Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 5
Sobre cuidado




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Corri. Corri escada acima, como se minha vida dependesse daquilo. Quando cheguei no terraço, estava chorando. E não só chorando, mas soluçando, me engasgando. Surtando, de uma forma intensa como quase nunca tinha surtado antes. Acabei vomitando assim que cheguei, não sei se pelo desespero ou pelo esforço físico. E se eu for, de fato, uma pessoa ruim?
O ciclo de pensamentos na minha mente sempre se resumia a mesma pergunta.
Fui até a beirada, me apoiando na sacada e tentei me forçar a respirar. Meu peito e minha garganta doíam. Segurei minha cabeça entre as mãos, puxando meus cabelos sem perceber.
O que será que aconteceu com Rogério?
E se...
E se eu matei ele?
O pensamento fez eu me encolher. Não era isso que eu queria, inicialmente?
Não sabia mais de nada. Só sabia que estava surtando, e não queria enfrentar as consequencias dos meu atos. Não queria ver Martha, ou ninguém. Nunca mais.
Olhei pra baixo, pro chão. 15 andares.

Talvez eu não precisasse ver ninguém nunca mais.
Coloquei minha mão na beirada, trêmulo, pronto pra subir. E ai me jogar.
Mas fui interrompido por passos rápidos, e então o barulho da porta do terraço se abrindo.
— Nick! - alguém falou. Não conseguia enxergar por causa das lágrimas, mas reconheceria a voz de Isabelly de longe.
Foi como duas realidades se chocando: a minha, ali surtando, e a da garota animada que cantava no caminho da escola. Também me trouxe de volta do ciclo de pensamentos perigosos, e me levou à novas preocupações. Isa foi correndo até mim, e eu só conseguia pensar que ela, com certeza, espalharia pra todo mundo da escola, e ai eu seria ridicularizado e zoado como sempre. O pensamento me fez chorar mais.
— Eu ouvi você vindo pra cá. - ela falou, calma. - E também ouvi... O que quer que seja que aconteceu na sua casa. Pensei em vir ver como você ta.
Ela estava tentando conversar comigo, o que eu estranhei porque mal falávamos muito um com o outro. Por que alguém iria querer saber como eu estou? Por quê?
— Você não pode contar pra ninguém. Da escola.- murmurei, entre os soluços. Me senti fraco e tonto, então sentei no chão. Isa sentou também.
— Nick, ta tudo bem, eu não vou contar nada. - ela falou.
O choro e a falta de ar devem ter durado, mais ou menos, uns 15 minutos. Quando acabou, eu pensei que fosse desmaiar, minha visão embaçada e todo meu corpo parecendo fraco.
— Nicolas? - Isabelly chamou, e então eu me tornei consciente da presença dela ali, sentada, durante todo esse tempo. Eu me sentia grato, mas também com vergonha. Queria mandar ela ir embora e ao mesmo tempo precisava desesperadamente de um rosto amigável ali do meu lado. Olhei pra Isa, que estava de roupa de dormir e cabelo preso, diferente de como ia pra escola- toda arrumada.
—O que? - falei, minha voz saindo ainda chorosa.
Ela mordeu o lábio, pensativa.
— O que...- hesitou - O que aconteceu? Você ta machucado?
—Não- balancei a cabeça negativamente. Então lembrei do meu ombro. - Eu acho que não.
— Seu pai... Ele te bateu?
— Não. Não dessa vez.
Meu ombro começou a doer, talvez por eu estar consciente dele e por toda a adrenalina ter passado. 
— Mas daquela outra vez...?
—É. - concordei, então balancei a cabeça - Mas não quero falar sobre isso. - o pensamento da cena que eu deixei lá em baixo fazia minhas mãos voltarem a tremer.
— Você conta o que aconteceu se eu te contar algo também? - Isa propôs. A garota irradiava calma, mesmo depois de ter presenciado algo consideravelmente assustador. Não queria aceitar o trato, mas o desespero pra me distrair e a curiosidade falaram mais alto.
— Pode ser. Parece justo. - falei. Me acomodei no chão, encostando a cabeça na parede. Minha visão perdia o foco e voltava, constantemente, mas ignorei.
— Essa é uma história triste. - ela avisou - Tem certeza que quer ouvir?
Eu soltei uma risada ironica.
— Vai la, mostra que eu não sou o único aqui completamente ferrado.
Ela riu, e mesmo estando escuro, eu conseguia ver seu sorriso claramente na minha cabeça.
E então ficou séria, e começou a história da pior forma que histórias podem começar:
—Hoje vão fazem quatro anos que minha mãe morreu. Eu não quero falar do quê, mas o que você precisa saber é que minha mãe, Liliana o nome dela, enfim, sempre foi muito independente. E ai ela ficou doente e precisava ds gente pra tudo. - eu olhava fixamente pra Isabelly, embora ela desviasse o olhar do meu - E eu, porra, eu era só uma criança. Mas eu tive que deixar de ser. Eu sempre ajudava, em tudo. Eu arrumava a casa, passava as roupas do meu pai, eu fazia tudo, pro meu pai poder trabalhar e pagar o tratamento nada barato dela. - Isa se remexeu, desconfortável - Nos últimos dias, eu criei um hábito, que eu chamava do Check In dos 15 Minutos. Ela estava em casa, e a cada 15 minutos, se eu estivesse ocupada demais pra fazer companhia pra ela o tempo todo, eu ia ver como ela estava. Ajudar como eu posso. E, eu juro pra você, minha mãe tava bem! - A garota parecia frustrada. Eu queria apertá-la com um abraço, o que foi um impulso estranho - Ela tava bem, e ai eu pulei 15 minutos do tempo. E depois mais 15. Meia hora depois, ela ainda estava bem. E na outra meia hora, estava morta.
Ela fez silêncio, deixando as palavras fazerem impacto em mim. Provavelmente processando as informações.
— Eu sinto muito. - murmurei.
— A questão é: eu poderia ter feito alguma coisa. Mas não fiz. E é por isso que agora sempre que eu posso fazer algo, eu faço. Por isso que todo mundo naquela maldita escola gosta de mim: porque eu ajudo. Eu me ofereço. Mas eu não faço isso porque sou a pessoa mais feliz do mundo, ou a bondade em pessoa, ou merda assim. Eu só não consigo deixar pra lá. Da última vez que eu deixei pra lá, minha mãe acabou morta no próprio quarto.
Ficamos em silêncio, os dois. Eu queria dizer que a culpa não foi dela. Queria dizer que todo mundo gosta dela porque ela é um ser humano adorável e que ela não merece se culpar por algo que não pode controlar.
Mas eu não sabia como dizer. Não sabia o que dizer. Então só fiquei em silêncio, a olhando, torcendo pra Isabelly entender, pelo jeito que eu a olhava, que tudo que eu via era um ser humano incrível.
Isa se remexeu, limpando as lágrimas dos olhos e respirando fundo, então sorriu, voltando ao modo Isabelly de Sempre.
—Bom, ninguém mais sabe disso. Então espero que você saiba que eu sou super confiável.
— Obrigado - foi o que eu disse - Obrigado por me contar.
— É, mas agora é sua vez. De me contar o que aconteceu.
—Eu...- comecei a tremer - Eu não consigo.
— Ei,ei ei! - ela me interrompeu - Ta tudo bem, não precisa.
Mas, depois de ter sido confiado uma informação pessoal, eu meio que queria contar. Algo em mim implorava pra desabafar.
Então eu contei, sem muitos detalhes, e da forma que minha mente bagunçada conseguiu organizar, o que tinha acontecido hoje. Mas deixei de fora a parte que eu tinha jogado o copo em Rogério- não, não queria afastá-la.
Mencionei meu ombro, agora que a dor aumentava e se espalhava. Ela parecia preocupada, e horrorizada, mas a primeira reação que teve foi mencionar que a gente deveria ir pra um lugar mais claro e verificar o que tinha acontecido no meu ombro. 
— Sua sensatez me assusta. - murmurei.
— O que?
— Nada. A gente pode usar a lanterna do celular, espera. - sugeri.
Assim que peguei o telefone, vi:
15 chamadas perdidas- Martha.
Merda.
Umas 20 mensagens. Fui olhar, nervoso. Isabelly não perguntou.
"Nicolas, onde você ta?
Eu to levando seu pai pro hospital
Nicolas
Nicolas, cade você?
Deixei a chave com o porteiro, vai lá pegar"
E então, a mensagem mais recente
"Nicolas, eu não sei onde você ta, mas volta pra casa, por favor. Não quero que nada aconteça. Seus irmãos precisam de você. Eu prometo que seu pai não vai fazer nada contigo, ele ainda ta no hospital.
Só volta, ok? Aparece. Eu já to aqui te esperando"

