Apocalipse escrita por Natália Alonso, WSU


Capítulo 2
Capítulo 1 – O crepúsculo da humanidade


Notas iniciais do capítulo

*Livro finalizado e já em revisão, irei postar cada capítulo todos os sábados de manhã, no WSU nenhuma história é abandonada.*



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Se passaram 17 anos desde a queda da nave, muita coisa aconteceu nesse meio tempo, muitas delas que eu não queria me lembrar. Neste ano, o desespero tomou conta de todos nós, a luta havia começado a décadas, mas nunca estivemos em pior situação. Isso pois já muitos de nós, só conhecia o mundo destruído, sequer conheceu como era antes. Como era antes... que piada. Até parece que a humanidade alguma vez prestou. Mas ainda assim era melhor.

O Ceará era um dos poucos lugares onde ainda havia sol. Com a guerra, havia tanta fuligem nuclear, que eles cobriam o céu, deixando quase tudo em um constante clima nublado. Isso tornou as noites mais frias, e com a falta de chuvas, o clima tornou-se muito seco. Toda hora alguém tinha problemas respiratórios com o excesso de poeira atômica e falta de umidade.

Isso teve outra consequência, acabou estimulando a variedade genética e assim surgiram os nomans, facilmente identificados pelos olhos acinzentados. Os olhos são a marca da radioatividade bélica, outros mutantes surgiram, mas pela radiação secundária. Houveram ainda aqueles que tinham o mutagênico, mas ainda não tinham se manifestado. Esses foram pegos pelo governo da Aliança, foram estudados e torturados. Assim surgiram os corrompidos.

Agora você tinha várias formas de morrer:

1 – Ser morto por um demônio oroba, os cabeças de touro.

2 – Ser alimento para um vampiro, torça para que não queiram te escravizar.

3 – Ser vendido como escravo por um traficante.

4 – Escapar de todos esses e definhar lentamente com poeira atômica corroendo seus pulmões, ás vezes causa mutações, muitas vezes apenas câncer.

Enfim, essa foi a forma que começaram as mudanças. Dizem que antes do amanhecer a noite é mais escura. Pois bem, estávamos em pleno breu.

 

 

Ceará, local não especificado nos registros

— 2017 -

 

O buraco selado por concreto finalmente tinha secado. Arthur surge com seu reluzente uniforme prata e azul claro, óculos de proteção, tênis de solas grossas e sorriso inconveniente enquanto carrega o resto dos tijolos. Ele rapidamente anda em torno e começa a construção das laterais. Cimento, tijolo, cimento, tijolo, cimento... até dar as quatro voltas, em poucos minutos. Depois pega a cobertura côncava, instala o filtro na abertura e fecha a cisterna.

Ele para e olha orgulhoso para sua construção, foram 200 cisternas em dois dias. Isso é bastante trabalho, até para ele. Ele bebe rapidamente a água do cantil e quase engasga quando sente algo estranho na garganta. Abre o cantil e encontra resto de fuligem atômica no fundo do recipiente.

— Droga! — pragueja, então nota Jonas se aproximar atrás dele.

— A gente não consegue sempre pegar só a filtrada.

— Agora vão poder. — fala ele enquanto joga no chão o resto da água.

Ele se vira para Jonas e observa as estranhas texturas na pele dele, as verrugas e penugem negra que aumenta em seu pescoço e cobre o peito por dentro de sua camiseta. Jonas percebe e fecha o casaco fino cobrindo o pescoço peludo.

— Nem todo mundo teve uma mutação que só trouxe o poder e não mudou a aparência como você. — sussurra em tom chateado.

— Desculpa. Eu só tinha ouvido falar do seu caso. Aracnídeo, não é. Tipo força e soltar teia?

— Sim, também dá uma certa agilidade.

Eles balançam a cabeça concordando, Jonas retoma:

— Poderia ser pior, pelo menos não solto teia pela bunda.

Ambos riem, Arthur volta no assunto delicado para Jonas:

— Ainda acho que você devia ir para a resistência. Ainda podemos lutar unidos.

— Ir para São Paulo? Aquele pulgueiro? — Jonas fala sarcasticamente. — Se eu for pra lá eu morro, seja nas mãos de alguém ou pelo ar me sufocando.

