso e você terá o seu incentivo. Acredite, isso é para o bem de todos.

O prefeito ficou em silêncio. Aquele era um pedido e tanto. Porém, era ainda mais pesado quando se lembrava que ele trabalhava diretamente com tais cangaceiros. Foram eles, no fim das contas, que capturaram Diabo. Eliminá-los seria perder uma força de trabalho valiosa, mas poderia ser excelente para conquistar apoio do governador, tanto político como financeiro. É, a traição valeria a pena em troca de uma eleição.

Mim dê a força estadual — respondeu com sede pelo poder. — Eu cuido do resto.

Longe de negociações e debates políticos, Bia trabalhava. Antes de todo o evento político envolvendo Diabo, a garota fora até a casa de Augusto Nunes. Lá, encontrou-se com Priscila e a mulher informou que a jovem seria bem-vinda ali. Passou toda a manhã conhecendo a casa e, principalmente, as crianças. André era um garotinho cheio de disposição de dez anos de idade. Tinha os cabelos pretos do pai e os olhos apertados da mãe. Adorava futebol e vez ou outra tinha que ser censurado por jogar bola dentro de casa. Clara, por outro lado, era uma garotinha mais calma. Com sete anos de vida, ela já tinha um interesse chamativo por histórias e literatura infantil. Era uma criança doce e magérrima, e logo conquistou a afeição de Beatriz.

Teoricamente, Priscila deveria estar trabalhando como enfermeira naquele horário. No entanto, havia tirado uma folga para aproveitar o dia de São João. Além disso, queria fazer toda a apresentação necessária para Beatriz, além de conferir se a moça era confiável. As horas que passaram juntas, vale salientar, foram extremamente agradáveis. Com sua voz doce e seu comportamento gentil, Maria Beatriz encantou Priscila Nunes.

— Você é bem prendada — a esposa do delegado comentou enquanto a jovem ajudava na arrumação da cozinha. — Sua mãe te criou bem.

Bia deu um sorriso triste. Infelizmente, sua mãe não teve tempo nem ambiente para lhe ensinar as artes do lar. No entanto, ela teve a sorte de contar com Socorro de Deus e tantas outras pessoas da Lagoa da Esperança. “Que saudade”, foi o que pensou quando se lembrou de sua antiga casa.

— Eu sempre ajudava a arrumar as coisas lá em casa — não mentiu, mas também não falou a verdade de forma absoluta. — E também gosto muito de crianças.

Enquanto conversavam, os filhos de Priscila corriam de um lado ao outro. Clarinha tinha dado uma folga nos livros, enquanto André havia guardado a bola. Agora, irmão e irmã brincavam de pega-pega pela casa. Corriam, pulavam e gritavam. Aqueles sons animavam Bia. Ela se imaginava numa casinha simples ao lado de Zé. Os dois estariam cercados de filhos e se amariam muito. Sim, sem grandes planos políticos ou sonhos irreais. Apenas ela, ele, as crianças e uma vida feliz. Não pedia muito, mas ainda temia que isso nunca viesse a se realizar.

— Ah, eu já vi que Clarinha gostou muito de você — Priscila trouxe Beatriz de volta à realidade. — André é mais peralta, mas uma hora você se acostuma.

Bia soltou uma gargalhada. Acostumar-se parecia algo complicado para ela. Nas últimas semanas, a sua vida havia dado várias e várias voltas. Não teve tempo de parar, acalmar-se e simplesmente se acostumar. Toda hora algo mudava, o status quo se alterava. Como se adaptar?

— Como foi? — A pergunta da garota saiu incompleta. Percebeu a falta de clareza e reformulou. — Como você se sentiu quando descobriu que tava grávida?

— Bem — Priscila foi pega de surpresa. Não esperava por uma pergunta daquelas, chegando até mesmo a fazer uma expressão de estranheza. Parou por um instante, refletiu e respondeu. — Eu e Augusto já estávamos casados. Então foi natural, entende? A gente queria isso e bem... fizemos o que tinha que ser feito, né?

