Reboot escrita por Dolmayan


Capítulo 3
- President




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“Oitenta baixas registradas. Número deve su- [...]. Equipe vermelha, favor con[...] os parentes. Equipe [...] assistência à equipe de relações. Conter vazamentos das [....]”

 

A mensagem cortada vinda do rádio do helicóptero não trazia nenhuma boa notícia. Andrew imaginava que não devia ter escutado nada daquilo. Não sabia o quanto a população já sabia, mas em se tratando de uma transmissão ao vivo por streaming, a internet já devia estar tirando suas próprias conclusões. Olhando lá de cima, com o vento prejudicando seus olhos e o barulho atrapalhando seus pensamentos, não via o caos instalado. Mas estava voando num helicóptero do governo dos Estados Unidos em direção ao aeroporto, sem nenhuma informação sobre para onde iria. Mas tinha uma boa noção, mesmo sem ter sido informado.

O helicóptero pousou apenas quinze minutos depois de ter decolado. Um grupo de cinco homens armados, sem timbre de nenhum exército ou empresa, esperava o pouso. Quando deu o primeiro passo para fora, o grupo o cercou, cobrindo-o de todos os lados. Com passos rápidos, ditavam a velocidade que Andrew devia caminhar - ou trotar - até um jato particular. O grupo checou o entorno e três deles entraram atrás do pesquisador, enquanto dois ficaram no solo.

O jato não tinha luxo, ao contrário do que Andrew esperou. Havia sido inteiro modificado para conter toda a sorte de aparatos eletrônicos de monitoramento. A assistente virtual do equipamento tinha voz masculina, o que era pouco comum. Não havia cabine de vôo, já há meia década abandonada na fabricação de novos modelos. O avião se pilotava sem o risco de um erro humano. Bastava anunciar o local de pouso.

— Aeroporto - disse um dos homens armados, tirando um papel do bolso para ler as letras ali escritas - 001WST256.

O assistente confirmou o dado e o avião ligou. Após taxiar brevemente, levantou vôo. O assistente informou a previsão de chegada, a temperatura, e o tempo no destino, e seguiu viagem tranquilamente.

Andrew não estava nem um pouco tranquilo.

O tempo de vôo condizia com suas expectativas. Estava indo para Washington DC, provavelmente para ser interrogado. Anos de pesquisas, pedidos de financiamento negados, ajudas externas, tirando dinheiro do próprio bolso, para que, de repente, o governo se interessasse pelo seu projeto - agora em mil pedaços.

Não ousou falar com um dos homens. Tinha plena noção de que não adiantaria de nada. Nenhum deles sabia o que estava acontecendo, e é assim que tinha que ser. Não eram sequer parte do exército. Apenas contratados para fornecer a segurança da “encomenda”. Fazia parte não saberem de nada.

O avião pousou horas depois. Um carro blindado já estava parado esperando por ele. Mais seguranças, mais homens armados. Mais do que ninguém, Andrew sabia do valor que Thea tinha para a humanidade. Entendia que dependia dela a sobrevivência da espécie humana.

Mas de uma certa forma, também dependia dele.

Pôs a mão no bolso, onde o pendrive permanecia seguro, comportando partes decisivas da construção do projeto. Talvez devesse comentar que haviam mais pessoas com informações relevantes e que precisavam de proteção. O engenheiro que o ajudou a colocar tudo no lugar, o gerente da empresa que cedeu seu maquinário para as peças mais finas, o engenheiro elétrico que conectou os circuitos. Thea tinha o trabalho de uma equipe inteira. Mas no fim, a patente dos algoritmos ainda era dele. Qualquer plataforma com aquele software poderia calcular as chances de sobrevivência do homem e como virar o jogo.

O carro parou em frente a Casa Branca, o que lhe pareceu pouco seguro. Se havia realmente alguém seguindo-o, sua localização final era a mais óbvia possível. Andrew, porém, não era o alvo mais óbvio possível.

O professor foi guiado, ainda sem qualquer informação, pelos corredores e salas. Subiu escadas e foi parar numa sala de reuniões onde sete homens brancos engravatados conversavam antes mesmo que chegasse.

É importante dizer que Andrew, com sua pele acastanhada, tipicamente latino-americana, havia vivido o suficiente para saber que, se as abelhas estavam se extinguindo e pessoas passavam fome, era por erros sucessivos do ser humano. E por ser humano, entende-se homens brancos engravatados.

— Doutor Eagle - salutou um deles, levantando-se da cadeira de couro preta -, por favor perdoe a forma como lhe trouxemos.

