Oclusiva escrita por S Q, WSU


Capítulo 7
Thriller




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Guilherme aguardava ansioso ao lado da ambulância estacionada, mexendo nervosamente os fios claros da franja. Já tinha terminado a música, não havia mais como distrair o chefe.  Este, apesar de ter rido da performance do rapaz, não conhecia muito a faixa que vinha em sequência no antigo CD. Agora o homem de uns 50 anos observava a ambulância por dentro, para fiscalizar o estado da mesma, enquanto o baiano só podia sentir medo do que aquela garota maluca podia estar fazendo. Tinha a plena consciência de que foi muita sorte conseguir o cargo logo de depois de ser fichado na delegacia; não poderia de jeito nenhum perdê-lo, se de alguma forma aquilo prejudicasse sua carreira, estava ferrado. 

Normalmente ele era um cara calmo e sabia o que estava fazendo, mas parecia que Isabela sempre aparecia como um sinal de alerta de que, se ele não estivesse próximo de perder a serenidade, perderia certamente depois de lhe ver. Assim também fora na delegacia: estava difícil de suportar ficar preso, mas ver o estado dela piorou muito o período que passou lá. Não que sua vida estivesse sendo fácil nos meses anteriores: desempregado, com a mãe doente, os amigos que tinha se envolvendo em torcidas organizadas e provocando cada vez mais membros de times rivais. Não entendia porque eles não podiam torcer sem rolar porrada. Por mais fanático que também que fosse pelo seu time, sabia que essa história ia dar confusão mais cedo ou mais tarde.

 

 

 

Flashback

Era o último jogo para a classificação do seu clube do coração num extraordinário campeonato baiano. As coisas iam de mal a pior: o Bahia perdia de 3 a 0 e só uma vitória poderia classificá-lo. Os colegas da organizada ao seu redor estavam mais enfurecidos que o normal. Começaram a discutir entre si porque uns achavam que deviam torcer mais, outros não aguentavam ver a derrota certa. Eis que um grupo de torcedores adversários passou perto do grupo à beira de um ataque de nervos. Foi o gatilho que bastava. Xingamentos, chutes, pontapés, mas como ambos os lados já tiveram fichas de agressão na polícia ninguém se atreveu a discar para o 190. Até que Guilherme, que estava sentado alguns degraus abaixo, irritado com a baderna que seus colegas faziam subiu lá e foi segurar o braço de um antes que batesse em mais alguns.  Porém, daí para uma briga enorme entre ele e o cara que segurou foi um instante. Por mais que o outro tenha começado a agredi-lo, o rapaz de cabelos castanho-claros era bem mais alto e forte; quando resolveu dar um empurrão causou um estrago bem maior do que tinha sofrido.

 Ele já tinha ido para o jogo irritado, por conta do diagnóstico de esclerose da mãe. Foi uma das primeiras vezes na vida em que perdera a cabeça, mas o resultado, já sabemos que não foi dos melhores.

 

Estava lembrando inconformado disso quando sentiu um vento repentino.

— Isabela?

Não houve resposta. Sem mais se conter, caminhou curioso até o saguão de entrada do hospital. Não era preciso um super raciocínio para perceber que algo de errado estava acontecendo ali. Foi se esgueirando entre as pessoas que estavam no hall de entrada, todas com olhares desesperados e tagarelando muito. Ele demorou um tempinho até notar que a televisão transmitia uma imagem falha, onde um homem de cabelo bagunçado, usando óculos escuros para não ser facilmente reconhecido dizia com uma voz aterrorizante:

— Tenho alguns reféns aqui comigo. E não, não quero ver quarentões tentando algum acordo que me faça tirar da cabeça matá-los. Minha meta inclusive é dobrar a atual. Quem tiver interesse em não entrar na minha lista negra, só se posicionar contra qualquer grupo ou entidade pseudo-heróica ou policial. Isso é tudo, pessoal!

E o vídeo bizarro saiu do ar. Pedro Mello dançava de alegria no barraco ermo onde estava. Assim que completara o ritual para aumentar suas forças, conseguiu manter a dona da pensão presa, e foi atrás da penitenciária para onde tinham sido transferidas as detentas que Isabela tinha salvo antes de ser dada como foragida. Depois, foi atrás de mais alguns que queria se vingar, como o aposentado coordenador do CIC, da época em que estudara lá. Isabela, ele só não procurou porque acreditava com um recém super estimado ego vilanesco que já havia aprendido bem sua lição.