Soltou uma risada sorrateira enquanto as crianças continuavam a correr pela casa. Bia também gargalhou, ainda que invejasse aquela tranquilidade, aquela previsibilidade. Queria isso para sua vida. No entanto, logo percebeu que não tinha muito tempo para planejamentos. Sem ler tais pensamentos, a patroa prosseguiu:

— Acho que foi o melhor dia da minha vida — Priscila viu Beatriz olhá-la nos olhos para tentar captar todas aquelas emoções. — Ter André nos meus braços pela primeira vez foi mágico. Clarinha também. E então saber que eles cresceriam e seriam alguém? Meu Deus, nem sei descrever. Talvez não faça sentido: a ideia de criar uma vidinha que vai ter dar muita dor de cabeça e despesa, além de sujeira. Porém, confesso que nem tudo tem que fazer sentido. Certas coisas você só tem que sentir e apenas isso. E olha, eu sempre sinto essas crianças e sei que sempre vou sentir. Não trocaria elas por nada.

Maria Beatriz se viu com os olhos úmidos enquanto a mais velha ria com certa timidez, quase como tivesse se aberto demais para uma estranha.

— Por aqui feito — Bia disse quando terminou a arrumação da cozinha. Sua intenção, no entanto, era conseguir um pouco de espaço sozinha para refletir e sentir tudo aquilo que ouvira e imaginara. Ela sabia que sua criança ainda era um tanto quanto pequena em seu útero, mas já amava aquela vidinha com todas as forças. Mal podia esperar para tê-la em seus braços. — Agora...

— O quarto — Priscila completou. Então, um som de vidro sendo quebrado rompeu o momento. — André! Clara! Beatriz, pode ir arrumando o quarto. Vou ver o que esses pestinhas fizeram.

E, enquanto a mãe caminhava para decifrar o que os filhos tinham aprontado, Bia foi ao quarto do casal. Chegando lá, encontrou um lugar relativamente simples e bem cuidado. Contava com uma cama, dois criados-mudos, além de um guarda-roupas singelo, mas funcional. O ambiente contava também com um espelho preso na parede, objeto que Beatriz usou para se olhar. Sua barriga havia crescido? Talvez um pouco. Ou nada. Não saberia dizer. Será que Zé teria notado? “Não, me vendo diariamente não dá pra notar”, concluiu.

Deixando aquela conversa fiada de lado, olhou para o que tinha de sujo ou desarrumado ali. Logo viu algumas roupas deixadas sobre a cama, além de um pouco de poeira aqui e ali. Rapidamente resolveu o problema com a vassoura e, logo depois, dobrou as roupas – que estavam limpas – e colocou-as no guarda-roupas. No entanto, ao abrir o móvel, percebeu que uma das gavetas parecia meio frouxa. Aparentemente, estava suportando muito peso e, por causa disso, deslizava com certa dificuldade e passava a impressão de que cederia a qualquer momento. Percebendo que havia uma outra gaveta vazia, Bia logo tratou de retirar as roupas que estavam na danificada e as passou para a outra. Entretanto, logo se surpreendeu com o que viu.

Abaixo de todas as peças, aquela gaveta danificada guardava algo de interessante. Com uma capa feita de couro e letras costuradas a mão, uma espécie de diário ou agenda brilhava perante os olhos de Bia. Ela sabia que não era dona daquilo e que seria errado olhar o seu conteúdo, mas havia algo de misterioso e impressionante no objeto. Olhou para os lados e, percebendo que continuava sozinha, pôs as mãos no diário para examiná-lo. Era pesado e, pelo que a moça podia perceber, as páginas eram presas por uma sensível costura que ia de cima para baixo. Era um trabalho lindo e único, algo que realmente chamava a atenção. Porém, o que era realmente chamativo estava dentro daquilo.

Ao abrir o diário, Maria Beatriz viu que ele era exatamente o que se esperava: um diário. Passou os olhos pelas numerosas páginas amareladas e pôde perceber uma linguagem um tanto quanto poética que o tímido Augusto usava para descrever seus dias e suas observações. Isso certamente contrastava com a imagem de delegado que ele tinha. Entretanto, entre crônicas ordinárias e tristes reflexões, uma página fez Bia arregalar os olhos.

