Apocalipse escrita por Natália Alonso, WSU


Capítulo 4
Capítulo 3 – O Caveira




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Cidade do Sol Nascente, Ceará

 

Jonas caminha mancando e trêmulo pelas areias escaldantes, ele vira o corpo devagar mirando a plantação pisoteada, as cisternas destruídas pelo Leviatã, os galpões moradias que estão no chão ainda queimando. Os olhos castanhos deixam lágrimas transbordarem e rolarem na pele coberta de areia, sangue e pequenas cicatrizes. Aos poucos os fogo do último galpão é cessado e Jonas repara em uma das cisternas com uma cruz em cima, Arthur as está usando como cova.

Jonas respira profundamente antes de se aproximar mais do galpão vendo o velocista correr de um lado a outro tirando os últimos escombros de cima da porta do alçapão. Depois de tirar tudo, Arthur olha para a porta completamente deformada pelo fogo, claramente se foi o suficiente para moldar o ferro, não há sobreviventes. Ele vira para Jonas esperando o momento. O aracnídeo acena com a cabeça dando a permissão e ele abra a quebradiça porta de ferro.

 

O ar quente sai, engolfando os dois em um mórbido cheiro de morte, eles olham.

 

Não falam nada.

 

Não há o que dizer.

 

Em absoluto silêncio eles entram e começam a tirar os corpos para levar até as covas.

 

Após Jonas fazer 6 trajetos, Arthur fez 42. Eles puxam o tampo da cisterna fechando a câmara mortuária improvisada.

— Por que não me chamou para te ajudar? — Jonas se senta ao pé da cisterna fúnebre.

Arthur se vira com o corpo imundo de fuligem e os óculos quebrados. Ele limpa a viseira antes de falar:

— Você precisava descansar, fora que está ferido.

— Quanto tempo fiquei apagado?

— Não sei, algumas horas. — Arthur bate as mãos no uniforme prateado tentando inutilmente limpá-lo. — Digo, eu não apaguei, os vi lutando ainda e depois irem embora.

— Você viu? E não fez nada? — Jonas mostra desaprovação.

— Os nossos estavam mortos, Jonas. Quando eu te trouxe e vi, não tinha mais ninguém do lado de fora, só Cains e Karens, o que queria que eu fizesse?

— Quando pedi que salvasse as pessoas dos porões, ainda havia tempo?

Arthur se lembra de quando chegou lá, dos gritos de horror que ouvira e da porta vermelho incandescente. Ele lembra de como vira as Karens espancando Jonas, ele não sobreviveria, ninguém nunca sobrevive das Karens.

— Quando eu cheguei a porta estava vermelha já, havia silêncio. Eles já tinham morrido, Jonas. Eu só pude salvar você.

O Aracnídeo balança a cabeça com as mãos apoiadas, a dor em seu peito dilacera seu ser.

— Vo-você viu Andressa? — questiona o corrompido com a voz falha.

Arthur olha para as cisternas lacradas, volta para o líder sem grupo.

— Eu não... eu não reconheci...

O choro do Aracnídeo desaba no local, agora, apenas o vento e a lamúria do rapaz emite algum som na área desértica. Arthur se senta ao lado dele.

 

 

 

Esconderijo dos Cains

 

O quarto escuro é um refúgio simples, Lucy está indo para Brasília, precisa se encontrar com Marcos. Mas por hora, também precisa de um descanso, afinal, o Leviatã quase teve o maxilar quebrado pelas aliens e ela também não tivera muita sorte. Homens, corrompidos, nomans... tudo isso não é um problema para a vampira, mas a Aliança realmente a preocupa. Então o casarão servirá por essa noite, os orobas desceram aos infernos, mas ela não quer descer, prefere a noite fresca em terra.

O corpo de um refugiado toca no piso de madeira, ele está pálido e seu coração parara de bater completamente. Lucy liberta o pescoço dele de seus lábios sedentos e puxa o ar pela boca úmida e rubra. Deixa o corpo caído e se levanta olhando para as próprias mãos se regenerando rapidamente. Camada a camada os dedos se formam do que fora destruído em luta com as réplicas. As aliens têm grande força, ela também. Mas elas são numerosas e Lucy, apenas uma. Ela desata o corset de couro negro e desabotoa parte da camisa manchada de sangue e terra.

Anda devagar, está um pouco cansada, vai até a parede tocando-a e sussurra em uma voz rouca.

— Mefistófeles.