 Criou o vídeo com a ajuda de seres invocados que se infiltraram nas linhas de transmissão televisiva e de internet. Não conseguia mais ficar sem ostentar seus poderes.

 Antes que fosse transmitido, Isabela sentiu a alteração nas ondas de rádio, wi-fi e satélites de TV. Sabia exatamente de quem se tratava e qual seria o conteúdo daquele vídeo. Gelou com a conclusão: se ela podia salvar pessoas com seus poderes, conhecia o produtor do conteúdo e tinha sido a primeira a saber dele, logo, quem deveria fazer alguma coisa… Voltou rápido, ainda invisível para o lado do motorista de ambulância.

— Guilherme... seu chefe ficou tranquilo, certo? — O rapaz se sobressaltou ao ouvir a voz.

— Eita! Você con- hmghf! — Isabela calou a boca dele com a mão.

— Não chama atenção. — sussurou perto do seu ouvido, nervosa. — Pode tentar me descolar algum dos carros que não roda mais? Estou vendo que tem alguns parados por ferrugem no canto das vagas das ambulâncias; mas tirando o risco de saúde, podem muito bem funcionar. Vou precisar de alguma coisa que me ajude caso eu não consiga me deslocar para muito longe — explicou tensa, afastando devagar a mão da boca dele. O rapaz estava impressionado. Como ela sabia disso tudo? Como fazia essas coisas? Acatou em baixar o tom de voz, respondendo, enquanto jogava uma chave que tinha no bolso para a moça:

— O-olha, se você não mencionar meu nome, é só entrar e acelerar o mais rápido que puder. 

— A polícia e um laboratório maníaco estão atrás de mim, pode deixar que me livrar de um hospital vai ser moleza. — disse correndo para um dos carros que parecia estar em melhores condições.

Ele arregalou os olhos. O que deu nele para ajudar uma fugitiva?! Saiu correndo atrás dela, mas óbvio que Isabela foi mais rápida.  Então o rapaz se colocou perto da frente do carro; enquanto ela já tinha ligado todo o painel e tentava acelerar o máximo possível na direção do portão de saída. Percebeu em um nano-segundo o que ele estava fazendo e conseguiu frear a tempo.

— Tá maluco?! Sai da frente! Alguém vai me pegar! E aviso,vai dar ruim é para você, porque eu consigo escapar daqui!  — disse ela com raiva. Guilherme viu que o chefe se aproximava. Pronto, tinha ferrado tudo. O radinho do carro dava notícias sobre a transmissão estranha que acabara de acontecer e meteorologistas diziam que nuvens no estado da Bahia estavam saindo do curso normal. Ambos escutaram. Ela bufou, batendo a cara contra o volante.

— Tem carteira de motorista, certo?

 

 

 

Corsário - Residência de Josefina - 18:00

 

 A pobre dona de casa havia visto a transmissão, mas não fazia ideia de que aquilo se relacionava de alguma forma com sua filha. Do contrário, estava desesperada pela falta de notícias dela. Romário tinha lhe avisado que fora levada para a MutaGenic e depois não lhe disse mais nada. Pelas conversas que ouviu algumas vezes o ex-marido tendo com o pessoal de lá, sabia apenas que com certeza a menina estava correndo perigo. Tentava pela décima vez ligar para o laboratório, mas ninguém atendia suas ligações.  Sabia que não podia arranjar mais confusão ou seriam mãe e filha prisioneiras; o sacrifício de Isabela teria sido em vão. Não tinha mais ideia sobre o que fazer. Começou a catar o telefone do João, advogado da MutaGenic, quando alguém tocou a campainha. Suou frio. Estava no caminho de muitos poderosos e não tinha chamado ninguém. Devagar, segurando uma vela por via das dúvidas, abriu a porta. Tinha uma policial e um adolescente que ela nunca viu na vida em pé ali, os dois com uma cara muito séria.

— Precisamos falar sobre sua filha. — Carol falou entrando, enquanto puxava Jonas pela camisa. — Não sei se chegou a ver a invasão nas mídias de comunicação mas precisamos do paradeiro dela urgentemente.

— Moça... você sabe alguma coisa dela? E-eu não faço ideia de como ela está! A última coisa que soube foi que levaram minha menina pra MutaGenic. Você é alguma carcereira?

Jonas gelou ao ouvir “MutaGenic” e sequer prestou atenção no resto...

— Parece que é pior do que a gente pensava!

