Ellaria estava temerosa com a notícia de que a carne do acampamento havia acabado, sabia como a alimentação era uma parte crucial para que a vida continuasse naquele lugar, olhou para Calíope e Étrus, os dois transmitiam o mesmo sentimento, a garota bem mais que seu irmão, “Não temos nenhuma alternativa?” Ela disse.  A filha de Tique observou os olhos verdes do homem, sabia o que ele ia sugerir, mas gostaria não saber. 

  - É muito arriscado. 

 - O que? - Calíope perguntou.  

— Ir lá fora buscar mais - Étrus respondeu a garota. 

A mulher observou o temor no olhar da filha de Apolo e ficou ali parada, a vendo indignar-se com a proposta do irmão, mas no fundo Ellaria sabia que aquela talvez fosse a única opção que eles tinham para ter uma alimentação boa durante algum tempo, mesmo que significasse revelar o local do acampamento para monstros e espíritos, ou até mesmo aos deuses. 

Ela virou-se e encaminhou até a enfermaria, havia avistado Albus entregar um garoto, naquela altura do campeonato eles precisariam de alguém da equipe de reconhecimento, e Calíope estava atordoada demais para isso.  

Abriu a cortina que separava a enfermaria do lado de fora, e viu Romeo fazendo algumas anotações encostado na parede, e em uma das camas próximas a ele, um garoto com asas, sentado, provavelmente recém curado. Tinha uma pele tom de caramelo, talvez ele tivesse a mesma coloração que o corpo de Ellaria, seus cabelos desgrenhados e a barba por fazer.  O rosto do rapaz apresentava ausência de qualquer expressão ou sentimento, transmitindo um quê de serenidade – Ela sabia exatamente o porquê.  

Sentou-se em uma cadeira próxima, cerrou as pálpebras e cruzou as pernas. Apoiou os pulsos sob os joelhos, de forma que as palmas de ambas as mãos ficassem viradas para cima. Suas asas e aura deixavam nítidos para Ellaria de quem o garoto era filho. Após alguns minutos focando em sua respiração, sentiu a prole de Morfeu vagando despretensiosamente pela atmosfera.  

— Olá, Samuel. – Cumprimentou. 

— Olá. — Sentiu o seu olhar, talvez estivesse navegando em meio aos espíritos. — Ellaria. Me lembro de você. 

A Filha de Tique assentiu com a cabeça. Sua mãe era a deusa da sorte, do viés, do destino, e isso dava a ela habilidades reveladoras sempre que conhecia alguém, e apenas de fitar durante alguns minutos o rosto de Samuel, ela sabia tudo sobre a sua difícil caminhada. 

— Bem-vindo ao acampamento. – Pronunciou com um sorriso sincero – Por onde esteve antes de chegar aqui? – Questionou. 

— Você sabe, então por que me pergunta?  

A projeção de um pequeno sorriso tomou conta de seu rosto, mas logo se desfez. Ellaria não era de sorrir muito, embora fosse realmente um jogo engraçado, visto que ela também já sabia que Samuel reagiria desta forma.  

— Certo, você me pegou. O que acha de voltarmos ao mundo físico para eu lhe apresentar o acampamento? – sugeriu. 

— Me disseram que eu tinha que ficar em repouso. O meu corpo, pelo menos. - Ellaria não falou nada, observou o garoto levantar as sobrancelhas e movimentar os ombros. -  Mas se quiser quebrar as regras, eu nunca segui mesmo. 

Observou o reflexo borrado do corpo da prole de Morfeu que jazia sob a maca. 

— Você precisa se recuperar. Estamos no meio de uma guerra, um ataque pode acontecer a qualquer momento. – Ellaria afirmou – De qualquer forma, estou certa de que consegue achar o caminho até sua cabana sem problema algum.  

Os olhos se abriram. Descruzou as pernas enquanto refletia sobre o diálogo já finalizado; estavam realmente no fim do mundo. 

Agora ela precisava cuidar de outro problema, o alimento, para isso iria até Callisto descobrir uma forma de resolver aquilo, mas sabia que no final uma missão seria feita. 

A cabana de suprimentos ficava cada vez mais vazia, agora até mesmo os cereais, vegetais e ervas estavam acabando, com apenas um filho de Deméter no acampamento, ficava cada vez mais pesado para ele produzir tanta coisa de uma vez. 

Não sabia ao certo a idade de Callisto, mas sabia que ela era velha, mas por ser uma amazona seu físico aparentava ter a mesma idade que Ellaria. 