Ele deu um tapa amigável, porém firme, na lateral de seu braço, o que fez Andrew desequilibrar por um segundo. Sua garganta estava seca e a testa molhada. Não fazia ideia de quem eram aquelas pessoas, mas sabia que eram importantes (de alguma forma). Eles sempre eram.

— Meu celular foi tomado - Andrew conseguiu dizer.

O homem gordo, de lábio inferior grande demais, e uma careca rodeada por fios que lutavam contra a gravidade, pareceu surpreso com as primeiras palavras de Andrew. Os demais na sala também remexeram-se, entreolhando-se.

— Ah, sim. Procedimento de segurança. Poderiam te rastrear.

— Eles podem me rastrear pelo chip - Andrew reforçou, tentando ao máximo parecer irritado, quando, na realidade, sua voz falhava e a mão tremia ao levantá-la para mostrar o punho, onde um chip de avaliação física estava implantado.

— Ora, sente-se. Daremos outro celular quando sair - o político ordenou.

Andrew não lutava contra hierarquias. Era mais inteligente do que isso. Não que confiasse no direito de um  homem mandar o outro sentar - longe disso. A hierarquia não tinha sentido algum. Mas tinha efeito para todos que acreditavam nela. E pessoas com hierarquias altas tendem a acreditar piamente no sistema. Portanto, Andrew sentou-se.

Não era preciso prestar muita atenção nos demais. Eram bem parecidos com o primeiro. Gordos, carecas, brancos e engravatados. Seus nomes e posições estavam nas plaquinhas à frente dos mesmos, na mesa, mas Andrew não ergueu os olhos para vê-los.

— Grande pesquisa a sua, doutor Eagle - disse o primeiro homem -. Eu diria que o senhor tem realmente um talento nato. Tem quantos anos? Não diga. Tenho aqui sua ficha. Trinta e oito anos e seis pós-doutorados. MIT, Harvard, Caltech.

Andrew fez uma exceção para o homem que o cumprimentou e ergueu os olhos para mirar o nome na placa, já que era só ele que se dirigia ao professor.

 

Gordon Hilton - President

 

A garganta seca pareceu trincar e ele tossiu violentamente. Estava conversando com o presidente dos Estados Unidos. Qualquer pessoa normal - que não tenha ignorado completamente o mundo exterior, as eleições, as crises e as guerras comerciais que aconteciam do lado de fora do laboratório - saberia quem era Gordon Hilton.

Mas pessoas normais não desenvolvem Inteligências Artificiais capazes de salvar a vida na Terra.

— O governo não ofereceu o financiamento que pedi - Andrew disse, arrependendo-se rapidamente de erguer os olhos para mirar o presidente.

Um dos outros seis homens soltou uma risada contida com a mão sobre a boca. Os demais sorriam. Aparentemente, aquela não era a forma padrão para lidar com o presidente.

— São tempos difíceis, entende?

— O financiamento era para resolver os tempos difíceis - Andrew insistiu -. Os tempos são difíceis porque outros milhares de cientistas tiveram seus financiamentos negados e prioridades jogadas pra longe deles quando os tempos eram fáceis - ele acusou.

A voz se afinou no meio do caminho e ele não olhou para cima nenhuma vez durante a frase. Exatamente o oposto do comportamento de um homem que acusa.

— Senhor Eagle - chamou um homem dos olhos esbugalhados -, o que o Presidente quer dizer-

Doutor Eagle - ele corrigiu -. O que o presidente quer dizer é que agora que mostrei Thea ao mundo, de repente há interesse em financiar o projeto.

— Com segurança, desta vez. Em quantos computadores o senhor instalou o algoritmo da android? - questionou o mais novo daqueles homens, com o cabelo apenas ameaçando fugir da cara esbranquiçada com pó.

Na plaquinha dele se lia Ygor Hassan, o que era uma combinação de nomes bastante estranha para um americano num cargo tão alto. Secretário de Inteligência.

— Em nenhum - Andrew respondeu, ofendido -. Apenas Thea tinha o algoritmo instalado. Seria loucura instalar num computador. Não é um programa pra ser lido num celular ou num tablet. Imagine! Um computador que percebe o mundo à sua volta.

— Mas o programa rodaria num computador? - Ygor insistiu.

— Rodaria em qualquer hardware com memória suficiente. Não significa que deva ser rodado em qualquer hardware. O algoritmo iria fazer o computador ciente do-

— Onde está o algoritmo?

Andrew botou a mão na lateral da perna, onde sentiu o pendrive.

— No meu laboratório, em Pasadena.

— Não deixaria o algoritmo no laboratório - acusou um homem mais velho, mais magro, e com mais pose de quem confia em hierarquias -. A coisa mais importante para você, largada num laboratório?

