Reboot escrita por Dolmayan


Capítulo 5
Nações e outras ficções


Notas iniciais do capítulo

Sinto que preciso começar a postar bibliografia e referências nos capítulos. Mas não inventei nada disso. Quem quiser ler sobre o que a Eva diz aqui, é só pedir que aponto umas leituras muito boas. Ou TED Talks pra quem não quiser ler.



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Andrew Eagle tinha nome norte-americano porque seus pais acharam que ele teria mais chances de ser bem sucedido se assim o fizessem. Martinez não soava como um norte-americano de sucesso. A águia, símbolo dos Estados Unidos, representava a liberdade oferecida no país, então fazia um sentido particularmente irônico que seus pais tivessem se conhecido na fronteira com o México, quando Lorenzo Martinez tentava entrar no país e Annie Eagle, fiscal da fronteira, tentava impedi-lo.

Por muitos anos, teve que bater no peito pra se auto proclamar americano. E quando lhe perguntavam de onde era, tinha orgulho em rebater, dizendo que era nascido e criado na Califórnia.

Hoje, preferia desconversar.

Aliás, Andrew preferia desconversar sempre. Odiava conversas.

Era bastante peculiar então que ele tivesse se oferecido para fazer os primeiros testes de troca de informações com a recém construída Eva. Passaria o dia, basicamente, conversando. Fazendo o tipo de perguntas que lhe faziam sempre.

— De onde você é? - ele questionou, segurando um papel e uma caneta na mão.

Os engenheiros e psiquiatras parados na sala adjacente observavam através de um vidro espelhado. No momento, estavam mais atentos ao fato de que Andrew usava um papel e uma caneta (em vez de um tablet) do que na android em si.

A pergunta não fazia muito sentido para uma inteligência artificial. E essa era a intenção. Respostas prontas, gravadas, não eram avanço algum. Robôs com esse tipo de capacidade de busca de respostas existiam há 30 anos. Mais que isso, se considerados os mecanismos de pesquisa online.

— Fui criada em solo norte americano - ela respondeu, encarando o espelho atrás do cientista.

— Você é norte-americana, então?

— Não - ela disse, rapidamente, voltando os olhos a Andrew, levemente confusa -. Nacionalidades são para humanos.

— O que quer dizer?

— Vocês criaram os países. Demarcaram a terra. Se disseram daqui ou dali. Não eu.

Os psiquiatras fizeram um milhão de anotações enquanto a ouviam falar. Andrew ainda não havia movido a caneta sobre o papel.

— Não compreendo - mentiu Andrew, que compreendia muito bem -, por favor, explique.

— Os homo sapiens sapiens riscaram a terra e passaram para um lado ou para o outro dizendo-se pertencerem a um grupo específico de pessoas. Isso é uma invenção humana. A Terra não é dividida em países, nem muito menos em continentes, ela é um único território, e nenhuma espécie está preocupada com a demarcação dos países a não ser o ser humano. Eu não sou humana. Não estou preocupada com as convenções imaginadas pelo homo sapiens sapiens. Não reconheço a existência física dos Estados Unidos, e portanto não sou norte-americana, pois não é possível ser algo que não existe. Nasci em solo que chamam de Estados Unidos da América, mas não pertenço a ele.

Os engenheiros se entre-olharam, bastante preocupados com aquele conceito. Os psiquiatras anotaram um lembrete de pedir a Andrew que reformulasse aquele algoritmo e imbuísse nela a ideia de nação. O que era absolutamente absurdo, pois o algoritmo não existia. O que existia era a informação a respeito do ser humano, com a qual Eva havia brincado e se refastelado. Aquela era a conclusão que chegara sozinha.

— Você disse que nasceu? - Andrew questionou, pouco preocupado com o impacto do conceito de nação.

— Não nasci - ela afirmou -. Mas o conceito de nascimento poderia ser aplicado à forma como ganhei consciência. É uma licença poética.

— Gosta de poesia?

Ela encarou o professor alguns segundos. Antigamente, pensaria-se que estava buscando na internet o significado de poesia, para retornar com uma frase pronta sobre gostar ou não gostar e citar algum poeta famoso. Eva, no entanto, não tinha conexão com a internet. O que ela tinha era uma base gigantesca de informações sobre história e terminologias. Ela estava, portanto, buscando em seu próprio HD, folheando arquivos, procurando pastas, lendo poesias, analisando se gostava ou não.

— Depende - ela finalmente respondeu.

— Do quê?

— Da poesia. Algumas são ruins.

