Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 16
Sobre crises dissociativas e tribunais




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“O que é real? ” era a perguntava que ecoava obsessivamente na minha cabeça. Algo dizia:
“Nada.
Nada é real.
Você é maluco, Nicolas. ”
E aquela parecia a resposta mais razoável, então acreditei.
Andando de volta pra casa, tudo ao meu redor parecia ser feito de poeira, incluindo eu. Uma poeira muito fina, que poderia se desfazer a qualquer momento. O mundo perdeu todo seu sentido, literalmente.
Assim que Rosana me contou, não acreditei. Claro que não acreditei, como poderia acreditar que meu melhor amigo, o qual eu conheço desde a infância, na verdade é uma alucinação?
Alucinação. A palavra ficou na minha cabeça. Talvez eu precisasse conversar sobre isso com doutor Luciano.
Talvez eu precisasse ser internado.
Aos poucos, começou a fazer sentido. Conheci Gabriel logo depois que Rogério começou a abusar de mim. No início, Gabriel era mais como um colega de escola que eu via eventualmente e, quanto mais as coisas pioravam, mais ele aparecia.
Ele era meu suporte. Mas não tinha os próprios problemas, parando pra pensar. Era só... Só meu suporte. Quase como se essa fosse sua única função- e na verdade era mesmo.
Assim que tudo começou a fazer sentido, senti a realidade se afastando de mim.
Sentados naquele banquinho, Rosana explicava como não ter me dito aquilo me protegeu, e como ela, na verdade, sempre cuidou de mim.
Não me orgulho da minha reação, mas entrei no modo automático.
— Eu preciso ir pra casa. - murmurei.
Então levantei e fui andando, devagar, tudo parecendo esquisito. Rosana não foi atrás de mim, e a pequena esperança ainda existente de me conciliar com ela se despedaçou.
Estava tão fora de mim que esqueci de Martha e Isabelly, só saí caminhando.
Nem mesmo lembrava o caminho de casa.
Ouvi passos corridos atrás de mim, e assim que me alcançou, vi que era Isabelly.
— Nicolas! O que aconteceu? - perguntou, ofegante de ter corrido, segurando meu braço. Eu parei assim que ela me alcançou e a olhei, de cima a baixo. Usava uma jardineira e uma blusinha amarela, contrastando com seu cabelo rosa, que já estava desbotando. Era tão bonita.
E se não fosse real?
— Como eu vou saber...? - comecei, mas parei. Não sabia como continuar.
A sensação que eu tinha era que não controlava minhas próprias ações, como se nem eu mesmo fosse real.
Martha nos alcançou. As duas falavam comigo, mas eu não ouvia. Ou ouvia e minha mente escolheu ignorar, não sei.
Minhas sobrancelhas estavam franzidas, como se eu tentasse entender algo.
"Vamos, vamos levá-lo pra casa." Martha disse, então as duas caminharam comigo até em casa, Isabelly me segurando pelo braço, como se eu fosse uma criança.
Olhei ao redor. As árvores, as pessoas andando com seus celulares ou seus filhos ou seus cachorros.
Comecei a questionar cada pedaço da realidade, até que nada mais fizesse sentido. Chegando no prédio, subindo as escadas, me senti esquisito de repente. Então sentei.
— Nicolas? - Martha chamou.
Isabelly sentou do meu lado, e então olhou pra Martha.
— Pode subir. Eu converso com ele.
Parecia que não estavam falando de mim.
Eu me sentia desconectado com a realidade, e não sabia como voltar. Não sabia o que fazer.
Estava estático, neutro.
Isabelly respirou fundo e tocou meu braço.
Coloquei minha mão em cima dela, não pra corresponder o toque, mas pra saber se ela estava realmente lá.
— Nicolas, o que foi? - perguntou.
— Eu... Não sei.
O som da minha própria voz soava esquisito.
— Isa... - continuei, mantendo um tom neutro- Como eu vou saber se você é real?
Eu deveria parecer louco. Talvez eu fosse.
— Talvez eu seja maluco.
— Você não é maluco, Nicolas. - ela me repreendeu.
— Você parece tão real. Tudo parece tão real. Mas ele parecia também... Eu não sei mais. Eu não sei mais de nada. E se for tudo mentira?
— Nicolas, eu te amo, mas você não está fazendo sentido nenhum.
— Nada faz sentido nenhum.
A olhei nos olhos, tentando me forçar a me manter na realidade.
— Eu tenho essa ideia estranha - comecei - de que eu não sou mais eu. Não me sinto me controlando. Não sinto nada. Eu não deveria sentir coisas?