 - Callisto – A mulher de pele negra e cabelo raspado virou-se para cumprimentar a filha de Tique. 

 - O que faremos? - Ela cruzou os braços.  

— Eu conversei com Étrus mais cedo, e ele apenas disse o que eu já sabia que devia acontecer –  Fitou os olhos castanhos de Callisto. - E você também. 

 - Ellaria, eu não acho que seja uma boa ideia – A Amazona suspirou apreensiva. 

— Eu também não, mas é a única alternativa, essa é a nossa última refeição com carne, acabou – A Filha de Tique desabafou. 

 - Eu sei – Callisto disse.  

Ellaria sentiu uma movimentação estranha do lado de fora, andou lentamente e abriu a cortina, era Helena, a filha de Afrodite e Déspios, o filho de Deméter, que carregava uma cesta cheia de cereais.   

— Não queríamos atrapalhar a conversa, parecia importante – Helena disse, a garota de pele clara e cabelos ruivos estava nervosa por ter sido vista, seus olhos não tinham uma cor fixa, ao se concentrar em sua íris veria várias cores diferentes, verde, castanho, lilás, azul... Uma típica filha de Afrodite. 

 - Não deu certo – Callisto surgiu do lado de Ellaria e cruzou os braços, olhando séria para os dois. 

Em seguida, Déspios entregou a cesta e saiu andando.  

— Desculpe – A filha de Afrodite disse mais uma vez e saiu com o garoto. 

Ellaria observou os dois se afastarem e sabia que o próximo passo era convocar uma reunião do conselho, pois depois daquilo seria rápido para todos no acampamento ficarem sabendo o que estava prestes a acontecer. 

A cabana do conselho era grande o suficiente para que todos os conselheiros e tenentes pudessem ficar lá dentro ao mesmo tempo, e ainda sobrava certo espaço.  

— Ótimo, a maioria de vocês está aqui. –Bradou enquanto o barulho de seus passos ecoava pela sala. - Temos um assunto importante a discutir. – Fez uma pausa – Por favor, sentem-se. – pediu enquanto se alojava em um dos acentos ao redor de uma enorme távola redonda. 

— E com a maioria você quer dizer eu, você e Callisto? - O homem de longos cabelos ruivos levantou as sobrancelhas, era Ática, filho de Ares. Estava acostumada com o jeito dele, então simplesmente ignorou. 

Étrus e Koth se aproximaram, o filho de Apolo e o filho de Hefesto pediram perdão pelo atraso e logo sentaram. Antes que Ellaria pudesse voltar a falar, Albus entrou na barraca.  

— Olá, como vocês estão? -  Estava com um pergaminho em mãos, lendo algo nele. Após sentar ele fitou as pessoas em volta, dizendo. - Eu ainda não li os relatórios, mas qual é o problema recente? Gostaria de reclamar que a carne está ficando muito pior, tá passando de quase não comestível para insuportável. Em contrapartida o Órion está adorando, mas não vem ao caso. 

— É uma reunião do Conselho, depois de tanto tempo eu julgava impossível você começar a falar algo que ninguém perguntou - Ática respondeu o outro, sem desviar a atenção dos papéis que estavam nas suas mãos.  

Ellaria notou o olhar de Étrus, ela assentiu com a cabeça e se preparou para começar a falar. 

— A carne acabou. – fez uma pausa – E Callisto poderá confirmar através dos relatórios que nossos recursos estão se extinguindo cada vez mais.  

Ellaria se ajeitou na cadeira, como se estivesse ligeiramente desconfortável com a situação.  

A mulher soltou um suspiro pesado, em seguida se acomodou na cadeira e cruza os braços em frente o corpo. 

— Infelizmente a previsão é verdadeira, nossos suprimentos estão se esgotando - Callisto afirma, e logo se volta para Ellaria- Precisamos fazer algo a respeito. 

— Bom, se algum ataque acontecer, o número de semideuses vai descer rápido. -  Albus comentou. Ellaria olhou para ele, assim como todos ao seu redor, ele desviou sua íris amarelada dos seus papéis e olhou para os outros líderes. - Não que eu esteja querendo que isso aconteça. Acho que nós iremos precisar organizar outra viagem pro lado de fora. 

— Acho que a alternativa mais plausível é criar outro grupo para ir atrás da carne... - Os olhos castanhos de Koth se encontraram com os de Ellaria, e ela assentiu com a cabeça. 

