Fiat Ignis escrita por SophieRyder


Capítulo 16
Capítulo 15 ou “Como previsto, havia muito fogo”




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Era noite. Bernard, sentado em uma cadeira de madeira velha, folheava o diário de Abigail com uma vela acesa sobre sua mesa, apertando os olhos para conseguir ler a caligrafia pequena. Uma passagem chamou sua atenção.

Durante toda a infância meu pai foi meu objeto de enorme admiração, ainda que eu não admitisse em voz alta tal afeto. Na época, pouco sabia que tipo de pessoa ele era, algo que só fui conhecer devidamente depois que adquiri mais maturidade. Meu pai era um homem atípico, o que o tornava excepcional. Sexo, origem e posição social eram coisas irrelevantes para sua percepção de outras pessoas. Ele amava profundamente seu trabalho, mas nunca me abandonou para se dedicar a ele. Pelo contrário, se dedicou com afinco para me mostrar aquilo que amava. Ainda que fosse tão inteligente quanto outros professores na universidade, ele tinha, ao contrário, alguma afinidade com as emoções de outros seres humanos, e não deixava a eterna disputa dos orgulhos acadêmicos o afetar. Ele era um pesquisador ávido e aventureiro, e sua coragem o levou aonde muitos não teriam coragem de ir. Ainda que lhe faltasse força bruta, ele compensava com estratégia e inteligência. Sua aparência tranquila e despreocupada escondia sua competência e perspicácia. Professor Etienne havia reconhecido nele, por trás de seu humor desajeitado, um homem valoroso. Mais tarde, eu também pude compreender isso. Porém, durante a infância, nada disso me era conhecido: eu apenas o admirava, sem justificativas ou razões complexas, e queria acompanhá-lo para aprender mais sobre o trabalho que ele amava e que me parecia tão instigante.”  

— Mestre Charles?

O felino estava deitado sobre uma almofada, e tinha uma aparência cansada. A idade certamente influenciava sua disposição. Ele respondeu sem abrir os olhos.

— Hm?

— Você me disse algumas vezes que não considerava Abigail sua mestra.

— Claro que não, ela era apenas uma criança desajeitada.

— Mas mesmo depois de crescer?

— Mesmo assim meus sentimentos não mudaram. Afinal, eu a criei.

— Então seu mestre era Norbert?

Charles moveu uma de suas orelhas e abriu um pouco os olhos, que refletiram a luz da vela deixando escapar um brilho espectral.

— Sim.

— Pode me contar como ele o treinou? Você era um Espurr selvagem antes de conhecê-lo, não é?

Ninguém me treinou – Bernard pode perceber a leve irritação na resposta do velho Meowstic. – Eu escolhi acompanhá-lo.

— Por quê?

Charles não respondeu imediatamente, e Bernard ponderou se havia ido longe demais nas suas perguntas noturnas ao animal sonolento. Resignado, fechou o diário e se levantou para apagar a vela. Então, a resposta de Charles chegou a seus pensamentos.

— Norbert foi o único homem que eu admirei. Agora fique quieto, eu quero dormir.

—---

Fazia pouco tempo que o sol aparecera no horizonte, mas a manhã de primavera já estava agradavelmente morna. Norbert conferia pela terceira vez se as provisões para a viagem estavam adequadamente embaladas e organizadas para a partida. Os soldados e o guia designados para acompanhá-lo resmungavam aborrecidos com o excesso de cuidado do pesquisador, que já havia repassado os planos da viagem com eles meia dúzia de vezes insistindo nos mínimos detalhes. Logo ele partiria a fim de cumprir a árdua tarefa de capturar cinco ovos de dragão para o marquês de Artois. Enquanto Norbert olhava sua lista de provisões, Abigail e Christophe apareceram no pátio para se despedir.

Desde que ele e Abigail chegaram ao castelo, Norbert havia feito pequenas incursões ao longo do território próximo, catalogando cuidadosamente as espécies da região e seus hábitos. Agora, restava a tarefa de observar os animais que viviam mais distantes, no monte que marcava uma das fronteiras das terras de Artois.

Abigail, observando a expressão corporal de seu pai, percebeu que ele estava ansioso. A preocupação do professor transparecia em seus gestos, enquanto ele conferia se os preparativos estavam perfeitos. A tarefa que lhe fora imposta não era simples. Seus três companheiros de viagem, um robusto Stoutland, um Rhyhorn e uma Petilil, aguardavam obedientemente pelo comando do mestre. Além deles, a incursão contaria com mais dois Mudsdales para carregar as bagagens e os mantimentos, e dois Poliwhirls emprestados do marquês. As duas crianças se aproximaram enquanto ele marcava em seu pergaminho as últimas informações confirmadas.