—Oh. - ela disse, parecendo entender a situação. - Nick, me escuta. Olha pra mim. Você precisa confiar em mim agora. Você confia em mim?
— Confio.
Ela passou a mão pelo meu rosto.
— Eu sou real. Você é real. - acariciou minha bochecha - Você sente isso?
— Sinto. Mas... Argh! - reclamei. - Eu sou maluco!
— Você não é maluco, Nicolas. Você tem um transtorno. Ele te faz agir de forma não racional às vezes e ta tudo bem.
Apoiei minha cabeça nas mãos e respirei fundo. S
— Eu alucinei meu melhor amigo. - falei, soltando uma risada irônica. O som da frase me vez voltar a realidade. - Eu alucinei meu melhor amigo! - repeti, um nó se formando em minha garganta.
Minha risada se transformou em um soluço e então eu estava de volta a realidade, e a realidade doía. Enfiei minha mão nos cabelos e puxei, com força.
— Nick...- Isa disse. Parecia não saber o que fazer.
Tentei arrancar meus próprios cabelos, ainda meio fora da realidade. Precisava sentir algo. Precisava ser punido, porque sou um idiota que nem sabe o que é real.
Num momento de desespero, Isabelly colocou as duas mãos embaixo das minhas.
Parei imediatamente, contra a minha vontade. Se eu continuasse puxando, a machucaria. Segurei suas mãos, e ela me puxou pra um abraço forte.
Apoiado no ombro de Isa, eu não conseguia respirar de tanto que chorava. Apertei a blusa dela, desesperado.
Ainda tinha medo de que ela não fosse real e que fosse sumir a qualquer momento. Eu não confiava mais na minha própria mente.
Nunca chorei de uma forma tão violenta. Era um choro doído, convulsivo. Desesperado.
Isabelly segurava meus ombros com uma mão e a outra passava pela minha cintura.
— Nick, eu to aqui. - ela disse. - Shhh.
—Eu odeio isso. - murmurei. - Eu sou maluco. Eu não sei mais o que é verdade e o que não é.
— Nicolas, ta tudo bem. Você não ta sozinho nessa.
Aos poucos, o choro foi diminuindo e a falta de ar aumentando. Ela me soltou ao perceber, já que ficar apertado num abraço não parecia a melhor opção pra quem não conseguia respirar.
Ela manteve a mão no meu braço, como se eu fosse cair da escada a qualquer momento.
Então segurou meu rosto com as mãos, de forma que eu a olhasse nos olhos.
— Nicolas. Eu preciso que você respire fundo.
— Não da. - falei, minhas respirações curtas e desesperadas, puxando ar.
— Dá sim. Faz comigo, ok?
Ela respirou fundo, e eu tentei sincronizar minha respiração com a dela, falhando miseravelmente nas primeiras vezes. Mas fui me acalmando, meus pulmões foram encontrando o ar.
— Isso, Nick. - ela sussurrou.
Quando eu finalmente consegui me acalmar, ela me deu um beijo na testa e disse:
— A gente precisa te levar pra casa. Lá, você bebe água, um remédio e descansa. Pode ser?
Concordei com a cabeça, e tive dificuldade em ir até em casa, estava tonto de tanto chorar, mas Isa me segurou e me levou até la.
Sentei na mesa da cozinha de cabeça baixa, cansado e envergonhado. Isabelly parecia assustada, e até se afastou um pouco, mas entendi que deve ter sido ruim pra ela também ter que presenciar eu em tal situação. Martha me deu água e meu remédio, enquanto Isa ficou com os bebês.
Com um nó na garganta e ainda sem acreditar, contei pra elas o que tinha acontecido.
Recebi todo o apoio do mundo. Tanto delas quanto de Jonathan que, assim que soube, foi correndo me ver.
Ele me disse que já sabia. Que tinha medo de me contar e que sentia muito que eu tivesse descoberto daquela forma.
A distância entre nós tinha sumido, e eu mal lembrava do porque estava com raiva.
Doutor Luciano conversou comigo. Disse que, muito provavelmente, eu precisava tanto de apoio na época que meu subconsciente criou Gabriel. Que isso era normal acontecer em casos como o meu.
Também me explicou o que aconteceu comigo logo depois que eu descobri de Gabriel:
— O nome disso é episódio dissociativo.
— Mas isso é normal? Pode acontecer de novo?
— Esperamos que não aconteça de novo. Certo? E sim, é normal em casos de bipolaridade. Mas você está sendo tratado e tem tudo pra melhorar.
Concordei com a cabeça.
Eu estava melhorando, aos poucos. Eu sentia que, de alguma forma, estava ficando melhor. Meu emocional estava ficando menos frágil e eu me sentia descobrindo força e união em lugares que nem sabia que existiam.
E foi preciso de muita, muita força. Porque as coisas não foram fáceis.