— Não vou entregar meu algo-algo-algoritmo. Foram anos de pesquisas sem financiamento do governo - ele gaguejou, mirando a mesa e ninguém mais -. Não para ser enfiado num computador.

— Não queremos seu algoritmo, professor. Queremos garantir que ninguém mais o tenha.

Andrew mordeu o lábio inferior e as mãos se fecharam sobre a calça jeans. Olhando para baixo, os cabelos enrolados e cumpridos demais - não por estética, mas pelo tempo passado dentro de um laboratório isolado - caíram na frente do óculos. Quando levantou a cabeça, ainda sem mirar nenhum daqueles homens, precisou tirar os fios da frente dos olhos, o que não lhe deu um ar muito sério.

— O mundo todo já sabe da Thea.Tiraram meu celular para que eu não recebesse ligações, não para que eu não fosse rastreado. Estou na Casa Branca, não numa base secreta, não é preciso me rastrear. A Rússia, a China, a Alemanha, o Japão, todos eles sabem onde estou. Todos eles estavam assistindo. Não vai demorar até que alguém consiga o algoritmo. Os dados estão espalhados por aí, em forma de requisição de financiamento. Foram muitos. Demorei cinco anos pra finalizar o projeto e construir a Thea, e a cada seis meses, um detalhamento do processo era enviado ao governo. Os pedaços estão espalhados no meu email. É só juntar tudo. E mesmo que faltem partes, posso citar pelo menos oito nomes de cientistas que seriam capazes de preencher os vazios das informações. Apenas dois deles são americanos. E tinha um maluco com uma bomba num congresso. Ele sabia o que eu estava fazendo. Como ficou sabendo? E quanto do projeto ele tinha? Quem mais teve acesso?

— O atentado - explicou o Secretário de Defesa - veio de um purista. O grupo atacou diversos laboratórios de IA no mundo todo, não há motivo para crer que-

— Minha palestra não estava descrita como “apresentação de nova tecnologia de IA” - interrompeu Andrew -. Ele sabia o que eu estava fazendo ali.

Os homens reagiram coçando a garganta, dedilhando a mesa de madeira, desviando os olhos do presidente, passando a mão pelo que restava de seus cabelos. O que Andrew tinha de fios na cabeça seria o suficiente para compensar pela falta de todos na sala, imaginou rapidamente, distraindo-se por um segundo da conversa.

— Thea não foi feita pra ser uma salvadora da pátria americana - Andrew continuou no silêncio deles, retornando a si -, nem pra ser usada pra salvar apenas as nações que aprazem o senhor Presidente dos Estados Unidos. Thea estava calculando uma solução para o mundo todo.

— E o que sugere, Doutor Andrew? - o Presidente questionou.

— Uma nova Thea pode ser construída em um ano se tiver o apoio dos outros países.

Três dos presentes começaram a rir.

— Propõe que uma tecnologia com potencial de salvar a humanidade da extinção vá parar na mão dos Russos? Dos terroristas?

— Proponho que esteja nas mãos de todos. Inclusive dos Russos. As pessoas vão morrer. Russos, Argentinos, Americanos. Sem distinção. Se abrir para o mundo todo trabalhar nisso de forma igual, não pode ser usada contra ninguém.

— O senhor não abriu para o resto do mundo trabalhar nisso com você quando era seu projeto de pós-doutorado - acusou uma vozinha sentada na última cadeira da mesa, de onde Andrew teria que fazer esforço demais para ler a placa ou se importar com quem era.

— Muito pelo contrário. Pedi colaboração em todos os grandes centros de tecnologia do mundo tão logo vi que o algoritmo poderia funcionar. Mas o mundo está preocupado com o desenvolvimento de aromas pras barras protéicas que estão querendo produzir para alimentar uma população que vai morrer de qualquer forma. É como gritar numa sala vazia. Só empresas particulares financiaram o projeto. Uma delas, em solo americano. Thea é só 15% americana.

Fez-se silêncio. O Secretário de Defesa olhou para o presidente, e eles pareceram conversar com o olhar. Ygor escreveu algo em seu tablet e salvou a informação diretamente no celular. Eles abaixaram a cabeça e começaram a digitar em suas telas flexíveis ultra-finas. Provavelmente conversavam entre eles.

— Abriremos o projeto - concluiu o presidente -. Mas os Estados Unidos ficarão encarregados do gerenciamento e dos aspectos legais.

— Não é comigo que deve discutir isso. É com os outros países.

— Pois quero te convidar, Doutor Eagle, para discutir com outros países. Veja o que acham da sua ideia de cooperação global. E tente não causar uma guerra, por favor.

 — Não se preocupe. Eu também sou apenas 50% americano - Andrew respondeu, levantando-se para deixar a sala.


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