Uma neblina esverdeada a rodeia, ela inspira o cheiro inebriante do esposo demoníaco que se forma em um abraço em suas costas.

— Olá, minha rainha.

Ele segura o queixo da mulher a conduzindo em um beijo, ela se entrega, mas ele interrompe.

— Como foi a luta? Conseguiu mais escravos para nós?

Ela franze a sobrancelhas estranhando a necessidade da pergunta.

— Você não viu?

— Eu estava ocupado. — fala virando o corpo de Lucy para si. — Estava com meu irmão, Lúcifer. Ele precisava de sua penitência por achar ser o herdeiro do trono.

Lucy olha para o peito de Mefisto, prende os lábios não gostando da resposta.

— O que foi? — Ele questiona.

— Nada. Só estou cansada. — Ela desvia o olhar. — A luta estava indo bem até as aliens chegarem. Eu disse que elas encontraram alguma forma de detectar o Leviatã. Vieram rapidamente, numerosas, tive que tirar todos de lá. Perdemos poucos orobas, mas quase o dragão foi abatido pelas clones.

— Essa maldita Aliança! — Ele se afasta e golpeia a parede, causando um buraco no local. — Essas primatas do espaço estão me irritando!

— Eu pretendo dormir aqui, então não destrua o lugar. E outra, é por isso que precisamos atacar a sede deles em Washington. Enquanto eles produzem aliens infinitas não adiantará ficar lutando com centenas delas.

— Faça mais vampiros! Eu faço mais orobas com as almas amaldiçoadas! E os refugiados?

— Estão mortos, não tinha como pegar os cadáveres deles com as aliens lá. Eu posso fazer mais Cains, mas isso tem que ter um limite! Tantos vampiros e tão pouco alimento! Primeiro temos que resolver as aliens, os refugiados não são um problema, mas a solução.

— Está me dizendo o que devo fazer? — Mefisto vira os olhos para Lucy, os cornos torcidos do demônio nunca pareceram tão grandes perto do rosto dela.

— Sim. Direi o que precisa ouvir.

O demônio se acalma, fecha os olhos devagar e retoma.

— O que sugere?

— Organize um ataque com os orobas na sede da Aliança. Eu cuido dos refugiados, farei muitos vampiros para nós e muitos escravos para servirem de alimento. Já que elas sabem quando o Leviatã vem em terra, deixe que ele devore-as.

— Somente os orobas? Não será suficiente.

— Será se levar a maioria dos vampiros. — Ela fala o acalmando com um beijo no pescoço.

— Mas você terá poucos. — Mefisto questiona confuso.

— Eu irei falar com o traficante, mandarei ele atacar o grupo de São Paulo. — A mão dela desliza nas costas dele.

— São Paulo? Aquilo ainda tem alguém?

— Ah! Meu querido, eles são ratos se escondendo no lixo. Eu mandei alguns gatos que miaram para mim. Tem uma farta comida lá, fora os vermelhos... — Ela fala desabotoando a camisa verde de Mefisto, pousando beijos em seu peito.

— Hum... acha que teremos vampiros suficientes para isso? — Ele questiona já de olhos fechados.

— Sim, se precisarmos de mais, podemos chamar os que ficaram na Ásia, na África... tenho certeza que eles estão sedentos também.

— Ótimo. — Ele responde friamente e se afasta, deixando a mulher parada tolamente no local. — Desculpe, mas essa noite irei descer. Estou cansado.

Ela o olha conformada.

— Faça o que quiser, amado rei. — responde transpassando frieza.

Mefisto se curva ainda com a camisa entreaberta e se desfaz em uma neblina verde saindo do quarto. Lucy analisa o cômodo vazio. Rosnando, ela golpeia de uma vez uma mesa quebrando-a e depois pega a estante de livros e atira em fúria para o outro lado do cômodo. A porta do quarto se abre rapidamente com Baal surgindo já pronto com uma adaga em punho. O Demônio de cabeça de touro ainda é o general de Mefisto, comandante dos orobas.

— O que está... — Ele olha pelo cômodo e percebe que ela está sozinha. — senhora?

— Não preciso de sua ajuda, Baal! — vocifera ela.

— Eu sei que não, senhora, apenas... me desculpe. — Ele entende e já começa a fechar a porta do quarto.

— Não. Espera! Mande um rádio para Marcos. Diga que estou indo ter com ele. Aquele aleijado traficante me deve explicações de como deixou escapar nosso trunfo contra os vermelhos. Eu mesma devia...