— Abbe, por que você está fora da cama tão cedo? – Disse Norbert, percebendo as crianças apenas quando os dois já estavam ao seu lado. Christophe segurava a mão de Abigail, e, ao ver isso, o pesquisador deixou escapar um pequeno sorriso.

— Nós queríamos ver sua partida. – Respondeu Christophe.

— Não era necessário, eu já havia me despedido de Abbe ontem à noite.

Norbert observou o rosto de sua filha, coberto com a expressão mal humorada de costume. Havia algum motivo especial para ela querer vê-lo partir? Ele lançou um olhar inquisidor para Charles, que, por sua vez, fingiu não estar vendo seu mestre.

— Eu queria ver os preparativos. – Disse Abby enfim, encarando o pai. Norbert finalmente entendeu: a menina estava frustrada porque queria acompanhá-lo.

— Muito bem, obrigado por acordarem tão cedo para me verem partir. – Não havia muito que ele pudesse fazer para consolar a filha, já que aquela seria uma incursão perigosa. Entretanto, olhando para Chris, Norbert percebeu que, pela primeira vez em muitos anos, havia mais alguém além dele e Charles tomando conta de Abigail. – Eu estou quase terminando, querem me ajudar a conferir o que falta?

As crianças assentiram, e acompanharam Norbert enquanto ele concluía os preparativos. Pouco tempo depois, os guardas estavam abrindo os portões do castelo para a partida do grupo. As duas crianças se despediram, mas quando Norbert virou-se para partir, a voz de Charles interrompeu seus próprios pensamentos.

Não se mate.

Norbert lançou um breve olhar para seu companheiro.

Está preocupado, não é? Eu vou ficar bem.” - Charles ouviu a resposta de seu mestre sem que nenhum som fosse emitido. - “Cuide bem de Abigail, ok?

Charles se conformou a lançar um último olhar fuzilante a Norbert. Instantes depois, o pesquisador estava do outro lado do portão, que então se fechava, escondendo dos olhos das duas crianças a expedição que partia.

— Você acha que ele vai conseguir? – Perguntou Chris para Abby, referindo-se missão requisitada por seu pai.

— Certamente. Meu pai é um homem habilidoso. – Disse a menina com firmeza.

Quando não está se comportando como um parvo.

Abigail o ignorou.

— Ele já fez coisas incríveis. – Continuou a menina. – Não é à toa que o professor Etienne o escolheu como seu sucessor. Ele viajou por todo o mundo e enfrentou outras criaturas tão fortes quanto esse dragão.

— Porém, os companheiros dele não parecem muito fortes. – A observação de Chris não demonstrava menosprezo, mas sim curiosidade – Como ele costuma batalhar?

— Meu pai não é bom em vencer batalhas com força bruta. – Respondeu Abby, sua expressão de tédio desaparecendo do rosto. – Ele não precisa destruir os adversários do mesmo modo que um nobre precisa durante uma guerra. Suas estratégias são para distrair e confundir, atrasar e imobilizar, para ele coletar dados e escapar se necessário.

— E você sabe o ele pretende fazer?

Abby abriu um raro sorriso. É claro que ela havia olhado as anotações do pai quando ele não estava prestando atenção.

—---

Norbert caminhava com o mapa do território em mãos, fazendo anotações de tempos em tempos. Apesar de ter mapeado com bastante precisão a natureza em torno do castelo, sempre havia algum pequeno detalhe novo para tomar nota. Ele parou, por um instante, absorto em analisar um arbusto chamuscado – sinal de que estavam entrando no território de Houndooms, que tinham o hábito de marcar o perímetro com suas chamas.

O olhar de um pesquisador experiente podia reconhecer alterações no ambiente produzidas por animais. Um som, uma mudança de relevo, uma árvore quebrada, indicavam a movimentação e o comportamento das espécies da região. Norbert sabia reconhecer marcas nas árvores de chifres de Stantlers machos que estavam entrando em período de acasalamento; conhecia a mudança do canto de Tailows e Swellows quando eles se preparavam para migrar; facilmente identificava no solo marcas de luta de Lycanrocks disputando território. Todos esses sinais passariam despercebidos para um observador desatento, mas eram fundamentais para um pesquisador rastrear seus objetos de pesquisa e evitar que acidentes ocorressem durante suas incursões. A viagem até o monte levaria dois dias, e pelo caminho ele pretendia coletar o máximo de informações possíveis. Quanto mais detalhado seu relatório, melhor, e mais satisfeito ficaria mestre Etienne. Norbert sabia que até os menores detalhes precisavam ser  registrados.

