Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 4
Sobre os cinco copos de vidro




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"Eu te mato, garoto! " foi o que ele disse.
As palavras ecoavam na minha cabeça.
Bom, vamos ver quem mata quem primeiro.
Faltavam dois meses exatamente pro meu aniversário, e meus planos já estavam feitos: eu vou sufocá-lo enquanto ele dorme. Por um lado, eu queria muito ver seu rosto no momento, queria que ele presenciasse o que eu estava prestes a fazer. Mas, por outro lado, eu sei que meu pai é fisicamente forte e me venceria numa luta corporal fácil, não posso correr esse risco. E eu sei que ele tem sono pesado, o suficiente pra que eu consiga amarrá-lo. Agora só preciso de cordas e sedativo. E do maldito momento perfeito.
Até lá, vou ter que conviver com ele, o que se tornou ainda mais difícil depois da última briga. Só de vê-lo, meus pulsos se fecham de raiva.
Eu estava agitado aqueles dias. Não sei dizer se era bom ou ruim, só que estar agitado significava que eu precisava me manter ocupado. Ajudei Martha com a casa, fiquei de babá dos gêmeos, concentrei minha energia em não me manter em encrenca. Quando minhas mãos formigavam e eu sentia correntes de energia e raiva, ia pras escadas do prédio. Subia e descia, obssesivamente. Ás vezes correndo, as vezes devagar, mas ficava lá. Contando os degraus, sentindo aos poucos que o mundo ao redor se dissociava e só existiam aquelas escadas. Subir e descer, descer e subir. Não parava um segundo sequer, até que ficava exausto.
Quase fiquei feliz quando me transferiram pra uma nova escola. Mas escola significava ficar parado durante cinco horas.
Um dia, sem querer, no silêncio da madrugada, ouvi Martha e Rogério conversando.
— Tem algo de errado com o Nicolas. - ela disse, não consegui ler o tom de voz.
— Demorou pra perceber, hein. - respondeu, rude. Eu me encolhi na cama involuntariamente.
— Não, eu quis dizer... Realmente errada. Parece que ele vive numa frequência totalmente diferente da nossa. - ela pausou por uns segundos - E tem aquele lance da escada! Quer dizer, isso não pode ser normal.
Eu não sei se deveria me sentir ofendido. Mas não estava, sabia que era verdade. Sempre soube. Tudo o que eu sentia, naquele momento de plena consciencia das minhas ações, era vergonha.
— Não sei, só...- Martha continuou- A gente não deveria fazer alguma coisa?
Meu pai riu.
— O que você quer que eu faça?
— Não sei. Talvez a gente devesse levar ele no médico.
—Pft, Nicolas é um caso perdido.
E aquilo parecia verdade. Uma verdade que eu não conseguia fugir, por mais que tentasse.
No outro dia, seria o primeiro dia na escola e eu passei a noite inteira acordado, me revirando na cama. Pensando na conversa deles.
Mas consegui me controlar o suficiente pra ir pra escola, e sentar, e parecer só mais um adolescente estúpido aprendendo sobre história e matemática, e não um assassino em potencial.
Não queria encarar as escadas, então fui de elavador e dei de cara com a garota de cabelo rosa.
— Bom dia. - ela falou baixo, se alongando e bocejando. Então me olhou de cima a baixo, e percebi que estava olhando pro uniforme. - São Pedro. Eu também sou de lá. Qual turma?
A garota falava rápido demais e eu demorei uns segundos pra processar.
— Terceiro ano. - respondi, sem olhar pra ela.
— Ah, que legal! Eu também. Acho que vou ter companhia no caminho a partir de agora, hein?
A olhei, e então ela deu um sorriso, sem mostrar os dentes, mas sincerono suficiente pra os olhos se fecharem um pouco. Concordei com a cabeça, tentando parecer o mais educado possível, mas no fundo estava me perguntando o porque ela estava falando comigo mesmo depois de ter visto/ ouvido o que aconteceu lá em casa.
Acho que algumas pessoas não conseguem evitar de serem simpáticas. Essa menina - que eu não sabia o nome mas estava morrendo de vontade de perguntar- parecia o tipo de pessoa que carrega sacolas de idosos e dá bom dia pra todo mundo que ve pela frente.