 - Uma missão parece uma ótima ideia. - Péssimo. Essa busca poderia falhar de infinitas maneiras, sabia muito bem disso. Havia convocado aquela reunião na tentativa de uma ideia melhor aparecer, algo que ela não havia previsto, mas pelo jeito não tinha outro caminho. - Porém, alguns de nós devem permanecer no acampamento caso ocorra algum ataque. – Continuou – Não podemos arriscar todos os veteranos e deixar os novatos desprotegidos. 

Étrus falou pela primeira vez naquela reunião. 

— Bom, nós não somos o centro do poder também, os novatos sabem bem se virar. Todavia, acho que seria desnecessário mesmo enviar todos nós, precisamos de alguém coordenando esse lugar que bata bem da cabeça, o que não é o caso de alguns semideuses. Sabe, acho que a guerra afetou eles um pouco. 

— Podemos confiar a missão a um semideus que consideremos apto o suficiente para guiar a missão - Callisto disse. 

— Por mim tudo bem. – Ellaria fez uma pausa – Quem vai acompanhá-los? – Questionou. Abriu um dos relatórios de Callisto, junto de um mapa, a fim de avaliar qual seria o melhor lugar para a busca de alimento 

— Eu não me importo em ir, ficar todo dia vendo vocês é meio desgastante. - Albus riu, jogando os relatórios em cima de mesa quando havia terminado de ler.  

Ática colocou-se de pé e disse:  

— Algo mais a ser tratado? 

Ellaria também se levantou, e disse olhando para o Albus.  

— Também irei acompanha-los. 

Aos poucos todos foram saindo da cabana, Ellaria deu uma última olhada em volta e saiu. Albus ainda estava a poucos metros à frente, ela correu para alcança-lo. 

 - Você pode usar seus poderes para convocar todos os semideuses? 

Ele fez que sim com a cabeça e seus olhos começaram a brilhar, sua boca começou a se movimentar pedindo alguma coisa em uma língua que Ellaria não sabia ao certo qual era. Quando acabou, seu corpo voltou ao normal e ele disse:  

— Agora é apenas esperar. 

Em cerca de minutos todos os semideuses estavam em volta de Ellaria, incluindo os próprios conselheiros. A FIlha de Tique respirou fundo, gostaria de dar a notícia sem levantar nenhum caos, mas sabia que aquilo iria acontecer uma hora ou outra.  

— Sem mais delongas, os recursos do nosso acampamento estão acabando, ou seja, estamos ficando sem carne. - Deu uma pausa, todos começaram a cochichar e olhar para os lados. - Estamos organizando uma missão em busca de suprimentos, que será liderada por mim e por Albus - se virou para a figura perto de si - e precisamos de cinco voluntários para irem conosco nessa busca. Todos estão livres para participarem. - Exclamou, dando ênfase a palavra "todos". 

Um silêncio constrangedor preencheu o lugar, e Ellaria entendia, não era fácil sair do acampamento, ainda mais para a maioria que quase morreu para conseguir chegar lá. Então a primeira mão se ergueu, um jovem de cabelos loiros e olhos verdes, era Calíope.  

 - Eu me candidato! - Étrus estava ao lado da irmã, e olhou para ela, um pouco aflito talvez. 

— Eu me candidato! - Era Cadmo, filho de Poseidon, o garoto de cabelos cacheados disse logo após Calíope. 

 - Eu vou - Héktor disse, o filho de Atena tinha olhos azuis tão claros quanto a cor branca de sua pele.  

— Eu – Inaeos, filho de Hefesto. 

Precisavam de cinco, mas talvez quatro fosse o suficiente, não gostaria de obrigar ninguém a ir para uma missão mais do que perigosa. A filha de Tique respirou fundo, e no momento em que iria falar, ouviu a voz de Helena, a filha de Afrodite, que havia ouvido a conversa mais cedo.  

— Eu me candidato! 

Ellaria respirou fundo e fitou Albus, esperou que ele conduzisse os semideuses até a sala do Conselho para esclarecimentos. 

 - Os semideuses que vão para a missão, por favor, me sigam até a sala do conselho, os demais podem voltar a seus afazeres normais. 

E mais uma vez a sala do Conselho estava cheia, alguns dos semideuses ali nunca haviam entrado naquele lugar, então exploraram ansiosos com seus olhos. Logo atrás dela vieram Ática e Albus, em questão de segundos os dois começavam a falar com os semideuses sobre a missão. 

Ellaria fechou seus olhos e sentiu como se fosse um flash, era mais um de seus presságios. Viu ela mesma entrar no acampamento com os outros semideuses, e atrás deles penas de um anjo caíam, marcando o caminho. Naquele exato instante, ela sabia que a missão não ia acabar bem, mas eles não tinham outra alternativa.