O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 18
Inferno


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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O sol mal podia ser visto no horizonte, mas Breno Farias tinha pressa. Apesar da temperatura amena, suava frio e esbanjava irritação. Tivera uma noite recheada de pesadelos e não conseguira adormecer desde então. Ainda assim, tivera sorte pelo simples fato de despertar: havia se esquecido que tinha marcado uma reunião com Padre Miguel e Valter naquele horário. Levantando-se da cama com pressa, vestiu uma camisa de botões, abotoou-a de forma errônea e deixou sua casa sem perceber. Caminhou pela cidade vazia até se deparar com a residência simplória de Valter. Olhando para os lados com suspeita, logo começou a bater repetidamente na porta.

— Valter! Valter! — Repetia o nome de forma irritante. — Abre logo essa porcaria!

Sua ordem foi realizada. No entanto, os olhos inquisidores de Valter ficaram encarando Breno por longos segundos através da fresta que fora aberta.

— Silêncio! — O rosto do homem esguio estava inchado e era evidente que ele também não dormira bem. Após a advertência, abriu totalmente a porta e permitiu que o candidato a prefeito entrasse. — Vê se num faz barulho!

Soltando um sorriso irônico, Breno adentrou o local. Ainda que não respeitasse Valter, fez o silêncio que lhe fora pedido. O homem devia estar muito preocupado com o filho que dormia, apesar do político pouco se importar com isso. Porém, não queria ter mais estresse durante aquele dia. Além disso, tinha algo que chamava mais a sua atenção do que as ideias sorrateiras e arrogantes que vez ou outra assaltavam sua mente. Iluminado pelas chamas tremulantes de velas, Padre Miguel analisava incontáveis papéis e livros sobre a mesa da cozinha. Com a testa franzida, o religioso revelava toda a sua concentração naquela tarefa. Havia ainda, vale salientar, mais um elemento que chamava a atenção de Farias. Sob a mesa, uma grande caixa de madeira destoava do ambiente.

— Espero não ter me atrasado muito — a voz do político saiu grave em decorrência de seu sono recente. — Tive um pesadelo horrível.

Padre Miguel apenas levantou os olhos e observou Breno por breves segundos. Rapidamente voltou a conferir os papéis. Ignorando o fato de que havia sido ignorado, o político puxou uma cadeira e se sentou ao lado do religioso. Começou a contar o tal pesadelo:

— Sonhei que o dia das eleições havia chegado. Estava tudo armado e eu tinha a vitória em minhas mãos. Minha nossa Senhora, a gente tinha até preparado uma comemoração na minha casa, acredita? — Mais distante, Valter ouvia aquela história com certo desinteresse. Não demorou para puxar uma cadeira e apoiar o queixo sobre as mãos. Só queria que aquele discurso acabasse logo. — Mas aí o jogo virava. Marcondes, através de alguma tramoia que eu não pude entender, ganhava as eleições. Dá pra acreditar? Não, não dá. Acordei enquanto quebrava alguns objetos no sonho. Vi-me sentado na cama quase arremessando um livro que deixo sobre o criado-mudo. Meu Deus, foi um gostinho do inferno!

Como se não ouvisse toda aquela história, o padre mantinha os olhos nos papéis. Irritado com a falta de atenção, Breno esticou o pescoço para ver o que atraía tanto o interesse do religioso.

— Aqui! — Miguel exclamou antes que o político pudesse entender o que se tratava. — Uma planta-baixa da delegacia. Eu sabia que estava em algum lugar.

— Como é que é? — Sentindo menos sono a cada minuto, Breno tinha genuíno interesse em entender o que se passava.

— O padre trouxe alguns presentinhos — Valter se adiantou de forma impaciente. Também sonhava com um dia em que pudesse acertar uns bons socos no rosto de Breno. — Essa caixa aí, mas também alguns registros da igreja.

— Hã? Caixa pra quê? Registro pra quê? — Breno Farias parecia ter se esquecido de tudo que fora conversado dias atrás.