— Não exagera. Você é muito novo para entender ainda.

— Sou novo, mas um dos mais velhos daqui. Justamente por causa de escolhas como de vocês da resistência!

— Mas lá, um protege o outro, podemos auxiliar...

Jonas se aproxima e cutuca o peito do velocista com a ponta do dedo.

— Sim, claro. Como você ajudou a Cidade Luz? Esse uniforme veio de onde mesmo?

Arthur se cala.

— Estaremos bem, aqui. Longe de vocês que se consideram melhores por serem apenas mutantes da guerra atômica, nós corrompidos não queremos mais ser rato de laboratório, de ninguém!

Arthur balança a cabeça, aceitando a fala do Aracnídeo. Apesar de apenas 20 anos, Jonas era um dos que só conhecera o mundo em guerra. E da pior maneira. Ele sabia lutar, é óbvio, ou então não teria escapado dos laboratórios da Aliança. Arthur se senta, um pouco cansado do trabalho que faz a semanas no refúgio do Ceará.

— Afinal, vocês decidiram qual será o nome daqui?

Jonas respira se acalmando um pouco e se senta ao lado.

— Será “Sol Nascente”.

Arthur se vira para Jonas, um pouco chateado pela escolha.

— Entenda como uma homenagem a Cidade Luz. Eu também tinha parentes lá. — completa o Aracnídeo.

— Karen era uma alternativa. — Arthur fala em desilusão.

— ERA, disse muito bem. A profecia falava de uma pessoa que voa. Talvez essa pessoa ainda não tenha chegado, talvez não tenha nascido.

— Ainda rezam?

— É claro que sim. Não podemos perder a fé.

— Nem eu, nem Sara queríamos que Karen lutasse, mas ela escapou. Não foi nossa culpa se...

— Nunca é culpa de ninguém, né? — Jonas se vira de lado, irritado.

Arthur franze a testa, olha para o galpão que usam de morada coletiva e para as pilhas de tijolos que pretende fazer outros galpões.

— É melhor eu voltar ao trabalho. — fala ele se direcionando rapidamente para a obra e começa a fazer a mistura de cimento.

Jonas olha no relógio e vê que é hora da oração, ele se vira e caminha na terra árida e amarelada até um dos galpões. Na lateral, campos de vegetais estão sendo colhidos e plantados, algumas cabras balem ao longe, todos se recolhem para o momento de pedido aos céus. Eles entram e somente o velocista continua trabalhando, bebendo água contaminada e construindo arduamente.

No galpão, dispersores de calor giram devagar, camas e colchões no chão improvisado abriga quase 60 famílias, espremidos no abafado local. Jonas precisa tirar o casaco e ficar com a regata, expondo os pelos negros de sua mutação criada em laboratório pelo governo da Aliança. Os poucos lugares onde não tem as protuberâncias são onde há cortes dos inúmeros experimentos. Ele era apenas uma criança quando a Aliança se tornou uma ditadura, oprimindo locais.

Ele passa por uma mulher com olhos castanhos de serpente que ensina a História Recente para as crianças. Elas ouvem atentamente enquanto ela usa um mapa-múndi para explicar resumidamente.

— Quando os Cains atacaram, eles destruíram e tomaram rapidamente a Europa. A África foi o próximo passo, afinal, haviam muitos recursos minerais. Como eram países menos militarizados foram rapidamente tomados pelos exércitos de Orobas comandados por Mefisto. Os vampiros de Lucy tomaram o que restavam, se alimentando deles, literalmente. Eles logo perceberam que haviam humanos que atuavam como narcotraficantes na região. Foi assim que encontraram Marcos Fonseca, o Caveira.

As crianças murmuram entre sim, Jonas não gostava de lembrar das tropas do Caveira, eles eram humanos sem mutações ou qualquer coisa amaldiçoada. Mas eram insanos cruéis que viram lucro em se aliar aos Cains. Ele era o bicho-papão que contavam para crianças mal-educadas. Na verdade, ele daria medo ao bicho-papão.

A professora de cabelos castanhos continua, aponta no mapa:

— Essa trindade tomou a Ásia, em pensar que nem os chineses conseguiram dar conta das tropas sanguinárias do Marcos. A questão é que a China, Rússia, Paquistão e Índia fizeram o impensável. Eles se aliaram e não qualquer acordo, mas com o Governo das Américas, que agora era desde o antigo Canadá até o México.