Era véspera do meu aniversário e eu estava sentado na sala, tomando conta das crianças pra Martha trabalhar, porque isso que eu fazia agora nas terças, quando ela chegou. Martha abriu a porta, parecendo assustada. Reparei que ela tremia.
Levantei do sofá.
— O que foi?
— Seu pai. - ela disse, o tom urgente - Ele conseguiu um pedido de fiança. Vai ser solto amanhã.
Meu coração acelerou.
— Mas...- tentei argumentar. Minhas mãos tremiam.
Ela respirou fundo, se acalmando.
— Nick, senta ai. Vamos conversar.
Martha parecia ter uma carta na manga, o que me acalmou. Mas parecia ser algo sério.
— Eu abri com um pedido de urgência pra um julgamente contra seu pai. Com as denuncias que fizemos inicialmente. Você sabe o que isso significa?
— Hã... Mais ou menos.
— Significa que eu vou precisar que você testemunhe, Nick.
Concordei com a cabeça, já esperando esse momento.
— Tudo bem. Tudo bem, eu consigo.
Ela sorriu, afetada.
— Tenho orgulho de você, Nick. - fez una pausa - Mas... Vamos precisar de mais testemunhas. Jonathan e... Sua mãe.
— Ah... - foi minha resposta.
— Eu posso falar com ela, se você quiser.
— Não, tudo bem. Eu falo.

Precisei tomar coragem antes de falar com eles. Na verdade, estava mais preocupado com eu ter que testemunhar do que tudo.
— Não sei se consigo. - disse a Isabelly, no terraço. Se encontrar lá e conversar era minha coisa favorita.
Ela me encarou e deu um pequeno sorriso.
— Você consegue.
Então passou a mão pelo meu rosto, e chegou perto, devagar.
"Beijo de boa sorte" sussurrou, antes de encostar os lábios nos meus. Foi tudo o que eu precisei pra me sentir o ser humano mais corajoso desse mundo.
Mais tarde, liguei pra Jonathan, e ao saber que Rosana não estava em casa, fui até lá. Era uma sensação estranha entrar na minha antiga casa, mas não tinha nenhum sinal de que eu já morei lá. Não tinham fotos nas paredes e eu não sei o que aconteceu com os móveis do meu quarto, mas não estavam mais lá.
Aquela casa vazia eu me sentir sufocado, mas estava lá por um motivo.
— Não sei se te contaram...- comecei, sentado no sofá com Jonathan- mas Rogério vai ser solto.
— É, eu sei. Rosana me contou.
Balancei a cabeça, afastando a raiva que tinha ao pensar nela.
— Como você ta? Com ela, quer dizer.
— As coisas estão estranhas. Você sabe que eu não aprovo o jeito como ela te trata e, depois daquilo, não sei... Você pensa em, sei lá, perdoar ela?
Me encolhi, sentindo uma pontada de culpa.
— Eu queria, juro que queria. Eu só... Não consigo.
Jonathan parecia triste. Percebi que talvez algo dele esperava viver em uma família unida, incluindo eu e nossa mãe. A verdade é que eu nunca conseguiria, e acho que ele sabia.
— Mas...- mudei de assunto - não é sobre isso que eu queria falar. Eu preciso de você testemunhe contra Rogério - soltei, de uma vez.
— Uau, hum... Claro. Eu faria qualquer coisa por você, Nick.
Segurei um sorriso, ligeiramente surpreso.
— Você acha que Rosana testemunharia também?
Jonathan coçou a cabeça.
— Não sei... Seria difícil pra ela.
— Eu sei. Vai ser difícil pra mim também. Ela disse que queria arrumar uma forma de compensar por tudo que ela fez, certo? Ta aí. Ta aí o que eu preciso que ela faça.
Ele respirou fundo, desviando o olhar pra TV.
— Eu falo com ela.

