Mais uma vez, paramos tão abruptamente que quase nos chocamos com minha irmã, dessa vez no topo da escada. Miku estava perto da mesa, de costas para nós. O tempo parecia estar correndo de forma descontrolada, pois ela já tinha arrancado os ponteiros do relógio. Ainda era um pouco cedo para ela fazer isso… se bem que nunca chegamos a interpretar essa cena antes. É a primeira vez que ela encontra a página que faltava, então não fazíamos ideia do que iria acontecer a seguir.

— Lá está ela — Kaito adiantou-se — Me entregue. Devolva o "Happy End" que nós tanto procuramos!
— Não — ela se afastou um passo, com os ponteiros afiados do relógio apontados para ele — Vocês me enganaram. Me usaram para tentar fugir daqui. Por que eu deveria ajudar vocês?
— Se não nos ajudar, também ficará presa aqui — Luka avisou — E teremos que encenar essa peça toda de novo. É isso que você quer?
— Não, mas…
— Então nos devolva o "Happy End"! — Kaito exclamou outra vez, fazendo a garota se encolher.
— Como você pode ter certeza de que essa história terá um "Happy End"? — Miku perguntou baixinho.
— Não pode ser… — Gakupo arregalou levemente os olhos — Não me diga que você… encontrou o "True End"?
— Pergunte para ele — Miku apontou para mim — Seu precioso "True End" estava escondido nos caixões o tempo todo… mas é claro que vocês já sabiam disso, não é? Que, não importa quantas vezes vocês refaçam essa noite, vocês sempre irão morrer no final! Esse é o "True End" da peça que o autor escreveu! Vocês mataram o autor apenas porque não queriam que seus personagens morressem… e vejam só o que aconteceu! — ela deu um giro completo no mesmo lugar com os braços abertos — Vocês continuam morrendo de verdade todas as noites! — Miku deu uma risada amarga, voltando então a encarar Gakupo — Mas já chega de toda essa loucura. Quem vai escrever o "True End" dessa vez serei eu — sem pensar duas vezes, ela ergueu os ponteiros do relógio. Nós gritamos, todos ao mesmo tempo, mas não de dor ou medo de ela nos matar, como aconteceu nas encenações anteriores. Dessa vez, inesperadamente, a protagonista apunhalou a si mesma.
— Não! — Meiko gritou ao meu lado — Sem uma protagonista, teremos outro "Bad End"!
— Acalme-se — corri até Miku, que estava caída no chão, e segurei seu pulso. Escorria muito sangue de seu abdômen, mas ela ainda estava respirando — Ela ainda está viva.
— Ei, o que você está planejando fazer com isso? — minha irmã tinha se aproximado também. Olhei na mesma direção que ela e vi que Miku, mesmo à beira da morte, fazia um esforço descomunal para escrever na última página do script com o ponteiro do relógio, usando o próprio sangue como tinta — Ora… depois de tudo, é assim que você quer que termine a história?
— Eu vou acabar com essa história insana… custe o que custar — ela ergueu a cabeça com dificuldade para nos encarar. Exibia um sorriso ensandecido e vitorioso ao mesmo tempo. Bem, eu não podia culpá-la. Qualquer um teria enlouquecido no lugar dela — Eu não vou passar por tudo isso de novo, de jeito nenhum. Já chega dessa festa de mentira, desse banquete falso, desse script inacabado… eu só quero… voltar para casa…
— O que aconteceu? O que ela escreveu aí? — Gumi perguntou ansiosa. Me inclinei diante da página recém-escrita e li em voz alta:

"Depois que a última página foi encontrada, a garota conseguiu colocá-la junto do resto do script e, ao fazer isso, ela se libertou da maldição. E conseguiu abrir uma passagem de volta para o mundo 'de fora', deixando enfim a mansão, para nunca mais voltar".

Nós nos encaramos durante longos segundos, absorvendo a informação contida na última página que demoramos tanto tempo para conseguir. Então era assim que terminaria a história? Apenas ela deixaria a mansão?

Com certeza foi o que Miku pensou, mas não era isso que nossas expressões indicavam. Os demais também a encararam e Kaito caminhou na direção dela. Rin e eu nos afastamos para que ele pudesse examinar a página pessoalmente.

— Depois de todo esse tempo finalmente temos a última página… e tudo graças a você. Precisamos te agradecer. Não teríamos conseguido sem você.
— Por que… você está sorrindo? — ela perguntou com dificuldade, tentando esconder o medo em vão — Apenas eu sairei daqui. Vocês continuarão vivendo nessa mansão… para sempre…
— De fato, foi isso que você escreveu — Kaito concordou — Mas você se esqueceu de uma coisa muito importante — ele se inclinou para sussurrar no ouvido nela — Você não escreveu "The End" no final da página. A história ainda não terminou.
— Não! — ela gritou em desespero, atingindo Kaito com os ponteiros afiados do relógio. Ele soltou uma exclamação de surpresa mesclada com dor e tombou para o lado, a roupa manchada de sangue — Eu não vou passar por tudo isso de novo! Eu preciso sair daqui!