“O Estados Unidos sempre quis tomar posse do México mesmo, essa foi uma boa desculpa”, pensou Jonas enquanto a mulher retoma.

— E assim nascia a Aliança. Com o poder bélico da Ásia e a administração dos Governo das Américas eles conseguiram programar um ataque nuclear em vários pontos.

— Foi isso que fez a gente? — pergunta uma garotinha com dificuldade para falar, com os lábios deformados.

— Sim e não. — A mulher suspira fingindo esperançosa. — O resultado disso foram muitos demônios e vampiros mortos e uma grande porção de lixo radioativo no ar. Facilitando a nova leva de mutantes, como nós todos que nascemos depois disso.

— Mas então o povo estaria livre com os Cains mortos. — questiona outro garoto.

— Deveria, mas o governo se tornou opressor, queria investigar mais como eram esses poderes, como controlá-los para fazer supersoldados. Foi assim que pegaram aqueles que tinham mutagênicos inertes e os colocaram sob tortura até que a mutação se manifestasse. Como não foi uma mutação natural chamamos de corrompidos. Muitos morreram nas sessões de tortura, outros fugiram. — Ela fala enquanto pisca com sua pálpebra vertical para Jonas.

As crianças se viram para trás e olham para aquele que é o líder dos refugiados. Ele sorri um pouco embaraçado coçando o pescoço.

— Isso mesmo, eu libertei quantos eu pude. Os gêmeos também são de lá, mas eles estão com a resistência agora, em São Paulo.

Uma criança olha preocupada e confusa.

— Mas, e os demônios?

— Bom, demônios surgem de almas ruins... acredito que muitos dos humanos se tornaram orobas. Já os vampiros, nada que muita sede e pactos de Mefistófeles que não criassem mais. O exército de Cains cresceu muito e...

— E tudo isso foi pra nada. — completa o garoto em desilusão.

Jonas olha com pesar.

— Ainda podemos sobreviver. — fala o líder, tentando passar o otimismo que não possui verdadeiramente.

As crianças sabem que isso não é verdade, se entreolham apáticas. A professora puxa uma mecha castanha de cabelo atrás da orelha, solta o mapa e dá uma palma no ar para chamar a atenção delas.

— Bom, encerramos a aula de História Recente. Vamos para a oração agora, vão para o altar. — Ela gesticula para a dispersão, se levanta e vai para Jonas, irritada.

— Desculpe, eu não queria estragar sua aula. — fala ele visivelmente constrangido.

— O que você estava pensando então?

— Não sei, dizer a verdade para eles. Toda ela.

— Dizer que agora os sobreviventes têm algumas opões: Morrer na mão de um Cain; na mão de um traficante do Caveira; contra o governo da Aliança ou contaminado pela poluição radioativa? É essa a sua sugestão?

— Andressa, por favor. — Jonas segura o braço dela, carinhosamente.

— Sim, perfeito, então é só uma questão de escolha, sorte ou tempo. — Ela bufa, irritada.

Ele a abraça.

— Calma. Ainda podemos sobreviver aqui. Ninguém sabe desse lugar, não vão nos encontrar. Os Cains atacam onde tem grandes áreas urbanas, não vão atravessar o sertão atrás de nós.

Aconchegada nos braços dele, ela olha pela janela e vê o velocista montar a fundação do próximo galpão. Ele para exausto antes de continuar.

— Quando eu era criança, ele era um herói. E agora, é um cara que ajuda a construir cisternas e abrigos.

Jonas tira o queixo apoiado na cabeça dela e olha para seus olhos corrompidos de lagarto.

— Ele ainda é. — ela sorri para o companheiro e retoma. — Talvez seja muito mais herói agora, ao invés de lutar com monstros, salva vida fazendo abrigos e cisternas.

