Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 3
Sobre violência e pais ruins


Notas iniciais do capítulo

Pra ouvir lendo: https://www.youtube.com/watch?v=TRd0_ZQbHxg



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Eu estava encolhido no sofá, olhando os gêmeos dormir no carrinho, enquanto Martha ligava desesperadamente para meu pai. Rosana tinha apenas me deixado na portaria do prédio e ido embora. Algo me dizia que era uma despedida.

—Te ligo de noite. – falou, mas eu sabia que era mentira

Eu, confuso, não consegui explicar nada pra Martha. Só sabia chorar e falar palavras aleatórias, então ela me deu água, me levou até o sofá e foi ligar para meu pai.  

—Ele não atende. – falou, voltando da cozinha. Sentou do meu lado – Nicolas, eu preciso muito que você respire fundo e me conte o que aconteceu. Pode ser?

Demorei um pouco pra responder, mas concordei.

—Aham.

—Quem te trouxe aqui?

—Rosana.

—No meio da semana?

—Ela... – respirei forte, prendendo o choro – Ela não quer mais que eu... more com ela... algo assim... eu não... não sei.

Martha parecia tão confusa quanto eu. Nós dois sabíamos que eu não seria bem recebido pelo meu pai.

—Ok. – ela disse, pensativa – Ok, ela deve ter dito isso sem pensar. Você não precisa ficar desesperado. Fica aqui por enquanto e a gente já resolve isso.

Mas eu sabia que ela não estava dizendo sem pensar. Talvez, na mente de Martha, eu tenha uma relação normal com minha mãe, daquelas que a mãe faz as coisas com raiva, se arrepende depois, algo assim. Mas não, nunca foi desse jeito. Eu me sentia perdido, sem ter para onde ir. Sabia que não seria bem vindo aqui também.

—O que aconteceu com seu rosto? – ela perguntou, e então eu me dei conta que tinha esquecido da briga com João. Assim que ela mencionou, meu olho começou a doer, reparando só agora o soco que ele me deu.

—Uma briga. – coloquei a mão e senti que estava inchado.

—Foi por isso que sua mãe ficou com raiva?

—Aham.

Ela apoiou a mão na testa, provavelmente tentando absorver a situação toda. Ter sua tarde interrompida por um adolescente chorando e machucado não deveria fazer parte do que ela imaginou que seria casar com um homem que tinha um filho.

—Você deveria tomar um banho. Tem umas roupas suas aqui, não tem?

—Tem.

—Já comeu alguma coisa?

Balancei a cabeça negativamente, ainda estava enjoado.

—Então se acalma, vai tomar um banho que eu vou fazer algo pra você almoçar.

Quando voltei, ainda estava confuso, mas me sentindo um pouco menos horrível. Martha estava sentada no sofá dando mamadeira pra Gabrielle enquanto Lucas chorava no carrinho.

—Já vai chegar sua vez, amor. – ela dizia pra ele, brincando. Olhou pra mim quando viu que sai do banho – Tem comida na cozinha.

Quando fui pegar, vi a mamadeira azul na pia esperando por Lucas, então a peguei e levei pra sala. Já que eu estou aqui, acho que deveria ajudar.

—Quer ajuda? – falei, mostrando a mamadeira.

—Isso seria ótimo. Obrigada, Nicolas.

Algo em mim dizia que seria uma péssima ideia, mas mesmo assim, o peguei, sentei no sofá e, da maneira menos desajeitada que consegui, dei mamadeira pra ele. Lucas era gordinho e fofinho, que nem Gabi, e logo depois de acabar a mamadeira, acabou dormindo. Por alguns momentos, vendo Luke roncar adoravelmente enquanto dormia no meu colo, eu quase consegui esquecer porque não queria estar ali.

Mas meu pai fez questão de me lembrar quando chegou.

—E ai, garoto. - falou, me vendo no sofá, ligeiramente espantado. Ele tirou a gravata e sentou na mesa. – Quem vai me contar o que ta acontecendo?

—Então, hum, pai... – comecei, me levantando e torcendo pra ele estar de bom humor – Aconteceu uma coisa na escola hoje e minha mãe ficou um pouco chateada. Ai ela me trouxe pra cá.

—E o que ela quer que eu faça?

Me remexi, sem graça.

—Eu... não sei.

Ele respirou fundo e soltou uma risada irônica.

—Vou ligar pra essa maluca agora.

Largou as coisas e pegou o celular. Martha saiu do quarto, com cara de sono, pra observar a situação.