Como que ouvindo à súplica da garota, a porta da mansão se abriu, trazendo o vento gelado da noite consigo. Era raro aquela porta se abrir, exceto no começo da peça. Ela não escreveu "The End", mas a história precisava terminar.

— É uma pena. Você quase conseguiu — minha irmã comentou casualmente, apoiando uma das mãos no ombro dela.
— "Bad End" para você — eu acrescentei, apoiando a mão no outro ombro da garota. Percebi o choque mesclado com desespero com o qual Miku nos encarava. Parecia realmente acreditar que tinha feito tudo corretamente dessa vez. Pobrezinha… ela realmente tinha chegado perto.
— Por que…? — Miku fez um esforço descomunal para colocar-se de pé, o sangue escorrendo por seu vestido e misturando-se com o tom vermelho do tecido — Eu fiz tudo direito dessa vez! Não errei nenhuma fala, encontrei a última página a tempo… escrevi o final da peça com meu próprio sangue! Então… por que ainda não posso sair daqui?!
— Você realmente fez tudo isso. Mas, veja, você foi muito ambígua ao escrever o final da história — eu expliquei — O final que você escreveu foi "Depois que a última página foi encontrada, a garota conseguiu colocá-la junto do resto do script e, ao fazer isso, ela se libertou da maldição". A primeira garota que colocou a última página junto do resto do script, ainda que ela estivesse em branco, foi a Gumi, e não você.
— E você se lembra do que nós te dissemos em uma das apresentações anteriores? — Rin perguntou — Precisamos da ajuda de uma pessoa "de fora" para que outra saia daqui — ela repetiu a mesma frase que parecia ter sido dita há muito tempo atrás — Uma pessoa por outra. Só pode sair um de cada vez.
— Nesse caso… eu vou sair — Kaito sentou-se com grande esforço, mas começou a cuspir sangue.
— Se você sair daqui nesse estado, vai morrer — eu avisei — Seria um grande desperdício.
— E por que você se importa? Ficará preso aqui para sempre de qualquer forma! — Kaito exclamou, tossindo sangue. Ele tinha se lembrado quem minha irmã e eu não éramos meros personagens da peça como ele e os outros, e sempre agia assim quando suas memórias voltavam. Era irritante quando essas lembranças retornavam, mas também servia como aviso de que a peça estava chegando ao fim.
— Não precisa nos lembrar de que, ao contrário de vocês, nós moderadores nem sequer possuímos a chance de escapar daqui — Rin lançou um olhar assustador para Kaito ao ser lembrada de que, como uma boneca criada pelo autor, estava condenada a permanecer dentro da história para sempre. O mesmo valia para mim, é claro — Mas é justamente por sermos moderadores é que podemos controlar um pouco a vida de vocês… só um pouquinho — ela fingiu um sorriso inocente.
— Decidindo de forma justa quem será libertado da maldição agora que a última página finalmente foi encontrada, por exemplo — voltei-me para Gumi, que me encarou apreensiva — Meus parabéns, Gumi. Chegou a sua vez de deixar a mansão.
— Eu… posso mesmo ir? — ela arregalou os olhos incrédula.
— Foi você quem colocou a última página junto do resto do script — Rin lembrou — E a nossa convidada foi muito egoísta em querer se salvar sozinha, portanto essa é a sua vez de partir.
— Nada disso! Se alguém vai deixar a mansão essa noite, serei eu! — Luka protestou, correndo na direção da porta.
— Você não pode! — Meiko a segurou pelo braço — Já é uma substituta, precisa ficar!
— Eu sou… o que? — Luka a encarou confusa.
— Do que ela está falando? — Miku me encarou, tão atordoada quanto Luka.
— Ah, ela representava a Aldeã antes de você chegar — respondi, sem me dar ao trabalho de olhar para Luka — Não fale sobre isso, Meiko. Ela não pode se lembrar — eu avisei. E então expliquei em voz baixa para Miku — Na peça original, o Mestre e a Mestra da mansão não tinham uma filha. Existia o irmão do Mestre, mas o Akaito, o ator que o representava, conseguiu partir. A Luka é a substituta que veio "de fora" e ficou em seu lugar.
— E agora você vai se tornar a substituta da Gumi — minha irmã acrescentou enquanto a garota vestida de empregada passava correndo por nós. Aos poucos, o som de aplausos começou a ecoar, cada vez mais alto. A plateia materializou-se mais uma vez diante de nós, indicando o fim do espetáculo — Parabéns, Gumi. Encontrou o seu "Happy End".