Eles dão um beijo carinhoso e casto antes de se dirigirem para a oração. Vão até o fundo do galpão e se ajoelham diante do altar improvisado com pneus de caminhões e redes de pesca carregando um boneco branco. O torso de pano branco possui seis asas douradas de metal abertas como se fosse levantar voo. Eles não sabem exatamente como será o escolhido, a profetisa não soube dizer ao certo o que vira. Na parede metálica do galpão estão exatamente suas palavras:

 “O ser puro e inocente se levantará no mar de espelhos. O grande pássaro de asas douradas guiará os sobreviventes até o coração do mal. É de grande poder o escolhido que irá extirpar a crueldade dessa terra.”

 

 

 

Brasília, Palácio do Planalto

— Casa do Caveira -

 

Os punhos doem com as largas correntes de prata, isso pois sustentam todo o corpo da mulher de corpo magro pela fome que passa a semanas lá. Seu rosto claramente indígena é muito bonito, os cabelos negros e lisos, antes longos, agora estão curtos na altura dos ombros. Ela curva a cabeça para trás tentando alcançar uma gota d´água que cai do vazamento do cano no teto do cômodo escuro. Suas pernas e cintura também estão acorrentadas e fazem suaves tilintar na sala, ecoando no vazio.

O resto de uma camiseta branca está rasgada, cobre o que sobrara de seu corpo coberto de cortes e hematomas. No tecido, os dizeres de “puta” e “vermelha maldita” para a ofender. Não a ofende. Ela ouve passos no corredor do lado de fora, então pende a cabeça para frente fingindo dormir. A porta grossa se abre e dois homens entram.

O asiático de traje social se aproxima, toca no rosto dela movendo de um lado a outro.

— Parece apagada. — fala Liu, para seu superior.

Assim que ele se vira olhando o outro homem, Daniele morde um dos dedos do homem, com muita força. Liu berra tenta puxar a mão de sua boca, ela olha diretamente a ele fazendo força com a mandíbula. O homem se debate, pega a arma e começa a dar coronhadas na cabeça e peito da garota, puxa, mas só consegue fazer com que ela balance o corpo pendurada nas correntes.

Ela faz mais força e os dentes se tornam mais pontudos, quando rosna acaba terminando de cortar a carne decepando o indicador do capacho. O segundo homem assiste a tudo, gargalhando alto de toda a cena. Liu cai no chão, segurando com a outra mão o buraco que esguicha grandes quantidades de sangue no chão já sujo. Outros dois homens entram rapidamente com os gritos e batem na mulher com barras de ferro e madeira em suas costas e pernas. Eles tentam fazer com que ela cuspa o dedo, mas ela mastiga rapidamente e vira o rosto para engolir.

O homem ao fundo gargalha ainda mais.

— Deixem... deixem... tenho que dar o crédito a ela. — fala ele fazendo um gesto com a mão. — Olha princesa, não é todo mundo que me surpreende assim. Eu não devia te deixar com fome, né?

Ela o olha com o rosto calmo, e agora suja de sangue do homem que grita pelo corredor.

— Ainda estou com fome, Marcos.

Ele sorri nas sombras, seus dentes brancos são visíveis na escuridão, então se aproxima devagar.

— Eu sei.

Em poucos passos é possível ver seu corpo robusto, cabeça raspada e barba longa no queixo e rala na bochecha. Na verdade, somente uma bochecha, a outra não existe, assim como parte da pele do lado esquerdo do rosto sem pálpebra. No lugar, uma prótese de acrílico transparente deixa seu maxilar e parte de seus ossos faciais à mostra, em uma horripilante meia Caveira. O olho desse lado é azul, contrastando com o verdadeiro castanho.

— Eu lembro que foi o que você disse quando mastigou o meu rosto. — Ele aponta para si mesmo com a prótese de braço mecânico do mesmo lado.

— O braço não foi eu. — fala ela inclinando o rosto.

— Não... não foi. Esse você tinha deixado preso nas ferragens para que eu morresse no incêndio. Você não esperava que eu arrancasse meu próprio braço para sobreviver, não é?

— Sinceramente, Marcos? Vindo de você, nada me surpreende.

Ele faz um sonoro “Oh” com a prótese vasada e tosca na frente dos lábios.

— Que pena. Estou te deixando entediada, sobrinha?

O rosto dela muda, uma ponta de preocupação surge.

O caveira faz um gesto e os subalternos baixam as correntes dela, fazendo-a cair no chão. Antes que ela consiga se preparar, um balde d´água salgada é jogado e ela tenta sair do lugar.