Carol deu uma guinchada de frustração. Contava com um adolescente e uma senhora sem o menor treinamento ou informação para procurar uma menina que nem conhecia. Mas afinal, não era isso que agentes faziam, colocar até suas vidas em perigo quem estivesse precisando? Bom, se não era, deveria ser.

— Josefina, antes de irmos lidar com o povo do laboratório… poderia nos contar TUDO  que sabe? Não sei se está nos reconhecendo mas já resolvemos alguns desses crimes que aparecem nos jornais, somos de confiança. Estamos aqui porque existe uma enorme chance da sua filha ser a peça chave nessa ameaça que acabou de rodar em todos os meios de comunicação do país. Te explicamos melhor se nos contar o que sabe. Garanto que só queremos ajudar. — Carol falou usando o máximo do que aprendeu em seu treinamento militar sobre lidar com testemunhas assustadas.

 

 

 

São Paulo - 18:00

 

Dentro da sede paulista da MutaGenic estava uma verdadeira confusão. Os funcionários que cuidavam dos jovens modificados já haviam visto o aviso pelo celular e temiam que os experimentos humanos fossem considerados como possíveis heróis. Giovanni, temeroso, foi avisar Ling:

— Senhor, está um alvoroço entre os enfermeiros. Não sabem se devem esconder os experimentos NEO ou…

— Preocupado com isso? Eles estão aqui dentro, tem uma grande barreira de segurança para se ultrapassar até chegar neles, e para muitos, não passam de lenda da mídia informal. Deveriam se preocupar mais com um “acidente” fugitivo. Isabela pode estar em QUALQUER lugar. A não ser que tenha cedido e esteja usando o traje; o que eu acho bem difícil depois dos raios na avenida… ela sim, está em maus lençóis.

— Mas o senhor não acha que…

— Vá continuar sua busca. — ordenou curto e sério. Assim que o enfermeiro se retirou de cabeça baixa, ouviu o telefone. Pensou que seria sua filha ou a esposa mas quem estava na linha era Romário. Nem disse “oi”:

— QUE HISTÓRIA É ESSA DE QUE VAI VENDER A MUTAGENIC?!

Ling respirou fundo. Não podia perder a paciência com ele depois de falhar em manter Isabela ali. Apesar de tudo, também era pai; embora vivesse mais no laboratório do que junto da filha, entendia a preocupação do gerente da Glam’s

— Romário, calma eu…

— “POSSO EXPLICAR”?! TÁ ACHANDO QUE ISSO AQUI É NOVELA MEXICANA?! — recuperando um pouco da calma, Romário sibilou — Você sabe o quanto eu conto com vocês apesar de tudo que já fizeram. Vendendo os laboratórios para qualquer investidor que não seja cientista, como vão ficar os projetos confidenciais?

Ling revirou os olhos. Percebeu imediatamente com o que ele estava realmente preocupado.

— O SEU projeto continua tranquilo. Sabe que quem cuida dele sou eu. Estou negociando a venda de algumas unidades da Mutagenic, só isso. Vou ficar com as  que ainda não foram fichadas como irregulares. O investidor se interessou pelas que chamaram atenção da mídia, vai entender! Eu que não vou reclamar... — explicava tudo pausadamente, massageando a testa para se manter calmo. Eram muitas coisas ao mesmo tempo. Mas  ele não podia perder o controle.

 Romário ria do outro lado da linha.

— Certo, só tem um problema: o homem para quem eu devo trocentos favores vai ter acesso ao meu tratamento. Ele vai descobrir o que sou… — sussurrou a partir daí, pois temia de todas as formas possíveis que descobrissem aquela informação — e aí… você sabe que será o meu fim.

 

 

 

Periferia de Corsário - madrugada seguinte

 

  Haviam aproximadamente dez pessoas amarradas e amordaçadas junto de Pedro naquele momento. Elas entravam hipnotizadas pelas nuvens negras que ele tinha aprendido a controlar. Seis ali eram apostadores a quem ele devia dinheiro, os demais eram as duas mulheres, a dona da pensão e o ex-coordenador do colégio onde estudava. Este, começou a soluçar com seus olhos enrugados lacrimejando por cima da pele frágil, machucada pelo lenço amarrado forte ao redor da boca. Também tossia. Aquela cena com o mais velho do grupo incomodava qualquer coisa dentro de Mello e ele sabia que isso não poderia acontecer ou seus poderes também vacilariam. Então o encarou com ódio.