Olhando com descrença para o político, Padre Miguel expressou toda sua insatisfação sem precisar dizer uma só palavra. Valter, por outro lado, não foi tão gentil.

— Acorde, pamonha! — O homem desrespeitou a própria ordem que dera sobre fazer silêncio, mas sentiu que valeu a pena. — Os explosivos e a arma. Lembra?

“Ah, sim”, Breno se lembrava. Sentia-se um estúpido por ter deixado isso escapar a memória. No entanto, agora tudo fazia sentido. Lembrava-se bem da reunião que tivera com Padre Miguel e Valter. De vários planos falados, um chamou a atenção: o resgate de Diabo. O religioso tivera a ideia de usar dinamites para explodir uma das paredes da cadeia e assim libertar o ex-cangaceiro. Ele explicara que poderia usar o dinheiro do São João para comprar os itens necessários numa mina que ficava a alguns quilômetros da cidade. “Parece que o homem realmente tem colhões”.

— Eu me lembro sim — Breno disse antes de dar um leve chute na caixa. — Mas e esses registros, padre? Não lembro de termos falado disso durante a reunião. E você acha que é uma boa ideia ter velas tão perto dessas dinamites?

Farias soltou uma gargalhada, mas não teve a mesma resposta de seus aliados. Soltando um suspiro, Miguel virou um dos documentos que analisava e mostrou para o político.

— Veja — indicava com o dedo alguns pontos específicos no papel. — Como eu disse, aqui temos a planta-baixa da delegacia. A igreja tem vários documentos importantes da cidade, principalmente referentes a construções mais antigas. A delegacia é uma dessas construções. Eu tinha a esperança de termos este documento para podermos elaborar o plano com maior eficácia, entende?

Observando o papel, Breno recuperava parte das suas faculdades mentais. Conseguia compreender melhor o plano ao mesmo tempo em que falava menos bobagem.

— Olhe bem — o padre começou a explicar. — Após toda a parte administrativa, as celas se distribuem pelo espaço mais ao Sul da delegacia. São oito celas, sendo que seis delas estão encostadas nas paredes. Há mais duas centrais. Agora pense: se descobrirmos em qual cela Diabo está, então podemos escolher o melhor lugar para usar os explosivos, sem que isso signifique matar o homem com a explosão. Fui claro?

Observando tudo mais distante, Valter sorria ao pensar na execução daquele plano. Por mais arriscado que fosse, certamente seria divertido. Mais próximo do padre, o político acreditava que era um tanto perigoso. Não entendia muito de explosivos, mas acreditava que aquilo poderia dar problemas.

— Não seria melhor só o homi invadir a delegacia pela porta da frente e sequestrar Diabo? Não foi assim que fizeram com o Cego? — Breno questionou enquanto apontava para Valter.

— Mas com Cego tudo estava planejado — Miguel foi explícito. — A coisa agora é diferente, Breno. Existem outros policiais além de Augusto e eles vão atirar em um homem estranho. Isso não foi combinado com Marcondes, diferentemente do outro sequestro.

— É claro — Valter afirmou de forma provocativa. — Mas então, quando é que cês vão querer essa explosão?

Breno ficou calado. Podia sentir que não estava em seu melhor momento. Ao invés de levantar a voz, escolheu levantar o olhar em direção do padre. Esperava que o religioso tivesse alguma ideia eficaz. Sentindo a responsabilidade que tinha, Miguel falou de forma serena:

— Vamos esperar que Marcondes e Gustavo Água-Santa soltem suas faíscas — olhava um momento para Valter, outro para Breno. — Valter me falou da execução da primeira parte do plano. Se a coisa aconteceu do jeito que ele disse, acredito que seja só questão de tempo para Gustavo falar umas boas verdades para o prefeito. Aí sim seria uma boa hora de soltar o Diabo em todos os sentidos.

— Então é isso? — Farias questionou. — Nós simplesmente esperamos?

— Por enquanto, sim — o padre respondeu com convicção. — Mas eu sinto que não levará muito tempo. Além disso, já tenho trabalho a fazer.

Miguel retirou um pequeno pacote de sua bolsa. Embalado em papel jornal, um singelo sanduíche causou estranheza em Breno.