— Não, não... — Ela murmura escorregando na água, tentando sair da poça d´água.

Um dos homens solta os cabos elétricos na área molhada, ela trava o corpo com intensidade. Uma vez. Ele recolhe o cabo. Na segunda ela morde a própria língua e sangra no chão. Na terceira fica curvada de costas e a mão torcida. Quando Marcos faz um gesto, o homem recolhe os cabos e finalmente ele se aproxima. Rapidamente aproveitam que ela está atordoada e a colocam de barriga na bancada com as correntes esticando seus braços.

Marcos vai até uma caixa de madeira onde cobre o olho castanho com a mão e pega aleatoriamente algo com o braço mecânico. Ele vê qual foi o objeto escolhido e se vira para a prisioneira.

— Normalmente eu usaria minha mão mesmo, mas você sabe, ela é pouco precisa. — Marcos se aproxima ajeitando os suspensórios vermelhos na camisa branca. — Bom, não tenho que explicar de novo, certo? É só me dizer onde está o refúgio dos vermelhos.

— Vai pro inferno! — Ela cospe com sangue no rosto acrílico do Caveira.

— Obrigado pela sugestão, mas Mefisto disse que minha querida esposa ainda não está no inferno, ela deve estar com os vermelhos então...

Marcos fala se apoiando na mesa, leva suavemente o martelo até próximo da mão de Daniele. Um capanga a segura de forma a espalhar os dedos. Marcos toca sutilmente o metal frio em cada unha.

— De novo. — toca no indicador.

— Eu não sei.

— É a princesinha, a filha do chefe. Ou seria rainha agora? Estou confuso, a cabeça dele não me disse nada na minha sala. — toca o dedo médio.

— Não... — Ela murmura.

— Sim. — toca o dedo anelar.

— Eu não sei onde estão mais, desde que atacou eu não sei mais nada!

— Ahhh! Eu acho que está mentindo... — fala em tom zombeteiro, toca o mindinho.

— Eu não sei de tudo, meu pai fazia tudo...

— Vermelhos sempre sabem de tudo. Vamos lá, de novo. — toca o polegar.

— Eu não sei!

Ele inclina o rosto pra ela, a fita com seu olho castanho.

— Cachorrinha feia.

Ele sorri antes de levantar o martelo e atingir com força o dedo indicador.

 

 

 

— São Paulo -

 

No antigo Hospital São Paulo, um dos maiores da antiga Metrópole, já não há mais médicos e funcionários. A construção fora abandonada, um homem passa entre as antigas máquinas de tomografia computadorizada. O local coberto de poeira, fuligem e cacos de vidro é um registro do quanto fora importante, de como essa cidade era viva. O jovem de vinte e poucos anos observa os arcos plásticos com seus olhos cinzas. Seu porte é largo, os braços fortes ajustam as alças velhas da mochila pesada de partes metálicas, rações hospitalares e medicamentos.

Henrique passa a mão cheia de calos, cortes nos dedos e uma unha quebrada na superfície do aparelho, revelando que é branca e lisa. O som dos passos rápidos de um rato chama sua atenção, ele vira o rosto e mira o roedor cinza de cauda alongada correr entre os cacos de vidros no corredor. Ele deixa a mochila no chão devagar e caminha com suas botas silenciosamente. Na verdade, é apenas uma bota, a outra estava rasgada ele usava outro pé de um modelo verde, sem combinar com a direita preta. Ele se abaixa na parede tentando encontrar o que assustara o pequeno enquanto espiava na lateral.

O miado de um gato o sossega, ele olha em volta, o miado ecoa no vazio e Henrique apoia na parede fitando ao redor. É frio pela poluição que impede a entrada do sol adequadamente, ele tosse um pouco da poeira atômica que se acumula a anos em seu pulmão e desliza na parede sentando no chão. Desolado, com frio transpassando seu casaco de moletom verde escuro, as calças marrons têm rasgos e algumas emendas. Olha para a máquina novamente, fica pensando em como devia ser bom viver em uma cidade que tinham médicos de verdade.