Colocando a mão sobre a boca, ela não podia acreditar que estava lendo aquilo. Passou os olhos pelo texto novamente para conferir e confirmou o que não queria que fosse verdade. O velho João Cego foi vítima duas vezes: além de preso pela polícia, foi sequestrado pelos cangaceiros. No entanto, o texto de Augusto Nunes entregava que tudo fora orquestrado por Marcondes Maia. O prefeito queria que o velho confessasse tudo para Augusto. No entanto, caso a via legal não funcionasse, os cangaceiros deveriam agir. “Todos eles trabalham juntos!”, Bia concluiu com revolta. Fechando o diário rapidamente e colocando-o de volta na gaveta, tratou de cobri-lo novamente com roupas. Logo em seguida, Priscila chegou.

— Você é rápida, hein? — A esposa do delegado brincou.

Fingindo não ter descoberto algo terrível, Beatriz sorriu para a patroa. Estar ali era um perigo, mas talvez fosse necessário. A única coisa que a moça sabia é que ela deveria rever Padre Miguel. O homem saberia dizer o que fazer. No entanto, enquanto o expediente não acabasse, deveria se comportar como se nada soubesse. Por sorte, Maria Beatriz sabia dissimular bem.

Seguiu o resto do trabalho em paz. Tudo transcorreu sem desconfianças por parte de Priscila, que provavelmente respeitava a privacidade do marido referente ao diário, ou pelo menos era o que Bia acreditava. Do lado de fora, o céu já estava escuro e a noite se preparava para chegar. Entretanto, a cidade não estava pronta para adormecer. Era dia de São João e as festividades estavam só para começar. Na verdade, naquele exato momento, Padre Miguel encerrava a missa da ocasião. Entre os tantos fiéis, estavam presentes Breno Farias, Marcondes Maia e Sérgio Bezerra. Os rivais políticos se entreolharam várias vezes, mas optaram por respeitar o momento sagrado.

Ao fim da celebração, Padre Miguel anunciou o jantar de São João. Muitas das boas comidas haviam sido feitas por Maria das Dores, contando ainda com a ajuda do menino Saulo. João Cego auxiliou o religioso no trabalho braçal, ainda que se mantivesse mais discreto. Preferia evitar qualquer possível confusão ou nova prisão. Nunca se sabia o que poderia acontecer.

As mesas estavam dispostas ao longo de toda a praça da cidade. No centro, barraquinhas vendiam diferentes alimentos. Algumas comidas, inclusive, foram doadas por pessoas abastadas – ou nem tanto – da cidade. Um bom exemplo, foi a enorme quantidade de canjica cedida por Breno Farias. Ainda que desgostasse do padre, Marcondes Maia também cumpriu com sua obrigação política e cristã: doou litros e litros de creme de galinha para o evento. O dinheiro arrecadado tinha como objetivo o desenvolvimento de obras de caridade, incluindo água para moradores de regiões distantes e paupérrimas. E, a depender da movimentação, os ganhos seriam elevados.

Pobres e ricos caminhavam com animação pela praça enquanto outros dançavam, comiam ou simplesmente conversavam. Um homem numa sanfona apresentava uma bela canção enquanto pares para a quadrilha de São João eram formados. A noite estava só começando, mas a alegria era geral. Entre os animados com a festa, também estava Sérgio Bezerra. O governador desembolsou uma bela quantia de dinheiro para ajudar a igreja. Tudo transcorria na mais perfeita paz.

Entretanto, havia quem transpirasse preocupação. Atravessando a multidão dançante, Maria Beatriz procurava por Padre Miguel. Fazia um bom tempo que ela não o via: desde a cisão da Lagoa da Esperança, de fato. Ela precisava contá-lo sobre suas descobertas, pois nunca se sabia os riscos que os opositores de Marcondes corriam. Após muito aperto e agonia, a garota finalmente encontrou o religioso.

Ele estava distraído, como que perdido em pensamentos. Olhava para o nada, de forma que não viu a moça se aproximando.

— Padre! — Bia disse com felicidade antes de lhe dar um abraço. — Como é bom te ver!

Miguel foi pego de surpresa. No entanto, logo aceitou aquele abraço carinhoso e retribuiu o amor. Olhou para os olhos da garota e deu um singelo sorriso.

