Reboot escrita por Dolmayan


Capítulo 4
Belize




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Andrew tinha toda razão em acreditar que Thea era uma android muito especial. Quando o programa foi exibido em toda sua perfeição para os demais especialistas do mundo, houve um furor merecido quanto às suas capacidades de aprendizado e de reprodução do psicológico humano.

Muitas outras IA foram criadas nos últimos anos com o intuito de resolver o problema das abelhas. O problema se agravou e nenhuma solução plausível foi extraída. A conclusão das IA, até o momento, passava por questões como: a morte de determinado número de humanos (na base dos bilhões) ou a proibição da reprodução até que houvesse mais pessoas morrendo do que nascendo. Essa fora a resposta que menos parecia com extermínio.

Isso porque, ao analisar as variáveis disponíveis, parecia realmente muito difícil considerar a vida humana como algo mais importante do que… bem, qualquer outra coisa. O problema parecia não ser as abelhas, e sim os humanos. Mesmo as IA programadas para rejeitar soluções que impliquem na morte humana traziam respostas que, invariavelmente, chegavam à redução do número de seres humanos por uma via ou outra.

Tão logo o algoritmo de Thea foi aberto para estudo, os pesquisadores deram entrevistas dizendo que construíram um ser humano em laboratório. O valor da vida humana, para Thea, deveria ser máximo. Mas antes que a android começasse a ser reconstruída, o mundo se reuniu para definir quem seria Thea.

Foram doze meses de discussões. As implicações éticas, morais, religiosas e de seguridade social foram amplamente discutidas, e as opiniões foram lançadas, ignoradas, gritadas, impostas, novamente ignoradas, até que se chegasse a consenso nenhum. O plano, então, foi posto no papel. O estagiário responsável por anotá-lo pediu demissão enquanto tentava descrever as regras que seriam instaladas no HD principal. Os representantes dos interesses da população não conseguiram atingir um ponto em comum sobre o que seria importante que uma Inteligência Artificial tivesse como princípios. O chefe do estagiário ficara extremamente insatisfeito quando, após uma semana encarregado de listar as regras e passá-las aos programadores, o bloco de notas seguia vazio, exceto por uma ou outra anotação, todas riscadas, cada vez com mais desespero e frustração traduzidos no quanto a caneta era forçada contra o papel. Quando, finalmente, a caneta rasgou a folha e chegou na página seguinte, o estagiário decidiu procurar uma vaga numa empresa de conserto de celulares.

“Deve ter noção do conceito de Deus e sua importância para a humanidade” disseram os representantes da Igreja. Eram um grupo de pesquisadores de diversas áreas de Antropologia e Teologia do Vaticano. “A única forma de fazermos as pazes com Deus ao tentar imitar seu trabalho é fazendo esta criatura cristã”.

Toda vez que um deles dizia algo, o setor dos cientistas que não tinha nada a ver com a história, mas eram propagadores de ciência, revirava os olhos e fazia posts ensandecidos no twitter.

“O passo mais importante que a humanidade já deu desde a chegada à Lua e parece que estou na Idade Média” - @DrScienceGuy

Infelizmente, havia uma multidão igualmente ensandecida e sem o menor conhecimento de ciência acampando do lado de fora do prédio da ONU nos últimos dois meses, sob a constante vigia da CIA. Inclusive, algumas delas duvidavam que o homem fora à Lua. Eles diziam que a criação de um ser humano falso seria a ruína da humanidade (e não as abelhas), e que a intenção obscura por trás do desenvolvimento da Inteligência Artificial era o controle mental em massa. Isso nunca foi muito bem explicado. Mas todos acreditaram plenamente. Cartazes foram erguidos – a tocha moderna – para queimar a imagem dos responsáveis pelo projeto. O rosto de Andrew figurava em destaque, sempre.

A multidão só saiu dali pouco tempo depois que um manifestante pegou sarampo. Não havia tomado vacinas. Quarenta e quatro anos depois que um médico perdeu sua licença por fazer uma das afirmações mais estúpidas da história da medicina, a mãe ainda acreditava que elas causavam autismo. Ele nada disse aos demais manifestantes. Quando outros 12 manifestantes – nenhum deles vacinado – pegou sarampo, a multidão foi dispersa e campanhas de vacinação foram iniciadas.

Quando o presidente dos EUA ameaçou cancelar o financiamento das pesquisas caso a Inteligência Artificial não fosse cristã, o consenso parecia próximo. Com dinheiro, todos concordavam, até o @DrScienceGuy. Avançaram então para a segunda regra. Na reunião da sexta-feira seguinte, um homem bomba foi pego tentando entrar na sede da ONU. O terrorista islâmico berrava que era khatiya construir a Inteligência Artificial cristã.