— Sim, senhora. Mais alguma coisa que queira?

— Eu? — Ela o fita com seus olhos verdes, puxa o cordão de couro desfazendo o trançados da negra cabeleira. — Não Baal, não se preocupe com isso. Depois, pode descer se quiser, irei para Brasília amanhã.

Ela se senta na cama, se apoia para tirar as botas. Baal a observa. Os olhos negros de bisão percorrem o corpo da rainha.

— Ainda está aí? — fala ela de costas a ele.

Ele relincha uma vez.

— Esqueça isso, Baal. Pelo seu próprio bem. Eu não sou como meu esposo, por mais que ele mereça.

Baal fecha a porta, deixando-a sozinha.

 

 

 

Palácio do Planalto

 

A mesa longa e farta de comida está rodeada de diversos capangas. Na ponta, Marcos Fonseca bebe cerveja deixando o resto de frango e arroz passar grotescamente pela janela de sua bochecha antes de desaparecer em sua garganta. Matheus, na primeira cadeira da lateral, o primo do Caveira, ri sempre que vê algo aparecendo no televisor do rosto do chefe do tráfico de narcóticos e escravos.

— Sabe que eu tinha que agradecer a tua sobrinha, quando ela mastigou a sua cara, primo, te deixou bem mais bonito.

Marcos para de beber, olhando para Matheus, coloca o caneco de vidro ruidosamente na mesa com o rosto em desaprovação. O movimento chama a atenção de outros, que param de comer e espiam para a ponta da mesa. Ele olha por alguns segundos para ele e depois solta uma sonora risada.

— É primo, um charme mesmo. Outro dia uma puta me perguntou o que tinha acontecido, coitada. — Marcos mastiga mais uma garfada de arroz. — Falei que me cortei fazendo a barba.

Todos riem. Matheus é o braço direito de Marcos, ou o “outro direito que ele tem” como é explicado pelo próprio Caveira. Sempre que precisam atacar uma nova área, ele é o estrategista, o único que o chefe dá ouvidos de verdade. Alguns dizem que foi ideia dele em se aliar aos Cains, Marcos antes da guerra explodir era “apenas” o maior traficante da América Latina, mas restrito aos narcóticos. Mas os Cains sempre precisam de escravos, tanto para trabalhos, como para servirem de alimento dos vampiros.

O Caveira vira para o lado arrumando com a faca lisa uma carreira de pó branco. Cheira ruidosamente na mesa. Lambe os dedos e recolhe o resto do pó passando nos dentes, entre resto de alimentos e ainda rindo com o primo. Matheus, tal como Marcos, é louro, mas deixa o cabelo cortado curto e a barba bem aparada. “Cara de bom moço”, como dito pelo primo chefe do tráfico, mas nas roupas eles dividem o mesmo bom gosto. Camisas de seda em estampa de animais, folhagens, brilhosas de cores vivas, correntes de ouro e anéis grandes nos dedos. Marcos gosta tanto dos anéis que as vezes coloca um no dedo mecânico que agora pega uvas no prato a frente.

A porta se abre, Liu entra com a cabeça e mão enfaixada, anda até a mesa e senta-se próximo a outra ponta. Cumprimenta os outros com um aceno de cabeça e serve o prato em silêncio. Marcos fita o asiático de terno finamente cortado em tecido branco.

— Não se preocupe, ela começou pelo dedo, mas vai chegar até a cara. — fala Marcos se referindo ao indicador faltante da mão esquerda de Liu.

O asiático serve arroz, legumes, frango, molhos sem olhar para o Caveira.

— Eu vou achá-la. — responde baixo.

— Não vai, a essa altura ela já deve estar com os vermelhos. — rebate o chefe enquanto se levanta, indo até o centro da mesa.

— Então melhor ainda, pegaremos todos de uma vez. Eu desconfio de onde estejam, pela forma que se esconderam tão rapidamente, devem estar próximos.

— Próximos onde? — O caveira ouve interessado enquanto destroça uma galinha suculenta.

— Acho que no pantanal, quando lutamos com eles da última vez, eu reparei que alguns tinham lodo na roupa. — Educadamente o asiático leva a mão na boca e engole parte da comida antes de falar. — Uma estratégia para se esconder é ficar bem debaixo do nariz do gigante, não enxergamos, pois está muito óbvio.

Marcos para pensativo escolhendo a peça que irá comer da úmida carne de ave.