— Tá passando mal, seu velhote?! Você não ligou quando expulsou da sua escola um menor de idade que não tinha para onde ir! Então agora também não ligo! — vociferou pisando com raiva no rosto do senhor de cabelos brancos.

O temor perpassava por todos, mas não podiam fazer nada amordaçados daquela forma. A verdade é que Pedro podia matar todos logo de uma vez, mas achava que devia vê-los sofrer; esbanjar e brincar com suas recém-adquiridas habilidades o máximo possível antes de assassiná-los. Usá-las para trazer aquelas pessoas não bastava. Sentado em um banquinho improvisado soltava fumaças alucinógenas com as mãos como quem brinca de estalar os dedos. Se forçava a rir por ver aquelas pessoas se contorcendo na sua frente. Nem no período em que usava revólveres para assaltar se sentia tão poderoso. Afinal, os policiais sempre tinham mais armas que ele. Mas não era o caso agora. Estava pensando justamente nisso quando dali de dentro do barracão abandonado próximo da pensão onde antes estava, ouviu sons de sirenes.

— Há! Agora que a brincadeira vai ficar boa!

 Abriu os braços invocando numa língua estranha as energias negras que dominava. Elas giravam como vultos ao seu redor, elevando-o.

— Tenho que assustar esses imbecis para que nem cheguem perto daqui. Ninguém pode me impedir! Agora!

Uma rajada de radiação negativa tão forte saiu de suas mãos em direção ao som que muitos agentes caíram só com aquele golpe. Aumentou então sua voz numa proporção que todo o quarteirão pôde ouvir:

NÃO OUSEM SE APROXIMAR!  A MORTE DELES É CERTA! A DE VOCÊS AINDA É NEGOCIÁVEL!

Algum guarda. mais desequilibrado, ainda deu um tiro de pistola naquela direção. Pedro Mello viu a bala encostar na parede do barracão.

— Então é assim? — sibilou — Conheçam agora o moleque com quem estão lidando.

Com um movimento de dedos, as sombras se transmutaram em milhares de adagas e foram todas lançadas na direção do corpo de polícia que se formava no entorno. Jorrou-se muito sangue. Alguns correram se benzendo; outros ainda ficaram por ali, escondidos atrás das viaturas. Tinham recebido uma denuncia de atividade suspeita no local por um dos motoristas que saía de Corsário pela Linha Verde na hora em Pedro adentrou ali; nem imaginavam que haviam sido guiados para a localização do “maluco do vídeo” como a sagaz internet já o chamava. O “maluco” por sua vez, começou a empurrar seus reféns para fora do barracão.

— Se atirarem para cá, quem morre imediatamente são eles!

Um dos guardas, agachado no banco de uma viatura, começou a discar para chamar reforços das outras forças militares. Mas nem deu tempo de falar o que precisava; várias bestas começaram a sair em disparada de dentro do barracão, indo até o céu e voltando, literalmente engolindo os agentes que ali ainda estavam. Houveram tiros de desespero de alguns que pegaram de raspão nos reféns; uma verdadeira confusão. Pedro Mello já ria, cantando vitória sem contar que  entre os agentes recrutados, o celular de Carol vibrou.

  O rebuliço chamou atenção pela vizinhança rural, afinal, as ventanias negras podiam ser observadas a raios de distância. Pedro Mello, quando estava prestes a cortar o braço da tremida primeira vítima com um facão que tinha pego na cozinha da pensão, ouviu o som de helicópteros. Terminou o serviço e foi ver o que estava havendo do lado de fora, se esforçando para ignorar o uivo lancinante de dor da pessoa que ferira, ainda que não tivesse amputado o braço: fez um corte na carne. De qualquer forma já era o suficiente para provocar uma hemorragia.

— Vamos ter que sair daqui. Vocês vão me obedecer ou mato cada um, escutado? — Estava vacilante. Era arriscado demais mas precisava ser feito. Parte do contrato envolvia não ser derrotado em hipótese alguma. Deveria confiar no que lhe indicavam as forças das trevas.  Andem, palermas! Vamos!

Enquanto isso um blindado corria na velocidade máxima permitida pela estrada.

— Se quisermos ajudar qualquer pessoa com poderes, precisamos antes deter esse palerma, certo? A prioridade era Isabela, mas agora que encontramos a localização do palhaço, vamos mostrar para ele quem é melhor de circo aqui. — Carol falava para Jonas, sentado no banco do carona. — Ainda bem que fomos na casa de Josefina, já estávamos no meio do caminho.


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