A regra foi então riscada do caderno. Os representantes do Greenpeace, que também pouco tinham a ver com a situação, sugeriram que a inteligência artificial teria direito de analisar todas as religiões e decidir por uma. Todos balançaram a cabeça e a regra foi anotada. A moça que trazia o café para o Ministro de alguma coisa importante de algum país rico, porém, entrou na discussão. “Mas então a religião da coisa-robô vai ser a certa?”

Os líderes se entreolharam. Quais as consequências sociais de construir uma máquina com inteligência acima de todos os seres humanos, apresentar todas as religiões do planeta, e pedir que ela decida-se por uma?

O pessoal da ala de ateus (misturados aqui e ali) brilhou os olhos. Viram um futuro com religiões falindo. Pessoas abdicando de suas crenças porque um computador calculara que elas eram erradas. A vitória da ciência.

O pessoal da ala religiosa (não tão misturados) também brilhou os olhos, porque cada um acreditava com toda certeza que a coisa-robô ia provar que suas religiões eram corretas, em detrimento das outras. A paz mundial seria atingida quando o mundo todo fosse de uma religião específica – doze, só naquela sala.

A regra foi riscada do caderno. Traria muita discórdia.

“Vamos deixar essa pro final” disseram os programadores, sentindo-se nostálgicos das provas da faculdade de Engenharia de Computação.

“E quanto à segurança? A Inteligência Artificial vai seguir quais leis?” questionou um inocente diretor da secretaria de Defesa de Belize.

Obviously, a Inteligência vai seguir as leis dos Estados Unidos, pois a maior parte dos engenheiros do projeto são americanos” disse o porta-voz dos EUA. O presidente havia faltado. Estava com Sarampo.

“Porém, o chefe do projeto do hardware é Alemão” disse um alemão.

“A maior parte das peças vem da China” disse um chinês.

“O desenho do robô e todos os circuitos foram feitos pelo Japão” disse um japonês.

“Quero um café, por favor” disse o brasileiro, que havia participado tanto quanto Belize. O Brasil passava por uma crise sem precedentes na época. Uma série de revoltas e movimentos políticos minava ano após ano todo e qualquer avanço moral e tecnológico por todo o território.

Por fim, decidiu-se que a Inteligência Artificial não seguiria leis, mas teria um código de ética básico. Não machucar seres humanos. Proteger seres humanos. A coisa toda que Asimov já havia dito antes. Quem deu a ideia foi o novo estagiário. Todos acharam genial.

Quando chegaram na aparência final da IA, houveram gritos, dedos sendo apontados nos narizes, pessoas saindo da sala e dando entrevistas inconformadas logo na saída. O facebook se encheu de textos enormes. No Brasil, fizeram memes. Em algum momento, foi acordado que a primeira IA teria uma aparência completamente aleatória, sorteada pelo computador. As demais, produzidas a partir dela por cada país, poderiam ter traços que cada país considerasse apropriado. O sorteio, porém, deixou a IA gorda. Isso inflou novas discussões e textos ainda maiores no facebook.

E quanto mais decisões eram feitas, mais as pessoas achavam que elas estavam erradas. Nem uma maioria era atingida. Foram publicados livros a respeito dos impactos da produção de inteligências artificiais psicologicamente semelhantes aos humanos, propagando medo. Muitas religiões condenavam. Muitos cientistas achavam que deviam simplesmente ligar a IA e ver no que dava, que foi exatamente o que Andrew havia feito com Thea.

— O nome será Eva - disse Andrew.

Todos os maiores líderes do mundo se voltaram para ele, indagando-se quem era o rapaz dos cabelos desgrenhados e que não levantava os olhos da mesa, mesmo não havendo papel algum sobre ela. Andrew não havia ido a mais que três reuniões dos últimos doze meses. Passara seu tempo trabalhando na nova android e ignorando completamente todas as atas de reunião que lhe eram entregues.

— Bastante original - riu um Espanhol -. De que filme tirou a idéia?

— Construí Thea em alusão a uma deusa. Ela seria a salvação da humanidade. Eu, Andrew Eagle, construí o deus que nos salvaria da danação. Mas não são deuses que nos salvam. Minha prepotência fez com que Thea fosse uma afronta à humanidade. Ela foi destruída e está morta. Morta, sim. E como não são os deuses que nos salvam, mas nós mesmos, é Eva, mulher, e não deusa, que nos salvará.

E uma única vez houve consenso. Ninguém nem questionou o fato da ex-mulher de Andrew Eagle chamar-se Eva.


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