Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 6
Sobre lembranças




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É engraçado como, ás vezes, parece que nada nunca vai voltar ao normal. Só que as coisas sempre se encaixam de novo, infelizmente, nunca no lugar que eu queria que estivessem. Mas, mesmo assim, no lugar.

Rogério ficou um dia e meio no hospital, levou uns pontos, e ai voltou pra casa. E eu estava esperando gritos e repressão e violência. Mas o que aconteceu foi o contrário disso: ele entrou, não falou com ninguém, e foi pro quarto. Não falou nem mesmo com os bebês. Martha parecia profundamente chateada com ele, e, olhando pra marca roxa na sua boca, eu sabia o porquê.

Não falamos mais sobre o que aconteceu, embora eu tivesse muito pra falar. Eu queria gritar com Martha, dizer a ela que meu pai é um babaca e que ela nunca deveria perdoa-lo, mas fiquei quieto. Pra mim, já era o suficiente ela ter me perdoado.

Quer dizer, ninguém mais falou sobre o que aconteceu exceto Isa. Depois de termos tido uma conversa daquelas – e de ela ter sido tão prestativa quando precisei- ficamos mais próximos, como é natural ficar. O que eu nunca tinha descoberto antes, por falta de oportunidade, é que eu sou um belo dum tagarela. E, como um bom tagarela, acabei contando sobre o soco.

—Não. – ela falou, parando no meio do caminho pra escola. – Não, não, não. Ele não fez isso. Isso é sério?

Ela parecia chocada. Eu segurei um braço com a mão, me encolhendo desconfortável.

—Vamos, a gente vai se atrasar. – falei, baixo, tentando mudar de assunto.

—Nicolas, se isso é sério, ela deveria denunciar.

Respirei fundo, me rendendo a conversa que eu estava evitando.

—Eu sei. Mas...

—Mas...?

A puxei gentilmente pra continuarmos andando; estávamos realmente atrasados.

—Mas eu não quero conversar com ela. – admiti, me sentindo impotente – E ela não fez nada por conta própria. Ela só aceitou ele de volta. Ela não deveria fazer alguma coisa? – eu estava começando a falar rápido.

—Você ta ficando nervoso. – Isa observou, abaixando o tom de voz. – Respira fundo, ok? Não é sua culpa. - eu assenti com a cabeça. Essa porcaria de tom meloso que ela fazia quando queria me acalmar mexia comigo toda vez. – Mas, é sério, eu acho que você deveria conversar com ela.

—Eu sei. Eu também acho. Mas... mas ela é única pessoa que me dá o mínimo de aprovação esses dias, e eu não quero perder isso.

—Eu entendo. É tipo quando eu quero contrariar meu pai, mas eu nunca falo nada de verdade porque ele é a única pessoa que eu tenho.

—É. – concordei. – Tipo isso.

—Só pensa sobre isso.

—Eu vou. – prometi.

O que ela não sabia é que eu não parava de pensar sobre isso. O tempo todo eu me perguntava como meu pai poderia ter feito o que ele fez – e todas as outras coisas que ele fez, desde mim até minha mãe e Martha- e continuar assim. Ileso. Continuar sendo um filho da puta e não tendo consequências sobre nada enquanto eu, que nunca fiz nada pra ninguém, fico preso com esses traumas e essa família de merda. E como Martha conseguiu perdoá-lo. Como? Eu sinceramente não sei. Eu sei que eu nunca consegui. Talvez o problema fosse comigo.

—Você ta viajando. – Isabelly interrompeu minha linha de pensamentos, enquanto entrávamos na escola. Dei de ombros.

Naquele dia chegamos atrasados, o que significou que tivemos que sentar juntos. E aí continuamos sentando juntos os outros dias. Era bom, mas eu preciso admitir que também era um pouco estranho. Eu sabia que ela via minhas mãos inquietas e todas as vezes que comecei a soar e respirar forte no meio das aulas. Eu sabia que ela, agora que estava perto, via que eu não sou como mundo, da pior forma. Pela postura atrevida dela, em relação a tudo, eu estava esperando ela comentar algo. Mas ficou quieta. Isa ficou quieta sobre mim e eu fiquei quieto sobre Martha. Acho que, no fundo, somos todos uns bando de covardes.

Até que, não mais de duas semanas depois, tudo mudou e nos tirou da nossa inércia.

Rogério tinha chegado bêbado em casa. Depois do incidente, beber era só o que ele fazia. Martha o tinha aceitado de volta, mas eu sabia que eles mal se falavam e que ele dormia no sofá. Chegava bêbado e patético, mas não violento, o que era bom pra minha segurança mas não tão bom pro meu psicológico. Chegando cedo e dormindo fora do quarto, não tinha como evita-lo. E ele sempre, sem exceções, ficava lá deitado, falando pra mim tudo que eu dizia pra minha mente que não era verdade. E meu ódio foi se juntando, e juntando, até que eu explodi.

—Sabe, você tem sorte de eu ter te aceitado aqui em casa. – ele falou, com a voz arrastada de bêbado e mudando os canais da televisão. Eu estava sentado no balcão, comendo e o ignorando. – Eu sou bom pra caralho pra aturar um adolescentezinho merda que nem você que acha que tem problemas de verdade. Você ta me ouvindo? – perguntou. Não respondi e ele aumentou o tom de voz. – Ta me ouvindo, garoto?

—Sim.