— Vai montar um restaurante? — Tentou ser jocoso e engraçado novamente. Mais uma vez, arrancou nenhuma risada.

— Irei levar um lanche para Diabo — o religioso explicou. — Como um bom cristão, devo auxiliar a salvação da alma dos condenados. Logicamente que aproveitarei o momento para analisar a delegacia mais de perto e, principalmente, a distribuição das celas. Será ótimo saber exatamente onde Diabo passa seus dias e noites.

realmente pensa em tudo — Valter soltou um elogio, algo raro de acontecer.

Dando um sorriso sincero, o padre foi até a janela. Seus olhos puderam ver o resplandecente sol se elevar lentamente sobre todo o sertão. A manhã havia finalmente chegado.

— Acho melhor eu ir — afirmou antes de recolocar o alimento na bolsa de couro. — É bom aproveitar antes que o tempo esquente.

E, despedindo-se de seus aliados, Miguel partiu rumo à delegacia. Caminhou por longos metros e, ao longo do caminho, deparou-se com uma cidade que despertava aos poucos. Homens e mulheres já saiam para trabalhar e deixar seus filhos na escola. Outros davam início aos trabalhos domésticos, enquanto os mais velhos sentavam-se em cadeiras sobre as calçadas para vigiar e conversar sobre a vida dos outros. O calor começava a tomar conta das ruas assim como o afeto das pessoas pelo padre. Vez ou outra, ele via-se abençoando indivíduos que estendiam-lhe a mão em busca de um contato com o sagrado. Miguel sempre respondia essas pessoas com humildade e alegria, pois sentia-se verdadeiramente realizado em fazer isso.

— Oh, padre — uma mulher paupérrima disse com uma voz que misturava o sofrimento com o fervor da fé. A coitada tinha pouquíssimos dentes e um rosto um tanto quanto sofrido. — Dei todo meu dinheirin na festa de São João. Que Deus faça um milagre pelo meu marido doente. Num sei mais o que fazer.

Miguel sentiu um verdadeiro choque ao ouvir aquilo “Dinheiro esse que foi revestido em explosivos e munição”, sua consciência acusou. Quase estático, o religioso causou estranheza à pobre mulher.

— Padre? — Ela perguntou com insegurança. — O sinhô tá bem?

— Ora, estou ótimo — ele mentiu. — Mantenha a fé, dona. Deus há de abençoar você e toda sua família.

“Sim, Ele vai”, o padre pensava consigo mesmo. Não queria admitir a possibilidade de que prejudicara aquela família mais do que o sertão já fizera. Tinha plena certeza: as consequências políticas de sua empreitada fariam tudo aquilo valer a pena. “É um pequeno preço. Muito pequeno”, reafirmava incontáveis vezes.

Por fim, esquivando-se dos gritos de sua consciência, chegou na delegacia após distribuir muitas bênçãos. Prontamente adentrou o local e se deparou com aquilo que já esperava: homens trabalhando com pilhas de papel que não levariam a lugar nenhum. Dentre eles, Augusto Nunes mantinha sua expressão de estranheza usual. O homem parecia estar sempre desconfortável com algo.

— Padre — um dos policiais, extremamente católico, fez uma reverência ao religioso. — É bom ver o sinhô aqui.

— Agradeço pela reverência, mas eu não mereço isso — Miguel respondeu e virou-se para Augusto. — Olá, delegado. Como você está?

— Eu estou bem, padre — o delegado respondeu de forma fria. Parecia estar pouco interessado em conversar. — O senhor precisa de alguma coisa? Alguma denúncia a fazer?

— Não, não. Na verdade, estou aqui exercendo meu dever cristão. Soube que o tal do Diabo está confinado em uma de suas celas, certo? — Ao dizer isso, o padre retirou de sua bolsa a comida empacotada que preparara momentos atrás. — Quero conversar com o preso, além de oferecer um alimento um pouco mais apetitoso do que o que ele recebe aqui.

— Ele é um homi ruim, padre — um dos policiais se intrometeu. — Matou uma ruma de gente.