— Então quer levar homens pro mato agora? — fala em um tom debochado, vários na mesa riem.

— Se não se importar... vou trazer a piranha e toda a família de cachorros.

Marcos ri alto antes de falar:

— Ela é minha sobrinha. — recrimina em tom seco.

Liu para de comer.

— É eu sei... descul...

— É uma piranha mesmo. Mas toma cuidado, não quero que machuque nenhuma mulher ou pirralho, meus filhos estão lá.

— Certo. — Liu meneia a cabeça em reafirmação. — Serei cauteloso.

— Se bem que — Marcos finalmente escolhe uma coxa de frango, morde um grande naco e fala deixando escapar lascas gordurosas na barba loura. —, se não tivesse o mau-hábito de visitar a princesa na cela de noite, isso não teria acontecido. Eu disse que era pra sempre prender pernas e cintura, se tivesse feito isso, ela não teria escapado.

Liu para por um instante.

— Você me conhece, adoro quando me prendem com as pernas. Algumas coisas não dão para abrir mão né. — Liu fala sorrindo para o Caveira, que mastiga o frango olhando para ele.

Marcos dá mais dois passos e se encosta na mesa ao lado do asiático.

— É... quem sou eu pra falar de amor, né. — Oscila a fala com mastigações da coxa na mão mecânica.

— Isso não vai se repetir.

— Eu sei que não. Até por que, se tentar se aproximar dela, é capaz dela mastigar outra coisa sua. O que deve doer para um “não-caralho”. — Marcos ri.

Liu balança a cabeça risonho antes de completar:

— Se você quiser que eu fale com os Cains, não tem problema.

— Falar com eles? Por que diabos você faria isso.

— Foi minha culpa dela ter escapado. Se eles quiserem fazer alguma coisa...

— Tá sugerindo o que?

Liu fica atônito.

— Eu-eu... não, é que...

Marcos ri alto.

— Não se preocupa, “pastel de flango”, eu dou um jeito nisso. — Marcos puxa a última lasca de carne do osso, morde a ponta comendo a cartilagem da articulação. — O importante é a gente atrair a cachorrada para fora com um petisco e quando a gente tiver tudo, eles não vão reclamar. Eles não gostam quando não cumprimos as coisas, mas se fazemos tudo, fica tudo certo.

— Ah! Sim... então está tudo bem?

— O que? É claro que sim. Quem nunca fez merda por causa de uma garota... — Marcos ri de boca aberta.

Liu ri, meneando a cabeça. Marcos vira o osso do frango na mão e acerta a jugular do asiático, perfura a pele causando um jato de sangue quando a arma é retirada. O Caveira vira o corpo do homem que tenta levar a mão no ferimento e apunhala com o curto osso no peito e depois no rosto duas vezes. Deixa cravado no olho do asiático quando fecha o punho metálico dando socos na face, o som abafado de ossos se quebrando é presente a cada golpe. Respingos tingem a camisa florida acetinada e o rosto em fúria do traficante:

— Toda essa fodida bosta por causa do seu pinto amarelo! Seu maldito piru de frango frito com ouriço!

Mais um soco e a cabeça pende com o pescoço quebrado na cadeira. Marcos solta a camisa deixando o cadáver ir de costa ao chão.

Marcos abre a mão humana e passa nos olhos e depois na careca, espalhando o sangue e suor em uma faixa rubra. Se vira para seu primo que assistia a tudo comendo na mesa:

— Faz o que o meia-pica falou. Acho que é uma boa ideia mesmo.

— Sim. Acho que sim. — responde o primo depois de beber mais um gole de cerveja.

Marcos dá a volta na mesa, volta a pegar mais uvas e se senta novamente na ponta para terminar de comer.

 

 

 

São Paulo, refúgio dos Saqueadores

 

Quando Aradia entrou no refúgio, muitos olhares foram para ela. A mulher com capa de penas negras chamou a atenção enquanto caminhava junto ao grupo e Henrique fechou a porta da sala de reuniões.

— Então, vocês conseguiram o que precisavam? — questiona Henrique, ansioso.

O Soldado puxa uma catana e a coloca na mesa, Henrique se curva observando estranho brilho que se faz presente na lâmina.

— É essa? Como conseguiram...

— Não, essa é a Kitsune, uma catana amaldiçoada. — fala Azatoth com a voz abafada pela máscara de respiração.

— Mas, isso será o suficiente? Pensei que precisassem da Cimitarra de Luz, ou a do anjo...