— Como é bom vê-la, menina — disse com uma voz calorosa. — Não esperava encontrá-la aqui na festa. O que está achando?

— Ah — Bia, tão focada que estava, nem havia se dado conta que era São João. Só agora seus olhos e mente processavam o evento como um todo. E, aos olhos da garota, tudo parecia muito organizado e bonito. — Está impressionante, padre. Mas não é sobre isso que quero falar.

A voz dela pareceu aguda e apressada, como a de quem passa por um grande sufoco. E talvez passasse, afinal de contas. Percebendo isso, Miguel endireitou a postura e se concentrou na jovem. Com os ouvidos bem atentos, perguntou:

— O que houve?

— Eu trabalhando na casa do delegado Nunes — ela falou numa voz de baixa intensidade, de forma que o padre quase não ouviu. Estava nervosa e seus lábios tremiam enquanto dizia aquilo. — Acontece que eu descobri uma espécie de diário dele e eu li. Meu Deus, padre!

— Calma, menina — Miguel estava agoniado. Não aguentava mais aqueles intervalos. A ansiedade estava quase o matando, ainda mais naquele contexto. — O que é que você descobriu?

Olhando para todos os lados, Beatriz queria ter certeza que não tinha nenhum bisbilhoteiro. Viu Marcondes distante, mas o prefeito parecia distraído demais conversando bobagens com a família e com Sérgio Bezerra. Breno Farias, por outro lado, parecia calado e insatisfeito. Tendo a certeza que ninguém a observava, Bia prosseguiu:

— Os cangaceiros estão com Marcondes! Foi ele que mandou que pegassem João Cego na cadeia, padre! — Ela apertava as mãos com força, como se quisesse se agarrar em algo para não ser levada pela onda de medo e perigo. — Marcondes manda em tudo!

O religioso manteve-se em silêncio. Processava aquelas informações enquanto tentava não ter nenhuma reação espalhafatosa. Pensar que os cangaceiros atuavam para Marcondes não era exatamente uma surpresa, ainda que o padre não esperasse que o envolvimento fosse tão profundo. Entretanto, o fato de todas essas informações estarem em um diário era algo surpreendente. Poderia ser muito útil para prejudicar o prefeito, sem dúvidas.

— Beatriz, eu vou lhe dizer uma coisa — começou a falar com frieza, chegando até mesmo a causar certa estranheza na garota. — Quero que saiba que João Cego está vivo. Não pode vê-lo agora, pois prefiro mantê-lo oculto de toda esse gente, mas ele está superando todo o ocorrido. Sobre o ocorrido em si, como dizer? Não existe outra forma: Antônio foi morto. Ele se sacrificou por toda a Lagoa da Esperança.

Lágrimas começaram a se formar nos olhos de Bia. Querendo evitar chamar atenção, o padre logo tratou de conduzi-la para um lugar mais escuro e afastado.

— Mantenha a calma, ? — Continuou sendo frio, mas Beatriz compreendia o motivo, ou pelo menos acreditava compreender. — Maria das Dores e Saulo estão bem. Ajudaram-me na organização do São João. A Lagoa da Esperança não morreu e você pode nos ajudar a manter o ideal vivo. Você está disposta a isso?

Afetada pela emoção do momento, não tinha possibilidade de Bia dizer “não”. Balançando a cabeça de maneira positiva, ela deu a resposta que o padre queria. Ele então progrediu com a ideia:

— Eu adoraria ter esse diário em mãos, mas é muito arriscado. Você poderia ser descoberta e isso seria ruim, muito ruim — Miguel refletia enquanto falava. — Não, não. O melhor é que você continue trabalhando lá. Eles não sabem quem é você e vão continuar assim. Trabalhe por lá como se nada tivesse acontecido, como se você simplesmente não soubesse de nada. Sei que é duro, Bia, mas é como as coisas são. Faça isso e, no momento certo, iremos dar o nosso contra-ataque. Marcondes vai pagar por tudo que fez, tenha fé. Posso contar com você?

E, ouvindo tudo aquilo enquanto suprimia fortes emoções, Maria Beatriz respondeu:

— Sim.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura :)



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