Eu queria ignorá-lo, mas o medo falava mais alto. E eu só precisava aturá-lo até terminar de jantar. Gabriela, que tinha acabado de aprender a andar, veio chorando do quarto, com passinhos tropeçados de bebê, pedindo colo. Provavelmente tinha acordado com o barulho da TV. Eu queria ignorá-la, e continuar comendo rápido, mas não podia. A peguei no colo, e assim que ela passou os braços pelo meu pescoço, me senti imediatamente mais calmo. Levantei e comecei a balança-la, o choro abafando o som do meu pai reclamando. Quando ela parou e dormiu, Rogério falou:

—Finalmente essa maldita dessa criança calou a boca.

Eu queria gritar com ele. Dizer que “a maldita da criança” é a porcaria da filha dele e que ele era um pai horrível. Mas fiquei quieto, precisava me manter no controle. Passei a mão nos cabelos de Gabi. Estava tudo bem, Gabi estava aqui comigo. E nada do que ele diz é verdade, certo? Isabelly me disse que ele é um babaca e que eu não deveria me importar com a opinião de um babaca que nem ele, e talvez ela estivesse certa.

Então foi quando ele se sentou, olhou pra mim e riu.

—Você lembra de como a gente brincava quando você era pequeno? – falou, sorrindo. Tudo em mim tremeu. Eu apoiei Gabriela contra o banco porque pensei que você desmaiar. – Ah, não faz essa cara. Você gostava.

E foi aí que eu perdi. Foi aí que eu surtei. Saí correndo até o quarto de Martha, e coloquei Gabi na cama, desajeitado, e fui correndo pro meu quarto.

“Você gostava.”

Filho da puta.

Martha foi correndo atrás de mim, mas eu bati a porta do quarto. Tudo em mim era raiva e ódio, e eu tremia e respirava forte. Comecei a bater nas coisas, na parede, no guarda-roupa. Estava fora de mim. Minhas mãos sangravam. Procurei, desesperadamente, algo com que eu pudesse me machucar, qualquer coisa. Precisava descontar aquela raiva, e bater em coisas não estava funcionando.

Minha mente estava viajando por flashbacks e lugares que eu prometi que nunca mais ia voltar. Mas lá estava minha cabeça, me fazendo reviver tudo de novo.

Continuei batendo na parede, até que não sentisse mais minhas mãos.

Aos poucos, a raiva foi passando se transformando num vazio e numa necessidade de sair daquele lugar. Me senti sufocado naquele quarto revirado e nas paredes cheias de sangue.

Fui até o telhado. Peguei o telefone, trêmulo, e fiz uma coisa da qual tinha certeza que iria me arrepender. Mandei pra Isa:

“Telhado. Agora. Por favor”

Foi o máximo que minha mente confusa conseguiu formular. Quando Isa chegou, foi correndo até mim, e eu a abracei e imediatamente comecei a chorar.

Nunca tínhamos nos abraçado antes, mas ela não soltou. Parecia natural, como se tivéssemos nos tocado milhões de vezes.

Eu soluçava e apertava a blusa dela, como se meu mundo estivesse acabando.

—Meu deus, Nick, o que aconteceu? – eu não respondi. Não conseguia. Também não saberia explicar. Ela me puxou um pouco tentando olhar no meu rosto. – Nicolas. – só continuei chorando, as duas mãos de Isa no meu rosto, minha visão saindo e voltando de foco. Então ela cedeu e me abraçou de novo, bem apertado. Continuei chorando, mas, no meio dos malditos flashbacks indesejados de toda a minha infância, os braços de Isa me davam alguma segurança.

Eu não falei uma palavra sequer. Chorei por mais de 20 minutos e, quando acabei, estava tão tonto que poderia desmaiar.

—Nick, você precisa de água. – ela comentou. Tinha um olhar preocupado, mas não assustado, o que era ligeiramente novo pra mim. – Quer ficar um pouco na minha casa?

Concordei com a cabeça. Não sabia o que fazer. Só fui até a casa de Isa, e dei graças a Deus o pai dela já estar dormindo, não queria conhecê-lo naquela situação.

Ela me deu um copo de água e disse:

—Eu só vou avisar pro meu pai que você está aqui. Ok?

—Ok.

Fiz o meu máximo pra beber a água sem entornar, ainda estava tremendo. Não sentia mais nada além de um vazio gigante e cansaço. Quando ela voltou, me encontrou encostado no braço do sofá. Chegou perto e sentou do meu lado.

—Você quer conversar?

Balancei a cabeça negativamente.

—Quer passar a noite aqui?

 -Quero. – respondi, sonolento e com a voz rouca de tanto chorar.

—Quer ligar pra sua madrasta?

Respirei fundo.

—Não sei se consigo.

—Me dá, eu ligo.

—Eu não sei como te agradecer. – murmurei, sincero.

—Ta tudo bem.

Então ela pegou meu telefone e ligou pra Martha. Disse que eu estava com ela e que estava bem, o que era meio mentira. Também disse que eu voltaria pra casa de manhã antes da escola, e Martha pareceu concordar. Talvez ela soubesse que eu não aguentaria olhar pra cara do meu pai naquele momento.

Isa pegou um cobertor e um travesseiro e me deu, tirando as almofadas do sofá. Era um sofá grande, e eu conseguia me esticar sem problemas.

—Seguinte: – Isa falou, se espreguiçando – eu to bem preocupada. – sentou no chão, do lado do sofá – Então eu vou ficar aqui até você dormir. Pode ser?

—Pode. Obrigado. – falei.

Ela respirou fundo e apoiou a cabeça perto do meu rosto, então esticou o braço até meu pescoço e manteve a mão lá. Novamente a presença de Isa me passava uma segurança absurda.

—Tá tudo bem. – ela sussurrou.

Mas não estava. O acontecimento de hoje tinha trazido muitas memórias à tona. Memórias que eu não sabia lidar.

Na minha mente, tudo estava desmoronando.


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