À frente do grupo, caminhava o guia que os levaria até o ninho do dragão. Os homens que acompanhavam Norbert não vestiam armaduras, mas sim grossas peças de panos espesso, feitas de um couro resistente à fogo, que seriam molhadas antes da missão começar. Enfrentar bestas de fogo usando equipamentos de metal seria uma estratégia desastrosa, já que o metal se aqueceria com as chamas, queimando o corpo dos soldados. Várias camadas de roupas molhadas, por outro lado, ajudavam a evitar queimaduras.

Enquanto tomava notas, Norbert repetia os planos para os soldados bastante irritados.

— Quando nós avistarmos o alvo, eu vou distrair a mãe. Preciso que vários de vocês fiquem comigo, para chamar a atenção dela. Minha Petilil usará Sweet Scent para atraí-la para fora da toca.

Os outros homens resmungaram assentindo. Os animais de Norbert foram selecionados para diferentes funções, a fim de ajudar em suas pesquisas. Sua Petilil atraia outros animais usando Sweet Scent, e também conseguia paralisá-los ou fazê-los dormir.

— Quando ela já estiver fora, nós vamos começar a distraí-la com barulho. Assim que ela estiver longe o suficiente do ninho, Rhyhorn usará Sandstorm para atrapalhar a visão. É muito importante que nós fiquemos próximos uns dos outros, para não nos perdermos e para que vocês não fiquem sem instruções. Vocês não irão enxergar bem, mas meu Stoutland irá nos indicar onde está o dragão.  

O plano elaborado pelo professor precisava ser seguido à risca, para evitar ao máximo que houvesse feridos. Era crucial que cada um dos passos ocorresse perfeitamente.

— Enquanto ela estiver confusa, vamos atacá-la de várias direções. A meu pedido, o marquês me emprestou dois Poliwhirls para irritá-la, mas eles não são muito fortes. O importante não é feri-la, mas sim deixá-la confusa o suficiente para não conseguir reagir por algum tempo. Enquanto isso, um de vocês irá montar no Rhyhorn, que subirá o monte até o ninho dela usando Rock Climb, e coletará os ovos. É preciso que isso seja feito rapidamente, não sei por quanto tempo nossa distração funcionará. Descer será mais rápido, e assim que o Rhyhorn estiver de volta no solo nós bateremos em retirada.

O plano parecia bastante prudente, e buscava evitar confronto direto com uma besta violenta. O Rhyhorn de Norbert era seu principal companheiro de batalhas e a única força bruta do time, mas sua habilidade de se deslocar em áreas obstruídas e escalar pedras era necessária para chegar ao ninho, de modo que ele não poderia se concentrar na batalha. Seu Stoutland, por outro lado, era especializado em farejar, rastrear e perseguir outros animais, mas seu alcance numa batalha aérea era bastante comprometido. Geralmente Charles operava como o cérebro da equipe, transmitindo com mais velocidade e precisão os comandos de Norbert, ajudando a coordenar os outros à distância, prevendo os movimentos do adversário e levantando barreiras para aumentar sua defesa e minimizar danos. Entretanto, naquela missão ele não estaria presente. Norbert preferia que os ataques dispersos e a tempestade de areia fossem suficientes para confundir o dragão e evitar uma batalha que provavelmente levaria a perdas consideráveis.

— Está tudo certo... Não é? – Disse ele a seu Stoutland, procurando aliviar a própria ansiedade. O cão bufou.

—---

— Corram! CORRAM!

Havia uma parede de fogo, fumaça e areia em torno de Norbert e dos homens do marquês, e alguns deles, desesperados, começaram a gritar para os companheiros fugirem.

— Por Arceus, ela vai nos matar! Corram!

— Pelo amor de deus – Norbert sibilou em vão para eles. - Parem de gritar, ela vai nos achar pelo som.

Mas não adiantou. Os homens não o ouviam, e já tentavam achar uma saída por entre o inferno de labaredas que os cercava. A fera os encurralara em um círculo de chamas e estava cada vez mais difícil de respirar. Os Poliwhirls, ainda que tentassem, nada podiam fazer diante do tamanho do incêndio.  Norbert tentava a todo custo encontrar uma saída para a situação.

A distração havia funcionado, mas o professor não previra o quão violento seria o ataque, nem a precisão com a qual eles seriam encurralados tão rapidamente. Em meio a fumaça, ele podia ver por cima de sua cabeça, de tempos em tempos um enorme vulto alado sobrevoando à procura de suas presas o espaço onde eles estavam, que a menos de dois minutos era apenas um gramado amarelado.