— Um pecador como todos nós — Miguel explicou. — Ainda que tirar a vida humana seja algo terrível, ele não deixa de ser um filho de Deus. E, por mais duro que possa parecer, devemos tentar trazê-lo de volta ao rebanho de Cristo. Eu, na figura de padre, tenho essa missão. Acredito que vocês compreendem isso, correto?

— É claro — Augusto Nunes concluiu. — Vamos, siga-me.

O delegado gesticulou para que um dos policiais desse continuidade ao trabalho com os papéis. Enquanto isso, conduziu o religioso pela delegacia. Passando pela ala administrativa, chegou finalmente na área onde ficavam as celas. O lugar seguia exatamente o modelo da planta-baixa ao qual o padre tinha acesso. Dando um sorriso discreto, ele comemorou com enorme alegria e gratidão.

— Aqui está o homem — Augusto indicou a cela. Era a terceira a esquerda. — Volto em dez minutos, padre.

E, retirando-se dali, o delegado deu privacidade a Miguel e Diabo. O padre, antes de tudo, observou as celas ao lado. Estavam vazias. Isso era ótimo: assim não colocaria nenhuma vida em risco com as explosões futuras. Diabo, por outro lado, encarava o religioso com olhos raivosos. Lembrava-se bem dos problemas na Lagoa da Esperança e de como aquilo o fizera parar ali na cadeia.

— Por que ocê tá aqui? — O ex-cangaceiro questionou antes que o padre tivesse chance de falar qualquer coisa que fosse. — Não te chamei.

— Diabo, eu sei que você ainda sente desgosto por tudo que aconteceu — a voz de Miguel havia mudado. Se antes ele apresentava grande serenidade, agora um certo ímpeto tomava conta de sua fala. — Todos nós sentimos uma enorme dor pelo ocorrido. Mas nós ainda não perdemos o jogo. Eu disse que teríamos nossa vingança.

— “Nós”? Você tá doido, padre? — Diabo soltou uma gargalhada irônica. — Ocê num faz nada de bom. Mim salvar foi um erro! Dê o fora daqui!

— Ainda não — Miguel manteve-se firme. Retirando o sanduíche que preparara, entregou-o para o homem que o recebeu com estranheza. — Isso aí é pra você. Sei que não te servem muita coisa boa.

Encarando o alimento, o ex-cangaceiro teve vontade de arremessá-lo longe pela simples raiva que sentia. No entanto, o cheiro e a aparência falaram mais alto. Estando morto de fome, logo tratou de dar a primeira mordida e se deliciar com a comida. Sentindo o belíssimo sabor, seu humor tornou-se levemente mais agradável.

— Ouça-me — o padre prosseguiu enquanto o homem cheio de cicatrizes comia. — Eu sei que você não gosta desse jogo político. Sei que odeia o fato de seus ex-colegas trabalharem pra Marcondes, assim como detesta a ideia de trabalhar pra Breno. Não é isso que eu quero, não é isso que ninguém quer. Eu só quero justiça, Diabo, só isso! E sei que, bem aí dentro do seu coração, você também quer isso. Se não quisesse, não teria ficado tanto tempo na Lagoa. Eu sei que você quer pôr um ponto final nisso. Vamos fazer isso juntos!

Descrente, Diabo balançou a cabeça negativamente. Logo em seguida, comeu o último pedaço do sanduíche. Sabendo que o tempo estava acabando, Miguel agilizou o discurso:

— Você será libertado em breve — o religioso observava cautelosamente a resposta silenciosa do ex-cangaceiro em suas expressões faciais. — Eu lhe fiz uma promessa e irei cumpri-la. Teremos nossa vingança e sei que você irá nos ajudar nisso. Eu tenho fé em você, Diabo.