Fomos andando em silêncio, lado a lado, até a escola. Ela ia cantando alguma música baixinho, e eu não pude evitar de sorrir. Era uma visão engraçada e até que agrádavel.
Virou meio que nosso ritual. Íamos e voltávamos da escola juntos, sem conversar muito, mas Isabelly - como eu descobri- era uma companhia agradável.
Me esperava no elevador e me cumprimentava com um:
— E aí, Nick? - prolongado e animado como se não fossem sete da manhã. Então estendia a mão pra um high five, e ria. Uma pessoa que fica animada assim de manhã só pode ser alguém legal. E então íamos andando, cada dia com Isa murmurando uma música diferente. As vezes ela cantava alto, se era uma música que ela gostasse de verdade, e eu sempre ria. Às vezes até murmurava a música junto. Quando chegavamos na escola, cada um ia pra seu lado, e eu sempre dizia algo como:
— Até a saída. - porque ir e voltar com Isabelly já fazia parte da minha rotina.
E era, por mais patético que fosse, as partes altas do meu dia.
Não gostava daquela escola. O ambiente era hostil e as regras eram duras, o que provávelmente foi o propósito do meu pai a me colocar lá. Mas eu não falava muito com ninguém, e sentia falta do Gabriel. E do Jonathan. Principalmente do Jonathan, por mais estranho que fosse. Decidi ligar pra eles no dia em que percebi o quanto estava com saudade.
A parte estranha é que as coisas não estavam, generalizando, tão ruins assim. Claro, eu ainda passava horas do dia agonizando de raiva e subindo e descendo escadas sem motivo aparente. Mas criei uma rotina de ir dormir antes de Rogério chegar em casa, o que evitava muitos conflitos, e estava conseguindo não sair das regras na escola. Pelo menos um pouco, por aquela pequena janela de tempo, me permiti apreciar a quase- calma. Alguns dias me pegava observando a porta do quarto do meu pai, pensando em entrar. Pensando que era a hora. Mas nunca era a hora.
Até que, exatamente três semanas depois de eu ter começado na nova escola, meu tempo recorde sem surtos foi interrompido por gritos do lado de fora do quarto.
Levantei sonolento da cama, acordado pelo barulho, e ouvi pela porta o que consegui.
— Você precisa parar! - Martha gritou. - Isso tem que parar! - ela estava chorando. Ouvi o barulho de algo se quebrando e então, embora estivesse assustado, saí do quarto rápido e fui olhar o que estava acontecendo, por puro instinto.
Meu pai estava visivelmente bêbado, enrolando palavras e jogando coisas. Dizendo que ela não mandava nele, algo assim. E aí assim que me viu começou a me xingar também. Coisas sobre como eu não deveria ter nascido. Tinham cinco copos de vidro na pia, e então ele pegou um e jogou no chão, perto do próprio pé. Os outros dois foram jogados na nossa direção, mas não exatamente na gente. Martha gritava pra ele parar, e eu só fiquei lá, observando a situação, como se não estivesse realmente acontecendo.
O próximo copo passou no meu braço e eu segurei o corte, sem nem olhar quão feio foi. E foi aí que Martha segurou o braço de Rogério, numa tentativa de contê-lo.
Foi tudo rápido demais. Num momento, a mão dele tinha soltado o copo no chão e, um segundo depois, estava na boca de Martha.
E aí eu perdi o controle.
Peguei a primeira coisa que estava ao meu alcance - o último copo- e quebrei na cabeça de Rogério. Ele tropeçou, o vidro estilhaçando, e foi o suficiente pra que ele caísse no chão.
Tudo em mim tremia de ódio. Eu queria pegar os cacos de vidro e atravessar o corpo dele com eles, até que não restasse nada. Minha respiração estava acelerada, e então, de repente, tudo ficou exageradamente claro.
Olhei pra imagem no chão: meu pai se contorcendo de dor, o sangue se espalhando numa poça. Pensei que fosse vomitar. Olhei pra Martha, seu olhar em choque, a boca machucada. Ela me olhava de uma forma estranha. Com medo. Talvez com nojo.
Mas eu entendi. Estava com nojo de mim também. 


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