A barba por fazer desenha seu queixo proeminente, ele coça um pouco com as unhas sujas e leva a mão na cabeça. Está cansado, com fome, sentindo muitos de seus músculos que não deveriam ser sentidos, mas ele não quer transpassar isso para os outros dos saqueadores. Eles não precisam de um líder cansado, precisam de um ser forte que os inspire a possibilidade de sobrevivência. Então ele suspira profundamente, passa a mão na cabeça de cabelos pouco longos pretos e se levanta. Pega a mochila e mais as outras duas sacolas de mão, cheia dos mantimentos encontrados e sai do local.

Ele caminha carregando tudo o que pode, passa pelo corredor onde um carro está capotado, um cadáver está no volante, ele tem um casaco de couro preto. Ele para, treme um pouco de frio, sente o ar sair da boca em uma neblina esbranquiçada. Ele segue andando carregando as pesadas sacolas que emitem sons metálicos dentro. Entre pedregulhos e um prédio caído, ele passa por corredores estreitos até chegar em uma porta de ferro. Para esperando.

Ele não precisa se mover, dois olhos surgem pela pequena abertura, e abrem a ruidosa e larga porta. Os vigilantes escondidos entre os pedregulhos e nos escombros em torno só acenam para o líder que entra. Várias pessoas chegam rapidamente, pegam as sacolas, abrem e começam a separar e levar a cada sala de armazenagem.

— Minha nossa, já estava ficando preocupado, está congelando hoje e você não voltava. — fala Pietro, o vigilante.

— Não estou com frio. E os gêmeos, já resolveram a máquina?

— Um dos dois doidos veio me chamar agora pouco, mas... eu não sei qual deles era.

— Se ele veio falar com você, é por que provavelmente é o Dominique. — responde Henrique já caminhando para a área onde eles estão.

Todo o complexo do refúgio era um conjunto industrial abandonado, que com os prédios em torno caídos se tornava praticamente um grande morro de entulho. Para quem passasse do lado de fora, jamais teria a ideia de que haviam quase 50 famílias lá dentro. Eles literalmente estavam escondidos em um monte de lixo.

Henrique e Pietro caminham até a área das caldeiras, o líder da Resistência sente um profundo alívio ao chegar na área quente. Apesar de não poder chegar perto demais, só os gêmeos podiam manipular os metais incandescentes devido aos seus poderes corrompidos. Dominique percebe os dois e se aproxima sorridente, ele possui os cabelos curtos cor de chumbo levemente brilhante, e os olhos obviamente são cinzas. Mesma cor do elemento que compunha mais de 99% de seu corpo, o Fósforo. Dimitri, possuía a mesma aparência, é óbvio, mas como sempre estava entretido mexendo na parte de baixo de um motor de tanque militar.

— Conseguiram consertar? — questiona Henrique, finalmente abrindo um pouco seu moletom.

— Já se move e ainda estamos adicionando outras armas embutidas. — fala animado Dominique em sua jaqueta preta de couro, alguns zíperes brilham prateado.

— Ótimo, seria bom no caso de um ataque. Coloquem no centro do Refúgio.

Dominique faz sinal de “ok” com os dois polegares antes de correr para uma das caldeiras. Enfia a mão no amálgama metálico derretido pegando um punhado, sopra moldando a massa vermelho brilhante com as mãos.

— O que está fazendo? — questiona Henrique, confuso.

— Além de tentarmos sobreviver, precisamos pensar em como matar aqueles demônios. — fala Dominique enquanto cria uma ponteira de lança com o metal brilhando em vermelho. — Sabemos que armas amaldiçoadas diminuem seus poderes, mas não adianta nada matarmos os orobas se ainda tem o demônio chefe para criar novos. E não esqueça da dona Drácula que faz mais vampiros a cada drink.

Ele aperta então a ponta de lança nas palmas das mãos fazendo um crucifixo, ri ironicamente para Henrique que não vê muita graça.

— Sabe que isso não serve de verdade neles. Cruzes, água benta... não esqueça do grupo que estava escondido nas igrejas quando os orobas e vampiros invadiram e mataram a todos.

Dominique para e olha desolado, a cruz volta a derreter na sua mão. Dimitri ouve ao longe, só vira o rosto, permanece ainda deitado mexendo no motor do tanque.

— Eu sei, eu estava lá.