E, apostando que o homem aceitaria aquelas ideias, o padre deixou a cela assim que ouviu a porta abrir e o delegado se aproximar. Por outro lado, Diabo ficou pensativo. Odiava aqueles joguinhos, mas detestava ainda mais ter sua liberdade tolhida. Ao mesmo tempo, tinha um senso de honra que lhe mantinha preso a antigas promessas e dívidas. No fim, estava na situação de sempre: era apenas um peão na mão de pessoas mais poderosas. Já havia aceitado seu destino e tinha certeza de que ele não mudaria. Apenas torcia para que ao menos pudesse derramar o sangue de seus inimigos no caminho.

Longe de tudo, cinco homens fardados cavalgavam ferozmente enquanto desbravavam o calor do sertão. Já haviam deixado as estradas convencionais há tempos: seguiam um caminho único, caminho esse que um homem poderoso havia indicado. Seguindo o conselho de Sérgio Bezerra, Marcondes Maia pediu apoio da guarda estadual e informou aos homens a localização do bando de Lúcio Arcanjo.

— Não são grande coisa — o prefeito dissera ao governador antes de confirmar o pedido. — Pegando eles de surpresa, acredito que uns cinco homens deem conta do recado.

E, dessa forma, cinco agentes da lei se encaminhavam rumo ao acampamento dos cangaceiros. De fato, o prefeito estava certo: era um grupo pequeno que vivia ali. No entanto, também era fato que pequenos grupos podiam fazer muito barulho, ainda mais em ações rápidas e cirúrgicas. Entretanto, os homens do estado pensavam que o oposto também era verdadeiro: eles, apesar de poucos, poderiam muito bem causar um grande estrago aos cangaceiros. Bastaria uma ataque surpresa efetuado com firmeza o bastante para exterminar o grupo, ou pelo menos era assim que eles acreditavam.

No acampamento, as coisas seguiam tranquilas até então. No bar, Levy e Amanda jogavam cartas e bebiam, pois já tinham alimentado os cavalos. Enquanto isso, Eduardo Peixeira contava as economias do bando com a supervisão de Lúcio Arcanjo. Já Joana, matriarca do bando, permanecia na sua velha cadeira de balanço, ao mesmo tempo em que Caio, Carla e Carmen brincavam ao ar livre. Mais distante de todos, Lucas Furado fazia a vigilância do perímetro. Por outro lado, Regina Arcanjo, esposa do chefe do grupo, permanecia numa das casas lavando as vestimentas dos membros do bando. Como um dia comum, cada um tinha seu trabalho e todos conviviam em paz.

Olhando para o horizonte através de um luneta acoplada em sua espingarda, Lucas apreciava o mais completo nada. Era típico: desde que o bando se juntara a Marcondes Maia, eles não tiveram mais problemas envolvendo agentes da lei. No fim, a vigilância só era feita para evitar a possível aparição de um grupo rival, coisa que nunca acontecia. Até que, como uma obra do acaso, os cinco cavaleiros apareceram diante da luneta do cangaceiro.

Observando-os com atenção, Lucas estranhou. Não pareciam os policiais de Água Funda. Ao invés das roupas maltrapilhas dos homens da cidade, esses soldados usavam uma bela farda azul, além dos cinco trajarem quepes arrumados da mesma cor das vestimentas. Para piorar, era possível ver que traziam armamento pesado: espingardas, revólveres e mais outras máquinas de ceifar vidas.

Para a sorte de Lucas, o seu bando e os soldados estavam separados por centenas de metros, além de toda uma mata seca ao longo do caminho. Possivelmente, os cavaleiros apenas viam as estruturas do acampamento e nada mais. Dando um assobio, o cangaceiro chamou a atenção de seus colegas para a aproximação suspeita. Tendo ouvido o assobio, Carmen – que era a filha mais nova de Lúcio e Regina – sentiu o ímpeto de se aproximar de Lucas. Não estava tão distante do homem: ela e seus irmãos brincavam próximos do vigia. Caio e Carla, no entanto, advertiram a caçula.

— É pra voltar pa casa! — Caio alertou.

A mais nova, no entanto, não deu ouvidos ao irmão. Indo até Lucas, perguntou com sua voz infantil:

— O que foi, tio Lucas?