A fera rugiu.

E então seu vulto desapareceu.

Norbert pode ouvir à distância um grito. Era a voz do homem que fora enviado para pegar os ovos. Acometido de um calafrio, ele percebeu que seu plano falhara. Sua distração durara poucos instantes, e se ele não fosse rápido todos morreriam. Mesmo zonzo com toda a fumaça e a areia, conseguiu conceber um plano desesperado para tirá-los dali.

— Angus, precisamos de água.  Use Rain Dance.

Seu Stoutland rosnou em concordância. A chuva reduziria as chamas o suficiente para que eles pudessem escapar do cerco, mas também afastaria a cortina de areia que os acobertava dos olhos da fera. Porém, não parecia haver outra saída. As roupas molhadas não conseguiriam de impedir chamas daquele tamanho de queimá-los.

Angus uivou, e a tempestade de areia começou a perder força conforme era substituída por nuvens pesadas no céu. Passaram-se alguns segundos que pareceram eternos até o início da precipitação. As primeiras gotas não chegaram a atingir o solo, evaporando assim que entraram em contato com o círculo de fogo. Então, conforme a chuva se tornava mais densa, foi possível ouvir diversas exclamações dos homens arrebatados de alívio ao perceberem que o inferno que os cercava estava finalmente diminuindo.

Agora que a visibilidade estava melhor, Norbert tentou avaliar seu entorno. Alguns homens estavam caídos, outros ainda de pé, mas todos pareciam de algum modo feridos.

 E então, Norbert a viu. Uma enorme Charizard, tomada de fúria, perseguindo seu Rhyhorn que corria morro abaixo, sozinho. Sem qualquer sinal do homem que deveria estar montado nele.

A chuva, como ele previra, não a intimidou. Sua cauda se agitava com irritação, em sua ponta uma chama imensa queimava sem se deixar afetar pela chuva. Norbert sabia que Charizards intensificavam seu fogo quando estavam em uma tempestade, para evitar que a chama de seus rabos, sua fonte de vida,  se apagasse. Isso os exauria em excesso, mas também os deixava ainda mais violentos e perigosos enquanto ainda tinham energia.

Seus olhos amarelos faiscaram em direção aos homens que ela agora podia ver com clareza. O pouco que restava de frieza em Norbert escapou por entre seus dedos junto com a chuva que o molhava.

— Fujam. Corram para a floresta e não olhem para trás. Rápido! Fujam!

Mas ele não precisava dizer, porque os homens já debandavam desorganizados para dentro do bosque. Norbert soube que eles não teriam tempo suficiente para escapar, sua adversária era dotada de formidável velocidade e estava furiosa. As árvores apenas os dariam alguma proteção dos olhos da fera, mas ela facilmente queimaria os pinheiros e os colocaria novamente num mar de chamas. Era preciso criar uma distração, e ele teria que fazer isso sozinho.

Norbert percebeu que sua única escolha era enfurecê-la ainda mais, para que ela perdesse os homens de vista. Avistou seu Rhyhorn se aproximando à distância, agora já em solo plano, e ordenou a plenos pulmões que ele atacasse:

— Use Rock Throw, agora!

A chance de as rochas atingirem o alvo eram poucas. Ela já estava distante dele. Entretanto, as pedras ofereceram a distração que Norbert esperava. A Charizard interrompeu sua investida em direção aos homens e rugiu para o Rhyhorn.

Era o que o Norbert precisava.  Ele comandou, então, que os dois Poliwhrils a atacassem de direções diferentes, soltando jatos de água e a enfurecendo ainda mais. Para seu alívio, percebeu que o plano funcionara. Seus homens já estavam adentrando no bosque, e a Charizard havia se distraído com os as pedras e água a atacando por três lados diferentes.

Seria necessário deixar os dois animais de água para trás, mas Norbert viu sua chance de fugir e não podia hesitar. Montou nas costas de seu Stoutland e gritou para o Rhyhorn segui-los. Angus disparou em direção à floresta.

Ao dar as costas para a adversária, Norbert pôde ver apenas de relance, pela mudança de luz atrás de suas costas, uma violenta rajada de fogo persegui-lo.

—---

Enquanto a Charizard rugia enraivecida enfrentando os dois Poliwhirls que haviam ficado para trás, um vulto adentrou na caverna onde ela escondia seu ninho.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado do capítulo, depois de tanto tempo sem eu postar. Vou tentar voltar a escrever com mais frequência



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