— Certo. Bom... — Henrique percebe que acabou deixando o tagarela mudo. Ou quase mudo. — A liga dos assassinos deve chagar logo, eles foram em busca de informações de como matá-los. Por enquanto, apenas terminem esse tanque, certo?

Fala balançando a cabeça em um cumprimento curto para ambos e se vira para ir embora. Dominique se vira enquanto olha para o amálgama pingar da mão e pegar fogo no chão com pedaços de madeira. Dimitri olha um pouco bravo para o irmão, que joga o resto de ferro derretido na cabeça dele.

— Fica quieto, Dimitri!

Dimitri não responde, apenas sacode a cabeça deixando cair o metal incandescente no chão, tudo escorrega por seus curtos cabelos cor de chumbo e volta a prestar atenção no motor a frente. Constantemente os irmãos brigavam dessa forma, com as reclamações de Dominique e o silêncio de Dimitri. Alguns diziam que Dimitri era mudo, eles passaram um verdadeiro inferno nos laboratórios da Aliança.

Henrique olha o monte de pessoas correndo de um lado a outro com os itens que trouxera do hospital. As rações servirão para os vigilantes externos. Ataduras, bisturis, seringas e medicamentos poderão servir para curar os enfermos. Alguns estavam vencidos, mas é melhor do que nada. Ele leva a mão nos olhos cansado, pensando que poderá finalmente dormir essa noite.

 

 

 

Brasília, quarto do Temerário

 

Uma vitrola toca a canção distorcida de KC & The Sunshine Band, “Give It Up” ressoa no quarto espaçoso que antes fora dos presidentes do país. A grande cama forrada de seda e almofadas está vazia e a figura de hobbie um pouco curto demais caminha descalço no tapete enquanto acende o charuto.

— Cala a boca, gato! — grita Marcos antes de passar a mão na cabeça lisa. — Eles estão sob controle, preciso pegar o resto dos vermelhos ou o demônio vai me comer vivo. Ou vai me dar para a mulher dele me comer.

Ele traga o charuto, a fumaça passa na parte transparente do acrílico do Caveira, então completa.

— Ela vai me comer, mas não da forma divertida... Merda! Eu tô falando, a Elisa está com os vermelhos. Ela levou os guris, eles têm que ficar comigo, o pai deles. Não com um bando de tribais e cachorros.

Um roncar baixo ressoa no quarto e algo se aproxima a passos macios.

— Eu avisei que ela não ia aguentar o tranco, que ia embora. — fala a voz feral ao fundo.

— Eu sei, eu sei... mas você sabe, eu tenho coração mole.

Marcos olha profundamente para o ser que se aproxima nas sombras.

— Ela é uma vagabunda que gosta de cachorros. Só espero que não tenha passado para seus filhotes essa maldição de virar lobisomens.

— Naurú. — corrige ele, lambendo os lábios antes de sugar o charuto novamente.

— Lobisomem, naurú, licantropa... é tudo mesma coisa, só muda o nome. Eles nunca vão entender. Você tem que pegar todos os vermelhos.

— Eu farei isso, mas só depois de achar a Elisa e meus filhos.

O animal finalmente chega na luz, coloca as patas no tapete e caminha ao redor de Marcos, o fareja e depois se deita ao lado. O gigantesco tigre branco olha para o Caveira e fala:

— Eles brincaram com você, eles não merecem que seja Marcos para eles. Seja o Caveira para eles também. — constata o tigre, antes de lamber as patas e repousar a cabeça nelas.

Marcos sorri e aumenta o som da vitrola.

O som da música está distante, se dissipa até a área da prisão onde está Daniele. Ela está pendurada pelas correntes, agora com sua mão esquerda com todos os dedos quebrados e torcidos. Pequenos espasmos nos músculos indicam a dor que sente. Ela observa o ferimento com seus olhos levemente puxados no canto interno e pensa. Fita o alto da corrente presa no teto. Dessa vez a penduraram apenas pelas mãos. Eles pensaram que o peso a deixaria com as mãos em gangrena. De fato, isso ocorreria, mas ela não pretende ficar uma noite mais na casa do tio. Chega.