Foi um segundo fatal. No que Lucas se virou para falar com a criança, um dos soldados já estava alerta. Olhando para o cangaceiro através da mira sua arma, puxou o gatilho sem misericórdia e ouviu a explosão da pólvora. O projétil voou violentamente, cortando o ar como se não houvesse resistência, parando apenas para se alojar no peito do pobre cangaceiro. Sangue jorrou enquanto ele caía morrendo de dores no chão. Como primeiro impulso, Lucas gritou:

— Corra!

Percebendo que, pela primeira vez, o perigo era real, Carmen correu até seus irmãos que quase morriam de preocupação. Caio, o mais velho, pensou em ajudar Lucas de alguma forma, mas o cangaceiro ferido gesticulou para que o garoto corresse junto de suas irmãs. Enquanto isso, a metros dali, o grupo de agentes da lei já se separava. Um mantinha-se centralizado, enquanto duas duplas iam por flancos distintos. Erguendo-se dolorosamente, Lucas viu a manobra em seu princípio e até chegou a levantar sua arma. No entanto, foi em vão: o soldado centralizado já estava com a arma destravada e disparou sem dó alguma. A bala foi de encontro com a boca aberta do cangaceiro e saiu pela nuca, matando-o instantaneamente.

Enquanto isso, Caio corria com suas irmãs. Com seu instinto protetor, fez com que elas fossem na frente enquanto rezava para não ser atingido por nenhuma bala. Quando encontraram-se com os outros cangaceiros, viu que o lugar estava um caos. Lúcio, com os olhos arregalados, via-se agarrado a um revólver enquanto procurava pelos filhos. Quando viu as crianças, logo tratou de agarrá-las e conduzi-las até a casa onde a mãe estava. Àquela altura, Joana também já havia adentrado a residência, enquanto os outros cangaceiros deixavam o bar ou qualquer outro afazer que tinham.

— Eles mataram Lucas, painho! — Caio dizia em grande desespero. — Deixa eu ajudar!

— Não! — Lúcio respondeu furioso. Carmen e Carla já haviam adentrado a casa, restando apenas o garoto, que resistiu praticamente na soleira da porta. Distraído, o pai tentou empurrá-lo, até que uma bala passou de raspão pelo seu ombro. — Ah!

Olhando para a esquerda, viu que dois cavaleiros se aproximavam. Mais a frente, Amanda mirava nos algozes, enquanto Levy e Eduardo olhavam para o outro lado, de onde vinham mais dois soldados. Lúcio, entretanto, viu que ainda tinha mais um. Da direção que as crianças haviam aparecido, um último agente da lei chegava trazendo morte e horror.

— Seja o que Deus quiser! — Gritou em fúria enquanto erguia o revólver.

Lúcio não era burro: vindo inimigos de três direções distintas, ele sabia que não poderia ficar em campo aberto. A sua frente, o único lugar que oferecia alguma cobertura era aquela maldita casinha usada para torturas. Era um cubículo, mas poderia protegê-lo de ser alvejado com tanta facilidade. Encarando os algozes que se aproximavam, começou a correr enquanto dava tiros para se proteger. Teve sorte: de três disparos, um deles acertou a barriga do soldado que vinha pelo centro. Apesar de não ter sido um ferimento letal, o impacto da bala fez o corpo do homem tombar do cavalo. Por azar dele, o pé ficou preso e o animal, desesperado com a possibilidade de morte, correu com tudo que podia. Os cangaceiros quase riram ao ver o agente sendo arrastado violentamente pelo chão e gritar de dor até desprender o pé e desmaiar.

Não recebendo nenhuma bala, Lúcio chegou ao cubículo que tanto almejava. Nele, conseguia observar os dois lados perigosos restantes. Na direita, Amanda tentava lidar com dois cavaleiros, enquanto Levy e Eduardo se esforçavam para combater mais dois à esquerda. Os cangaceiros escondiam-se atrás de singelas estruturas de madeira da área, como carroças e pequenas cercas. Não cobriam grandes partes do corpo, mas serviam para evitar uma completa exposição. Ainda assim, balas voavam de um lado para o outro, mas ninguém era atingido. Até que Lúcio Arcanjo voltou a ser o alvo.