—Pode me explicar porque seu filho ta aqui? – meu pai falou, aumentando o tom de voz. Alguém chorou do quarto das crianças e Martha teve que ir até lá, me deixando sozinho com na sala. Meu pai ouvia atentamente ao telefone, olhando pra mim de canto de olho vez ou outra. Rosana deveria estar explicando o que tinha acontecido, e pela cara dele, não estava gostando nada.

—Ele o que?! – se levantou, andando em minha direção, nervoso.

Abaixei a cabeça, envergonhado. Eu sabia que estava errado.  

—Expulso?! – gritou. Me olhou fixamente – Pode deixar esse garoto comigo.

Merda.

Assim que desligou o telefone, só consegui ver meu pai vindo violentamente até mim, e logo senti um tapa na cabeça.

—O que você fez? – não respondi. Outro tapa. – Garoto, não me ignora!

E então ele me deu um soco, bem no olho. Tropecei pra trás e me defendi do próximo soco com o braço, o que o fez segurar meu braço com força, me empurrando contra a parede. Tudo doía da briga ainda, e eu não tinha força suficiente pra me defender.

—Você vai ver se vai fazer isso de novo – ele agarrou meu cabelo – Apronta de novo pra você ver o que eu faço. Eu te mato, garoto! – e me soltou, empurrando minha cabeça contra a parede, o que me fez gritar. Martha foi correndo até a sala ao ouvir o grito, pra se deparar com meu pai, completamente fora de controle, prestes a continuar me batendo. Eu deveria fazer alguma coisa, mas não conseguia.

—Rogério, para! – Martha gritou, de longe.

—Que para o que! Ele tem que aprender. – Me chutou, e eu me encolhi.

—Para, você ta machucando ele!

—Essa é a merda do objetivo.

Os dois bebês choravam com a gritaria, e eu estava lá, encolhido. Comecei a chorar também, não aguentava mais. Martha foi até nós dois a tempo de me segurar antes de eu cair no chão abaixado, o chute tinha pegado exatamente no mesmo lugar que tinha me machucado da briga mais cedo e eu estava sem ar. Ela se colocou entre mim e meu pai, me segurando, e então virou pra trás e lançou um olhar furioso. Rogério murmurou algo e então saiu andando furioso até o banheiro, e bateu a porta.

Eu tinha me ajeitado no chão, sentado, e estava chorando mais ainda. Martha nunca tinha me defendido. 

Ninguém nunca tinha me defendido antes.

—Ele não pode fazer isso. – ela disse, baixo, mas estava tão perdida quanto eu. Eu vi que suas mãos tremiam e então percebi que talvez tivesse sido difícil pra ela também.

—Obrigado. – murmurei, chorando. – Obrigado. De verdade, eu... – solucei.

—Ta tudo bem. Você ta machucado?

Sim.

—Não. Não, é só da briga de mais cedo que ainda dói.

Martha afastou meu cabelo pra olhar meu olho, que estava inchado.

—Vai pro sofá, eu vou pegar gelo pra você.

Mas, antes que ela pudesse chegar a cozinha, a campainha tocou.

“Não atende essa merda!” meu pai gritou do quarto. “Ta ouvindo? Não atende!”

Martha ignorou o aviso. Do sofá, eu conseguia ouvir a conversa com o vizinho.

—A gente ouviu uns gritos. Ta tudo bem? Vocês precisam de ajuda? – uma voz masculina disse. Me estiquei pra ver quem eram.

—Não foi nada. – Martha disse – Só uma discussãozinha, Rogério anda um pouco estressado. Mas obrigada.

Na porta, tinha um homem alto e magro, com cabelos acinzentados e aparentando ter em média uns 50 anos. Do seu lado, uma adolescente gordinha com um cabelo – estranhamente – todo rosa. Ele não me viu, mas a garota viu. Nos encaramos por alguns segundos, e eu sabia que ela provavelmente estava julgando a situação toda, eu também estaria. Desviei o olhar, mas senti que ela continuou olhando. Logo depois os dois foram embora, e a garota de cabelo rosa e olhos escuros não saia da minha cabeça. O jeito que ela me olhou, não sei. Era diferente, não era um olhar agressivo ou com pena. Ela me olhou de uma forma diferente da que me olharam a vida toda, e algo nisso era intrigante. Mas talvez eu só precisasse de um escape pra não pensar no que tinha acontecido.

Adormeci no sofá, com gelo no rosto, e então Martha me acordou.

—Vai dormir no seu quarto. – abaixou o tom da voz - Tranca a porta.

Eu sabia que era por medo. Sabia que os gritos ainda ecoavam pelo silêncio da casa, e nada poderia ser mais assustador que essa sensação.


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