Ela balança o corpo para frente e salta, gira o corpo no ar passando por dentro das correntes. Quando cai novamente o pulso dói de forma agonizante, mas ela segura forte o metal do punho. A corrente fica torcida. Repete o processo e a grossa corrente fica mais torcida. De novo, a dor é forte, mas ela repete, de novo, outra vez, outra vez. Foram tantos giros que o som do tilintar aumentou e um dos guardas ouviu no corredor. Quando ele entra pela porta ela já tem as correntes completamente torcidas como uma trança, ela apoia os pés no teto e puxa com força para arrancar do suporte.

O guarda corre, mas ela brilha os olhos em vermelho e arranca o que lhe prende no teto, liberta ela passa a corrente duas vezes no pescoço do guarda antes de cair no chão. Os outros guardas não o ouvem bater no piso, não o ouvem agonizar por ar ou ela quebrar o seu pescoço com a força da corrente que o estrangula. Ela se liberta com as chaves, mas decide levar a corrente que fora sua companhia por semanas.

Sai pelo corredor escuro, caminha devagar com os pés descalços até outro corredor, onde tem dois homens. Ela joga a corrente agarrando o pé de um deles, o puxando para si, rapidamente ela o joga na parede, o outro atira em seu braço, mas ela lança o seu colega contra ele, salta e corre tocando as paredes até o alto. Ele atira mais algumas vezes, iluminando o corredor, mas ela cai em cima dele, usando as garras para cortar o seu pescoço.

Deixa as correntes de prata, ela precisa se transformar logo para regenerar. Sente seu corpo arquear e muita dor com todos os músculos sendo realocados. Os ossos estalam dentro da grossa camada de pele que é recoberta de pelos rubros. A pelagem negra fica em seus braços e pernas, o rosto se alonga dando dentes mais pontudos e os cabelos formam uma capa negra e mais densa em torno do pescoço. A licantropa se torna uma mistura de lobo-guará com humano, mas muito maior que um lobo, muito mais feroz do que uma indígena pacífica de contos infantis.

Ela ouve a aproximação dos homens de Marcos se aproximarem, precisa fugir. Então dispara a correr até o fundo do corredor, a porta de madeira é uma das que estão no caminho da liberdade. Então ela coloca a mão transformada e ferida no chão, range de dor, mas sabe que nessa forma pode se regenerar mais facilmente. Apoia com força e corre como fera, atropelando a porta e pisando no homem que estava atrás dela.

Tiros e Caveiras gritando, eles estão sem a máscara característica de caveira, mas ainda são tão canalhas como ele. Eles oscilam entre atirar e tentar escapar da boca que vai direto em seus pescoços. Um tolo puxa uma faca longa, tenta cravar nas costas dela, mas a dura pele da vermelha faz a ponta escorregar. É muito difícil cravar algo nela dessa forma, quase, ela sente o incômodo da faca e responde com a garra sendo cravada no estômago e o lançando longe com o ventre aberto.

Então um cheiro lhe chama a atenção, olha para trás e vê Liu chegando. O asiático alto está com duas pistolas nas mãos, apontadas para ela.

— Só porque eu ia te visitar de novo hoje... — fala ele pronto para atirar quando repara que não irá poder atirar com a mão esquerda. A falta do indicador no gatilho é evidente.

— Ah! Merda! — pragueja ele.

Ela sorri, ele firma a mão direita atirando e ela corre para em sua direção, saltando de lado para depois o socar forte. Ele cai no chão, consegue acertar um tiro no ombro esquerdo da licantropa, o único que penetrou na grossa pele. Ela tenta o atingir, mas ele rola no chão escapando, as mãos da licantropa atingem o piso com brutalidade, rachando o porcelanato. Ele pega a outra pistola, mas antes que tenha mira ela pega uma mesa e joga para ele. Liu cai, desacordado, ela finalmente pode se vingar, mas quando vai até ele ouve os passos de muitos chegando pelo corredor.

Ela não pode ser pega novamente, não tem tempo para isso. Então olha para a janela, pega um dos comparsas e o joga pelo vidro para o quebrar. O homem cai morto no chão do quarto andar. Ela salta em seguida caindo sobre um dos carros, destruindo seu teto. Depois vai pela rua, correndo em quatro patas, arfando entre as presas e o vento moldando a pelagem vermelha de seu dorso.


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