Com projéteis vindo dos dois lados, o chefe do bando abaixou-se, mas tal decisão mostrou-se cara: as balas dilaceraram a estrutura de palha de madeira da casinha. Farpas voaram para todos os lados, chegando a atingir os olhos do homem. Sentindo imenso ardor e, pior ainda, sem conseguir enxergar nada, Lúcio rapidamente abaixou-se enquanto coçava freneticamente os olhos. Porém, nada adiantava: a dor intensificava-se e as farpas pareciam ter se agarrado às suas pálpebras. Gritando de dor, o cangaceiro ainda tinha que conviver com o som ensurdecedor de balas que iam de um lado ao outro, perfurando madeira e palha de forma violenta.

Por sorte, Lúcio não estava só. Deixando sua cobertura e arriscando a própria vida, Levy Queimado levantou sua espingarda e mirou na cabeça de um dos algozes do lado esquerdo. Foi certeiro: pedaços de osso e cérebro se espalharam pelo chão e o corpo do homem caiu totalmente sem vida na areia. O colega ao lado tremeu e, em um momento de distração, permitiu que Eduardo Peixeira desse um disparo fatal. A bala viajou do revólver do cangaceiro até o coração do agente numa viagem de ida e morte.

Quando os homens se viraram para ajudar Amanda, viram que a mulher estava indo muito bem: mesmo com uma proteção muito menor, ela conseguia intimidar seus algozes com rápidos disparos. Ela usava dois revólveres e, apesar de perder precisão, tal postura era um tanto quanto intimidadora. Os agentes, por outro lado, realmente tinham o que temer. Ao ver três de seu grupo mortos ou caídos, eles sabiam que corriam alto risco de se encontrar com Deus antes da hora. Descendo dos cavalos agilmente, espalharam-se: um foi para um lado e o outro seguiu um caminho diverso. Tentavam se esconder para então empreender um ataque mortal contra o forte bando dos cangaceiros.

— Bando de fi de rapariga covarde! — Amanda gritou com ódio na voz. — Apareçam!

Ainda escondido, Lúcio Arcanjo agora se afligia com o silêncio. Aos poucos, conseguia se livrar da dor e das farpas que prejudicavam sua visão. Voltando a enxergar, viu que seu bando também se espalhava para matar os últimos desgraçados que atacavam a sua casa. Amanda, como sempre, caminhava com cuidado, ao mesmo tempo em que Levy e Eduardo já estavam cheios de toda aquela desgraça. Com o revólver na mão, Lúcio deixou o seu abrigo para caçar.

Oculto dos cangaceiros, um dos soldados tremia de pavor. Não acreditava que estava passando por aquilo. “Era pra ser fácil”, pensou com desgosto e medo enquanto tentava recarregar sua espingarda. Gastara todas as balas para acertar ninguém. Agora, suas mãos tremiam enquanto tentava colocar a munição onde deveria. Porém, assustou-se com o que viu: sem que percebesse a presença do agente da lei, Levy Queimado passou de costas para o homem. Deixando a arma cair no chão, o soldado foi notado pelo cangaceiro. Desesperado, o homem saltou sobre Levy, impedindo-o de disparar sua arma. Com as mãos contornando o pescoço do homem queimado, o agente da lei sentiu que poderia sair dali vivo. Ledo engano. Com a fúria de um dragão, Levy Queimado sacou uma faca e acertou o olho de seu algoz. A lâmina penetrara profundamente, acertando o cérebro do soldado e dando-lhe uma morte brutal, mas rápida.

— Só falta um! — O cangaceiro gritou enfurecido. — Se intregue, disgraça!

“Sim, entregue-se”, dizia a consciência do último agente de pé. Ele sabia: tinha uma família para cuidar e não valeria perder a vida por uma empreitada suicida. Não havia chance alguma de virar aquele jogo. Com as mãos levantadas, disse em voz alta:

— Eu estou desarmado — sua voz saiu cheia de pavor e vergonha. — Por favor, não me matem!