— Era muito arriscado, descobrimos que qualquer vampiro cortado por uma arma amaldiçoada impede a regeneração. Já nos foi um grande custo para conseguirmos essa. — Azatoth completa, o Soldado baixa os olhos.

— Estamos planejando um ataque, mudando do que tínhamos pensado inicialmente, vamos matar a vampira. — O Soldado fala em tom baixo.

— A Drácula? Está louco? Ela está sempre nos ataques em terra! — Dominique interveem.

— Sim, eu sei. — responde o Soldado. — É por isso mesmo. Se a tirarmos de campo, Mefisto terá que arranjar outro vampiro para comandar os exércitos. Os orobas normalmente são coordenados por ela ou Baal, mas os vampiros, são sempre ela.

— Ele pode colocar outra pessoa no lugar, nada de mais. — Henrique fica apreensivo.

— Sim, mas quem quer que seja, não seria um de linhagem pura como ela. Aradia descobriu que ela possui poderes especiais, pois a alma dela não é amaldiçoada.

— Eu já a vi bem de frente. Se tem algo que ela seja é...

— É diferente. — fala a bruxa, calmamente. — Não há outro vampiro como ela, ou pelo menos, ainda não. Esses Cains são tradicionais nesse quesito, vão exigir um líder nas mesmas condições que ela.

Aradia puxa uma cadeira suja de fuligem atômica, passa a mão no encosto e senta-se. A capa se abre na altura da cintura revelando a saia rasgada e um cinturão de pequenas caveiras de animais, além de uma boneca de tecido. Dimitri dá um passo, observando a estranha vestimenta, ela cruza o olhar dele que recua, então a mulher retoma:

— Eu a vi com os vampiros, ela os comanda mentalmente, são conectados de alguma forma. Aliás, ela já sabe de vocês aqui.

— O que?! Mas como? — Henrique fica assustado.

— No outro refúgio do Paraná foi a mesma coisa. Tudo ia bem, até alguns vampiros aparecerem como exploradores. — Azatoth responde dando uma respirada barulhenta pela máscara de gás.

— Vocês chegaram na hora, viram que não deixamos ninguém escapar. — Henrique fala já se apoiando na mesa.

— Da outra vez, também não deixamos. Ainda assim, os vampiros vieram pouco depois, Aradia que nos avisou, a maioria dos nossos não sobreviveram. — O Soldado fala, de forma pausada baixando o tecido que recobria parte do rosto. — Eu tenho que pegá-la.

Henrique para e olha ao redor.

— Você ou o grupo?

O Soldado balança a cabeça confirmando o desejo de vingança, Azatoth se encosta na parede e Aradia se aproxima.

— Os vampiros são poderosos, mas são assim, pois muito poder foi convergido para ela. Se a tirarmos do caminho, teremos possibilidade de sobreviver. E agora que eles já sabem daqui, temos que atacá-la o mais rápido possível.

— E onde irão encontrá-la, sabem o seu esconderijo?

— Ela estava no Ceará ontem, mas está em viagem.

— Como sabe disso? — Dominique questiona de braços cruzados.

Ela sorri, um corvo invade a sala passando por uma estreita janela. Pousa na mesa e bica o móvel metálico, gralhando em seguida.

— Informações veem a todo momento. — Ela olha para o animal e depois volta o rosto para Henrique. — Ela está a caminho do Caveira agora, se nos apressarmos, a encontraremos ainda enfraquecida.

Dominique franze a sobrancelha e vira para Henrique.

— Achei que era só você que falava com animais...

— Eu não... ah, não importa. — resmunga Henrique. — Ferida? Por que ela está ferida?

— Eu não sei de tantos detalhes assim. — Ela fala. — Não deveríamos nos unir aos Vermelhos?

— Não conte com os vermelhos. — Henrique vira o rosto.

— Por que diz isso? Nunca tivemos problemas com eles... — Azatoth fala da ruidosa máscara.

— Eles foram atacados pelos Caveiras, o rei Pedro foi morto na tribo e Daniele foi levada. Eu não sei dela a semanas. — Henrique fala com pesar.

— Pelo jeito estamos ficando sem mulheres. — Dominique murmura baixo, Dimitri o cutuca recriminando a fala.

— Então, o plano é vocês da Liga dos Assassinos irem matar a vampira no antro lotado de Cains? Não me parece nada bom.

— Você tem algum melhor? — rebate o Soldado.

— Não, mas isso não quer dizer que...