E aquilo mexeu comigo. Aquele carinho, aquilo era novo pra mim.
— Isa, eu preciso ir pra casa. - falei, baixo.
— Tudo bem. Você vai ficar bem?
— Vou. Minha madrasta ta preocupada.
Isabelly levantou primeiro, se espreguiçando, e depois me ajudou a levantar. Descobri que eu ainda estava tonto, e imediatamente me apoiei na parede.
— Quer que eu vá com você até lá? - falou.
Assenti com a cabeça, e fomos de elevador, ao contrário do normal, e Isabelly me apoiou, o braço nas minhas costas, e me levou até a porta do apartamento.
Chegando lá, Martha me recebeu com o olhar mais maternal possível, e eu cai no choro. Então ela me abraçou, e apoiou minha cabeça em seu ombro.
— Nicolas, eu pensei que algo tinha acontecido com você. - falou - Obrigada por me defender hoje. De verdade. Rogério ta no hospital, ele vai ficar bem, mas depois a gente conversa sobre isso. Eu só fiquei preocupada com você.- eu estava chorando, sentindo suas mãos passando pelas minhas costas assim como ela faria com algum dos bebês. - Ta tudo bem, não precisa chorar.
E então, ainda pensando em Isa, e sentindo o abraço maternal de Martha, eu me senti, pela primeira vez em minha vida, acolhido.


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Notas finais do capítulo

Em clima de setembro amarelo, nada como um capítulo que diga: existe esperança, muitas vezes em lugares inusitados. Mas sempre tem, mesmo que não tenha sido encontrada ainda.
Vocês não estão sozinhos.



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