Caminhando entre os corpos caídos e ensanguentados, o homem falava a verdade: largara as armas segundos antes. Com os quatro cangaceiros restantes encarando aquele ser odioso, restou ao líder do bando falar qualquer coisa que fosse.

— Seu disgraçado! — Lúcio aproximou-se de maneira ameaçadora e não tardou de punir o algoz. Acertando o rosto do homem com a coronha da arma, viu-o cair no chão enquanto gritava de dor. — Quem te mandou aqui?! Foi Marcondes, aquele fi duma égua?!

Lúcio sabia bem: políticos não eram confiáveis. Só um idiota para confiar em um ser daquela espécie. Entretanto, uma traição daquele tipo era especialmente revoltante.

— Fale! — Gritou mais uma vez. O agente chorava. Era patético. — Fale ou eu esmago sua cabeça!

Em prantos, o soldado confessou: sim, Marcondes havia mandado o grupo exterminar o bando de cangaceiros. Ainda com as lágrimas cobrindo seu rosto, ele suplicava pela vida.

— Ah, vai viver — Lúcio Arcanjo não sofria nenhum dilema nesse momento: tinha certeza absoluta do que deveria ser feito. Olhando para Levy, prosseguiu. — Vai viver o suficiente pra nós mandar uma mensagem pro Marcondes. Ah, se vai.

E, com um sorriso vingativo, Levy logo tratou de prender o agente ferido. Com isso, o silêncio logo tomou conta do lugar e a realidade se apoderou do pensamento de todos: Lucas Furado havia morrido. Dessa vez, os furos não tinham conserto: o bom garoto estava junto do Pai.

Olhando para o cenário desgraçado de sangue e morte, Lúcio sentia seu corpo em chamas. Seus olhos ainda ardiam levemente, mas ele conseguia ver com clareza todo aquele horror. Tudo que queria agora era rever a sua família. Indo até a porta da residência, comunicou que estava tudo sob controle. Com lágrimas nos olhos, Regina Arcanjo atendeu a porta. Não abraçou o marido: ele estava coberto de areia, sangue e palha. Além disso, ela também sentia uma certa revolta: a violência havia chegado até seus filhos. No entanto, a mãe não podia impedir que as crianças abraçassem o pai. Mesmo sujo, ele recebeu o carinho de Caio e Carla. Rapidamente chegou a vez de Carmen.

— Papai — a criança falava em prantos enquanto encarava o cenário assustador. Ela já sabia que existia violência, mas aquela era a primeira vez que encarava aquela realidade de forma tão vívida. — Eles mataram o tio Lucas!

— Eu sei, minha filhinha — Lúcio respondeu com lágrimas nos olhos. Estava ajoelhado na frente da sua caçula e tudo que queria era abraçá-la e beijá-la, mas ao mesmo tempo não gostaria de vê-la suja de sangue, ainda mais naquele contexto tenebroso. — Nós vamos consertar isso.

Sem que percebessem, ainda havia um inimigo vivo. O homem que havia sido arrastado pelo cavalo aos poucos abria os olhos e via o cenário de horror. Permanecendo o mais imóvel que podia, logo viu o líder do bando em uma situação vulnerável. Puxando o revólver discretamente, destravou-o chamando a atenção dos cangaceiros próximos.

— Lúcio! — Eduardo gritou enquanto sacava sua arma.

Não teve tempo. Sabendo que aquele seria o último ato de sua infeliz vida, o soldado disparou com convicção. Logo em seguida, teve seu corpo perfurado pelos projéteis advindos das armas de Eduardo e Amanda. Mas já era tarde: a bala do desgraçado viajou poucos metros e acertou um alvo. Apesar dele ter mirado em Lúcio Arcanjo, sua posição e as dores não permitiram a melhor execução do planejado. Na verdade, o atingido foi o ser mais inocente dali: Carmen.

A menininha caiu para trás enquanto Lúcio, que estava surdo para os outros gritos de horror e tristeza, tentava recuperá-la. Não adiantou. Naquele dia, ele sentiu o verdadeiro gosto do inferno.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura!

Até logo :D



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