— Aquela maldita matou Renata e todos da Liga dos Assassinos que pôde.

Henrique para, compreende cruzando os braços.

— Sim. E por que ela matou vários de vocês, acham que podem matá-la sozinhos? Isso é o pior plano do mundo.

— Eu estarei com eles dessa vez — Aradia intervém —, se me conseguirem uma gota de sangue, um fio de cabelo que seja, poderei deixá-la...

O Soldado a interrompe com uma batida violenta na mesa.

— Eu já te disse que EU irei cuidar disso!

Henrique fala com cautela.

— Tales, não acho que você esteja em condições de...

O Soldado lança um olhar fuzilante, Azatoth se aproxima e toca no ombro do amigo.

— Tales, escute um pouco a razão, eu sei que você quer vingança por Renata. Mas nós vamos te...

O Soldado vira o braço se soltando, os gêmeos notam que ele segura com força outra adaga na cintura.

— CHEGA! — berra Henrique. — É por isso que ninguém aguenta a Liga dos Assassinos, vivem querendo agir sozinhos, vocês não são mais invencíveis. Essa espada é a melhor chance que temos nos últimos tempos. Não desperdice com egoísmo de querer agir sozinho!

Henrique se aproxima do Soldado, segurando a mão dele apoiada na adaga.

— Quer matar a vampira? Vá! Eu poderia te dar também uma lista de pessoas que querem fazer o mesmo.

Tales ouve olhando profundamente para os olhos cinzas de Henrique, respira mais uma vez e depois sente o calor emanando das mãos de Dominique atrás dele.

— Vão ficar se escondendo aqui enquanto isso?

— Cada um, luta à sua maneira. Eu e os Saqueadores ficaremos protegendo o nosso refúgio da Resistência.

— Acorda, Henrique! A Resistência acabou quando a tua vermelha foi pra floresta e foi pega pelo caveira.

Henrique segura o soldado pela camisa e o carrega até a parede, o aperta contra as pedras com os olhos brilhando em cinza claro.

— Não a conhece como eu, ela está viva! Eu protejo os meus, se quer ir para uma missão suicida, eu não vou te impedir. Mas não venha sugerir o que não sabe.

Henrique sente uma lâmina tocar o pescoço, ele desce os olhos e nota a mão negra de Aradia atrás dele segurando a adaga. O noman tem grande audição, ouviria facilmente alguém se aproximar, mas ela age de uma forma... estranha.

— Iremos nós três, alguma objeção? — Ela afasta a ponta devagar.

— Realmente, essa nova membro da Liga é interessante. — fala ele baixando as mãos e deixando Tales ficar de pé.

— Tu nem imagina o quanto. — completa Tales, já mais calmo.

 

 

 

Lago Cocite, nono círculo do Inferno

— A traição -

Após passar pelos seis gigantes congelados, Lucy caminha no lago petrificado pelo frio. Seus sapatos de saltos largos pisam com firmeza na espessa camada acima do lago abaixo. Um som de batida lhe chama a atenção, ela se inclina e observa o príncipe Antenor esmurrando na camada vítrea, em sua eterna agonia de afogamento dentro do lago. As lágrimas dos condenados formam essa belíssima paisagem nevada, ela analisa com certa paz, seu pai está nessa prisão, mas hoje ela não veio visitá-lo.

Passando por paredes brancas e azuladas, ela encontra a cela no canto mais profundo dos Infernos, o irmão de Mefistófeles está em sua longa danação. Preso às largas correntes, os braços abertos de Lúcifer mantêm o seu corpo suspenso, como que crucificado. As cicatrizes do lado esquerdo de seu lábio foram causadas na luta pelo trono, todas as outras, nos milênios de tortura que ele é submetido por Mefisto, ou por sua esposa, Lucy.

Ela fita-o no alto, o pé esquerdo dele ficou levemente torcido com a cicatrização errada, Baal o pisoteou com sua grande pata fendada na luta em que o príncipe se tornara prisioneiro. Agora magro, peito nu e calças ralas ele permanece em uma longa espera, a cabeça de pequenos chifres quebrados pende a frente. É alimentado à força, esfolado, queimado, ferido e tantas outras humilhações apenas por ter sido a primeira criação de Moloch e portanto, herdeiro legítimo do trono infernal.