Fiquei assistindo Tv com Jonathan, até que Rosana chegou. Parecia agitada, e algo em seus olhos azuis me lembravam os meus, não só pela cor, mas pela loucura neles.
"O que aconteceu?" sussurrei pra Jon.
"Ela não está muito bem desde que soube de Rogério." ele respondeu, baixo.
Demorou pra ela notar que eu estava lá, mas, quando me viu, sorriu.
Eu quis chorar. Se ao menos ela tivesse sido boa comigo antes de... Bem, antes de tudo isso.
— Ah, oi, Nicolas.
Dei um sorriso, sem graça. Martha arrumou sua bolsa e saiu, sem avisar pra onde. Logo depois, fui embora, com um aperto no peito.
No caminho pra casa, só consegui pensar em como eu queria paz. Apenas isso. Queria seguir minha vida sem medo.
Mas, infelizmente, não era hoje que isso iria acontecer. Mesmo sabendo que Rogério só seria solto no outro dia, não pude evitar de andar olhando pros dois lados, o medo falando mais alto.
Eu esperava que o julgamento fosse longo, que eu travasse, chorasse. Esperava que fosse uma das coisas mais traumatizantes da minha vida.
No entanto, ninguém -nem mesmo eu, com minha mente pessimista- previ o que aconteceria.

Iria funcionar assim: Rogério seria solto e levado para o tribunal pra ser jullgado novamente, com um advogado de defesa. Um bom, pelo que me disseram. Martha também contratou uma advogada, uma de suas amigas, já que estava envolvida com o caso.
Fui alertado que me fariam perguntas a fim de me desacreditar por causa das minhas alucinações e do meu diagnóstico. Também fui alertado que não seria nada fácil e que, no final, o resultado poderia ser injusto.
No entanto, o que me deixou mais nervoso foi o fato de ter que estar no mesmo ambiente que meu pai de novo. Junto com minha mãe. Seria ruim para os dois e seria mil vezes pior pra mim.
Eu tremia só de pensar.

Era de manhã e eu estava tão ligado com o julgamento que mal me toquei que era meu aniversário, até que Jonathan, assim que me viu, me abraçou.
— Feliz aniversário, maninho. - falou, baixo. Eu sorri, e Isa pegou na minha mão e a apertou. Martha deixou os bebês com a irmã e, então, estávamos todos prontos.
— Vai dar tudo certo. - ela disse - Eu prometo que não vou deixar nada acontecer com vocês. - então me olhou - Principalmente com você. Feliz aniversário, Nicolas.
Nos abraçamos e fomos de carro até lá. Eu tinha esse frio esquisito na barriga Era como fosse a batalha final, como se, depois daquele dia tudo fosse acabar e eu finalmente iria poder me livrar do passado. Com Rosana testemunhando, eu sentia que, eventualmente, conseguiria perdoar ela. Não sabia se a deixaria de volta na minha vida, mas talvez algo em mim deixasse pra lá tudo o que aconteceu. Com Rogério definitivamente preso, estaríamos em paz, e eu poderia focar no que eu realmente queria: a garota de cabelos rosas que segurava minha mão. E em melhorar.
No futuro, eu via esperança. No entanto, tudo mudou.
Chegamos na corte ao mesmo tempo que Rogério, acompanhado de seu advogado, e Rosana. Os dois se olharam e eu vi o medo nos olhos dela. Novamente, suas reações pareciam com as minhas.
Apertei a mão de Isabelly e ela, como resposta, encostou o rosto no meu ombro.
Nos filmes, quando algo muito importante está prestes a acontecer, geralmente tem toda uma espera, um momento de tensão antes da ação. Geralmente há um aviso.
Na vida, não existem avisos.
Tudo aconteceu rápido demais e sem que ninguém esperasse. Naquele clima tenso, enquanto entrávamos, eu vi Rosana tirar da bolsa uma arma e, rapidamente, apontar pro meu pai.
Dois seguranças que estavam do lado de dentro foram correndo, mas não deu tempo.
Quando vi, Rogério estava no chão, um tiro na cabeça.
Meu impulso foi proteger Isabelly. Coloquei meu corpo contra o dela e a abracei, enquanto Rosana virou o olhar pra mim.
Tive medo que ela fizesse algo comigo. Ela apenas apontou a arma pra própria cabeça, e eu não consegui desviar o olhar a tempo de não ver minha própria mãe se matando.


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Notas finais do capítulo

Bom, gente, depois desse capítulo vão ter mais dois e um epílogo. Já está tudo pronto e eu to me segurando pra não sair postando tudo de uma vez hihi Espero que vocês estejam gostando da reta final da história.



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