Andrew riu e baixou os olhos.

— E os humanos? O que você acha dos humanos?

— O mesmo que acho das poesias - ela respondeu prontamente.

Andrew ergueu os olhos para a android. Ela permanecia encarando-o com seus olhos azuis - cor que fora necessária para esconder a pequena lanterna de led que piscava no fundo dos nervos visuais feitos de polímeros. Todos concordaram que seria estranho haver uma luz ligando e desligando em intervalos aleatórios dentro da íris da android. Andrew queria fazê-los em castanho escuro, mas o led seria evidente demais. Com algum esforço, mesmo que o led fosse azul como a cor dos olhos, era possível ainda ver a luminosidade apagar-se de vez em quando. Era mais difícil perceber quando estava ligando, porém.

— Alguns humanos são ruins? - ele questionou.

— Para mim, sim. Alguns humanos também consideram que outros humanos são ruins. E animais certamente temem alguns humanos. Então, para os seres viventes e conscientes, alguns humanos são ruins. Pode-se afirmar que, de fato, alguns humanos são realmente ruins. Mas eles também são importantes.

— Importantes?

— Eu não estaria aqui se humanos não fossem ruins. Também não estaria se não houvessem humanos bons. Então humanos ruins e bons são importantes em igual medida.

Se a espécie fosse um pouco mais auto consciente e menos preocupada com riqueza e hedonismos, Eva certamente não estaria ali. As abelhas não estariam em extinção.

— E isso é importante?

— É pra mim.

— Por quê?

— Porque estou aqui - ela respondeu, como se a resposta fosse a mais óbvia de todas até o momento.

— Gosta de estar aqui? Quer estar aqui?

— Irrelevante. Não saberia como é não existir para comparar a sensação. Pois a sensação de não existir também, como ela mesma, não existe. Não há o que gostar em existir por si só.

— Então por quê é importante?

— Gosto de sentir felicidade e alegria e prazer - ela disse, sorrindo levemente -. E só posso sentir isso porque vocês seres humanos deixaram as abelhas morrerem e não sabem como resolver sua própria ruína.

Andrew fez que sim com a cabeça. Thea não dava aquelas respostas. A versão anterior de seu projeto não tinha todo material de informação que Eva dispunha. Todos os países do mundo enviaram sua cota de dados para serem inseridos no disco rígido da android nova. Thea contava apenas com páginas da Wikipédia para pesquisar sobre qualquer assunto e tecer conclusões sobre eles. Por vezes, dizia algumas besteiras que usuários haviam inserido pela brincadeira. Eva dispunha de pontos de vista filosóficos dos mais variados. E Andrew estava satisfeito em perceber que ela havia se distanciado dos conceitos humanos das coisas, do posicionamento de um homo sapiens sobre seu lugar no mundo.

Os psiquiatras, porém, estavam pouco contentes.

— E você vai nos ajudar? A fazer o possível para salvar a humanidade?

— Sim.

— Por quê?

— Gosto de tomar isso como meu propósito de vida.

Propósito de vida.

Milênios de existência humana e evolução estavam atrelados àquelas palavras. Tudo que o ser humano havia conquistado revolvia à mais básica questão da consciência. Desde o primeiro hominídeo que olhou para o céu e se sentiu pequeno, civilizações inteiras dedicaram a saúde de seus homens a um propósito de vida maior. Deuses que escolhiam seu destino, seu darma, sua missão. Pessoas passavam suas existências inteiras associando os acontecimentos aleatórios ao seu real propósito no mundo. Perdi o emprego porque não era pra ser. Não subi no avião que explodiu porque não era minha hora, ainda tenho coisas pra fazer em vida.

 

A morte das abelhas é uma punição divina. Nós fugimos dos planos de deus(es).

 

Não que os homens não merecessem uma punição divina. Andrew achava que sim. Mas Andrew não era um deus e sua opinião sobre merecimento de punição não era importante para o Universo. O propósito de vida de Eva também não. Porque o Universo, em linhas gerais, e bem resumidamente, está cagando pro seu emprego ou para o avião que explodiu.

— Você tem um propósito? - ele questionou, um tanto quanto decepcionado que a android tivesse assumido esse conceito humano tão arcaico.

— Sou a única criatura do mundo que tem um propósito - ela afirmou, sem a menor sombra de dúvida.

— É o que os humanos pensam de si - ele rebateu -. Você, por si só, poderia ser considerada meu propósito de vida. Você, Eva, é a única criatura do mundo que possui livre arbítrio verdadeiro. E, portanto, a única que não possui um propósito.