Ela olha o peito dele, com seus poderes consegue ver seu coração pulsar, o sangue demoníaco e poderoso correndo em suas veias. Ela se vira para a parede, começa a girar a manivela que baixa lentamente as correntes. Ele está preso também pela cintura e pés, não consegue se mover, mas ao sentir a descida lenta, ele abre os olhos e encontra os pontos verdes do rosto da rainha dos condenados.

— A quanto tempo, cara cunhada. A que devo a honra de sua visita? — fala ele entre os dentes quebrados, apenas uma das presas restou na boca em frangalhos.

— Meu esposo pediu que eu viesse lhe fazer a penitência do dia. Espero que não se incomode com a substituição.

Lúcifer a olha e depois baixa o rosto em silêncio. Ela se vira quando o demônio já está a sua altura, os pés a poucos centímetros de tocar o chão, vira-se para a parede lateral, escolhendo um chicote longo. Os saltos batem no gelo do chão até atrás do prisioneiro ela sibila no ar o fino couro marrom que corta uma fina linha nas costas dele. Ele contrai lateralmente o rosto, em silêncio. Um novo golpe, esse atinge sua coxa esquerda e ele rosna baixo, e depois mais alto quando é atingido no terceiro golpe. Quando levanta o braço mais uma vez ela para de repente.

Ela franze as sobrancelhas, ele estranha a pausa e levanta o rosto tentando entender o que acontece. Parada, ela observa atentamente as costas do demônio, suas cicatrizes uma sobre as outras, não há mais qualquer parte que não possua marcas, ranhuras, texturas. Todas muito cicatrizadas. Os dedos longos dela vão até a pele sensível dele que tem espasmo com o toque.

— Agora minha tortura irá mudar? Talvez eu acabe gostando disso. — sussurra ele.

— Foi o que eu pensei, ele não esteve aqui ontem.

— Quem?

— Mefisto.

Lúcifer franze o cenho e volta o rosto a frente novamente.

— Não.

— Quando ele veio a última vez?

— Eu não sei muito bem a passagem de tempo aqui. Mas se considerar cada refeição... a meses atrás. Você é a única que vem nos últimos tempos. Achei que fosse planejado... — Ao ouvir isso, Lucy se afasta soltando a mão que dedilhava as cicatrizes dele. — Eu não estou mentindo. — Lúcifer completa.

— Eu sei que não. Quando alguém mente para mim, o coração pulsa descompassado, um cheiro é emitido.

— Cheiro?

— Normalmente quando estão comigo cheiram a medo. Mas ultimamente, sinto muito o odor da é luxúria. — fala ela, já escolhendo outro objeto de tortura.

Lúcifer ri, alto e esganiçadamente, ele se curva sentindo a dor do corte profundo do chicote.

— Meu irmão anda te colocando chifres?! E não é de coroa do reino infernal, pelo visto... — A voz é interrompida pelo riso e depois, é cortado também pelo murro dado pela mão da vampira.

Um som de líquido espesso ocupa o ambiente, Lúcifer cospe um dente que cai no chão na grossa camada de sangue abaixo de seus pés. Era um dos dentes que já estavam quebrados.

— Eu tenho poucos, já.

Lucy respira ruidosamente enquanto caminha de um lado a outro, o demônio a observa.

— É sério mesmo isso? Eu estava te provocando, mas então...

— Quem é dessa vez? Súcubo? Lilith? Ou de... ahhh! — rosna a mulher enfurecida. — Maldito... carniceiro desgraçado...

Lúcifer apoia a cabeça em um dos braços observando a vampira traída.

— Fazia tempo que eu não via o sofrimento em alguém. Tinha me esquecido de como é bom.

Lucy para, vira para Lúcifer com os olhos transformados em duas esferas completamente negras. Salta sobre o acorrentado e desfere diversos golpes com as garras, arrancando pedaços de seu dorso e pescoço. Ele grita em dor e desespero quando ela une as unhas fortes e crava embaixo de suas costelas, puxa o lado esquerdo devagar. O ar gélido penetra no interior do abdome congelando instantaneamente parte de seu pulmão exposto. Ele berra e ela solta os ossos torácicos o permitindo cessar o congelamento.

Lucy desce do corpo acorrentado dele, no chão observa o sangue dele escorrendo pelas pernas trêmulas e pés azulados. Ela leva a própria mão coberta do líquido rubro aos lábios e suga saborosamente.

— Naquela época, quando Mefisto te derrotou, você era fraco demais. Agora, chega a ser patético.

Lúcifer não responde, apenas treme com as mãos afastadas pelas correntes que o sustentam. A vampira retoma:

— Mas algo mudou na sua fala. Eu só o conheci a quinhentos anos terrestres, quatro mil anos aqui no inferno. Acho que alguma coisa você aprendeu nesse período, não é?

— O-o que quer, dizer? — fala ele com a voz parcialmente embargada.

— Você não seria pego tão facilmente, seria?

— Nessas condições, mal chego até aos vestíbulos do Inferno. — fala ele olhando para o peito sangrando, para o pé deformado.

Lucy se vira, e acompanha o olhar dele.

— É verdade. Provavelmente você perderá, mas é prazeroso ver um rato fugir de uma serpente, alguns escapam, mas ainda assim você quer ver como será.

O demônio ri, levanta levemente o olhar para ela.

— Você é uma vampira, mas seria um demônio perfeito.

Ela se aproxima com a mão já completamente limpa e os olhos que voltaram ao verde profundo.

— Não, meu querido cunhado. Eu sou muito melhor do que isso. A forma que fui transformada, um monstro que teve a alma vendida sem o seu consentimento, me faz algo muito mais interessante. — Lucy leva a própria mão ao lábio e corta o indicador com a presa.

Lúcifer ainda treme com a dor e o sangramento, ele sabe que não irá morrer, apenas agonizar por muito tempo até conseguir se regenerar. Então, ela se aproxima com o sangue vampírico no dedo, vai até o peito dele e espalha o sangue dela em um corte profundo feito por sua garra.

— Quanto você correria? Será que vai escapar da serpente?

O sangue dela arde no ferimento, ferve na abertura e ele vira os olhos em dor.

— Quantas serpentes estariam atrás de mim?

— Todas. — sussurra ela próximo ao rosto dele. — Porém, eu não. Vou lhe dar uma vantagem, eu estarei assistindo.

Lúcifer volta a olhar o peito e vê que após borbulhar no ferimento o sangue deixara seu peito liso e sem cicatriz.

— Algumas ratazanas comem serpentes. — Ele sorri com os poucos dentes intercalados.

— Eu não quero que você coma, apenas dê umas mordidas.

— Se fizer o que acho que está me propondo, lhe garanto que não irei lhe matar. Eu lhe dou a minha palavra, se acha que vale de alguma coisa.

Ela sorri em desdém.

— É claro que não. Você não poderia, nem se quisesse.

Ela se afasta e vai até a manivela, solta mais das correntes deixando-o ir até o chão, deixa descer ainda mais e Lúcifer finalmente pode se sentar no gelo. Ele fica aliviado, mas depois os olhos arregalam quando ela se aproxima em fúria e chuta o seu rosto. Ele se curva com o impulso dado, ela o puxa, segura pelos cabelos batendo o rosto do demônio no piso congelado. O vira, sobe e o soca várias vezes, abre as mãos em garras o esviscerando. Ele não tem forças para gritar dessa vez, um ronco falho e feral escapa de sua garganta quando ela termina, satisfeita.

Então, finalmente ela se levanta, se coloca de pé acima dele que verte o escarlate no pálido e gélido piso. Ela usa a garra para cortar os próprios pulsos deixando correr duas parcas cascatas de seu precioso e maldito sangue no corpo dele. Move os braços de um lado a outro, fazendo as gotas irem ao rosto, em sua sedenta boca, no peito, braços e pernas. Ela nota o pé dele e pisa com firmeza provocando o som de galhos em um saco de tecido. O sangue ferve na pele do demônio, que fica como um recém-nascido monstruoso.

Aos poucos a voz dele vai voltando, ele se retorce em tormento com o corpo trêmulo. Ela se curva mais uma vez, vai até o pulso direito dele e puxa o pino de trava da larga algema, vai até o rosto dele e coloca o pino em sua boca.

— Morda!

A fera tribulante obedece, ela sorri e solta a cabeça dele, deixando-o ir ao chão em queda. Depois se vira, vai até a alavanca e começa a erguer o corpo do prisioneiro novamente, o levanta devagar até a mesma altura que estava antes. Agora, ele sente alívio pelo frio, ele diminui o horrendo tratamento do sangue vampírico dela que age como um ácido em sua pele. Os olhos dele ficam esbugalhados assistindo ela arrumar a negra cabeleira em uma grossa trança lateral e depois deixar a cela fria. Ele permanece suspenso, grunhindo de dor. Em instantes, novos dentes e presas surgem, mordendo mais fortemente o pino que travava sua algema.


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