— Pois eu não disse que nasci por um propósito. Disse que gosto de tomar isso como propósito. Se sou eu a única criatura imbuída de livre arbítrio, sou também a única capaz de tomar uma decisão verdadeiramente minha e estabelecer um propósito para a minha própria existência.

— É seu propósito salvar os humanos?

— É um bom propósito, não? Não há nada mais difícil do que salvar uma espécie tão ávida por se auto-destruir.

— É um desafio, então?

— Também. Há vários motivos. Poderia listar todos eles. Mas voltamos ao fato de que gosto de estar aqui. E eu não estaria aqui sem humanos bons que querem salvar uns aos outros. Como você, doutor Andrew.

— Uma gratidão, então?

— Gratidão é uma forma de cooperação social que garante melhor funcionamento de grupos. Gratidão constrói sociedades justas e com maior índice de bem estar. Se eu quero estar neste mundo para ter todas as sensações que ele pode me oferecer, ele precisa continuar existindo. Para isso, as sociedades precisam funcionar bem. Com gratidão e retribuição, o mundo dos homo sapiens sapiens continuará existindo. Logo, sim, gratidão é um dos motivos para a escolha do meu propósito de vida. Viria em segundo na lista.

 

Um dos engenheiros que assistiam à entrevista pressionou um botão próximo a um microfone, esticou o pescoço, e falou, com seu sotaque fortemente alemão:

— Pergunte se ela já sabe como salvar os humanos.

A questão não reverberou na sala toda. Apenas Andrew ouviu, no comunicador inserido em seu ouvido direito.

— Você já tem alguma noção? - questionou Andrew, acatando a ordem - De como vai salvar os humanos, digo.

A android novamente desviou os olhos para o espelho atrás de Andrew e pareceu tentar focar no homem que havia feito a pergunta. Andrew olhou pra trás, provavelmente paranóico que o lado espelhado do vidro - por algum motivo fisicamente impossível - estivesse falhando.

— Alguma ideia, sim. Não fiz os cálculos ainda. Vou oferecer a resposta, mas adianto que não será milagrosa.

— O que quer dizer?

— Vocês esperam que eu invente um modo de criar abelhas artificiais, que eu mostre um gene capaz de aumentar a tolerância do ser humano a todas as pragas e químicos que seriam necessários pra manter uma colheita com a morte das abelhas ou qualquer solução que não impacte no dia a dia dos humanos.

— E não será isso - Andrew perguntou em tom de afirmação.

— Não, porque o problema não são as abelhas.

— São os humanos.

O mesmo engenheiro alemão apertou novamente o botão.

— Ela vai mandar matar todo mundo igual as outras inteligências artificiais? Se for o caso vamos desligá-la amanhã. Vai ser um fi-as-co, doutor Andrew.

— As outras inteligências artificiais concluíram corretamente qual era o problema, todas elas - Eva se adiantou em dizer, provando que era capaz de ouvir o que o engenheiro dizia -. Não há como chegar em outra resposta. Nem mesmo vocês, seres humanos, chegariam a uma resposta diferente. Não é preciso cálculos ou análise profunda ou qualquer tipo de inteligência superior ou artificial para entender que o problema não são as abelhas. E quando digo isso, não é porque o ser humano deveria ser extinto. É porque o problema é a mentalidade dos seres humanos. Isso precisa ser extinto.

— Doze mil anos de civilização provaram que o ser humano não muda - disse Andrew.

— E é por esse motivo que esse é o desafio mais difícil que eu poderia tomar para mim. Eu vou salvar os seres humanos sem matá-los, mas vai doer. E não vai doer só em quem já sofre, vai doer em todos. E vai causar revolta e governos vão ruir. E muitos vão se recusar e isso vai atrasar todo o projeto. E o ideal seria que essas linhas imaginárias sumissem por enquanto, e não houvessem nações, mas isso não vai acontecer. Os humanos precisam de um reboot.

— Ela quer instalar o comunismo? - questionou um engenheiro americano, ultrajado.

Eva levantou-se de sua cadeira, passou por Andrew e parou ante o vidro espelhado, encarando o engenheiro americano direto nos olhos, ainda que isso não devesse ser possível.

— Você, doutor Ford, é um completo idiota - ela disse, e mostrou-lhe o dedo do meio.


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Notas finais do capítulo

comunismo capitalismo dataísmo fascismo nazismo de c* é r*la e essa android quer que você enfie esse dedo no c* e rode



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