Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 15
Sobre tentativas de redenção




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/764867/chapter/15


Jonathan se ajeitou na cadeira e eu senti minhas mãos tremendo.
— Você sabe a história de como Rosana conheceu meu pai, certo?
Assenti com a cabeça. Se tem uma coisa que ela não parava de falar era sobre o pai de Jon, o Jonathan verdadeiro.
Jonathan, que morreu em combate antes do filho nascer. "Corajoso como você, meu filho." ela dizia a Jon. E eu observava de canto, como sempre.
— Mas já parou pra pensar - ele continuou - que nunca soubemos como ela conheceu seu pai?
— Já. Já parei pra pensar nisso. Penso que os dois deveriam ter se amado muito pra ela aturar ele até o ponto que ele chegou. Talvez ele tenha sido bom algum dia.
— Quando ela ouviu sobre você ter denunciado ele, resolveu me contar essas coisas.
— E...? - perguntei, nervoso por respostas.
— Nicolas, calma. Isso não é fácil de contar e não vai ser fácil pra você ouvir. - respirei fundo e esperei enquanto ele formulava as palavras - Nick, eu nunca soube dessa parte, mas Rogério costumava ser melhor amigo do meu pai.
Franzi as sobrancelhas, nada daquilo fazia sentido.
— Belo melhor amigo esse. - murmurei. - E bela esposa, casando com o melhor amigo do falecido marido.
— Será que tem como você parar de julgar e ouvir? - Jonathan falou, aumentando o tom de voz. Não sabia porque ele explodiu, talvez fosse a menção ao pai dele.
— Desculpa. - falei, sinceramente.
— Enfim... A questão é: muito antes de você nascer, Rogério ja era um merda. Ele se aproveitou do momento da perda que nossa mãe tava passando e aí... - olhou pra baixo - E aí ele estuprou ela.
O quê? Não. Nada daquilo fazia sentido.
— Mas...mas ela casou com ele.
— Porque ela ficou grávida, Nicolas.
—De mim. - conclui, sentindo o peso nas minhas costas.
— De você.
Algo em minha cabeça gritava que eu era o culpado de tudo aquilo, e eu não conseguia acreditar nisso.
Não conseguia acreditar que eu não era só fruto de um casamento ruim- eu era fruto de uma violência.
Me senti podre e nojento, como se eu fosse a pior pessoa do mundo. Um peso.
Ao mesmo tempo, muita coisa fazia sentido.
— Mas... Mas porquê...? - falei, mas as perguntas sumiram.
— Nick, eu sinto muito. Não é sua culpa.
— É claro que é! - me exaltei.
— Nick, vamos raciocinar aqui. Dizer que é sua culpa seria como dizer que você teve uma escolha ao nascer. A culpa é daquele desgraçado, que arruina a vida de todo mundo que chega perto.
— É por isso que ela não gosta de mim?
— Não fala assim, ela gosta de você. Você é filho dela.
— Jonathan, você sabe que ela nunca agiu como uma mãe pra mim. Me diz o que ela fez por mim durante a vida toda? Olha a cicatriz nas minhas costas e me diz que ela gosta de mim. Ela tentou me matar!
Eu estava prestes a explodir, a raiva aumentando gradualmente.
— Você ta certo. Me desculpa. Agora que eu sei disso tudo, eu acho que ela simplesmente... Enlouqueceu.
— Mas ela sempre foi boa pra você.
Jon riu.
— Boa? Ela me controla vinte e quatro horas por dia e eu nunca soube como me soltar das rédeas dela. Você se lembra como é quando eu sumo por algumas horas? Ela surta. Diz que eu vou abandoná-la como seu pai e meu pai fizeram.
—Sim. Sim, eu me lembro.
Eu cresci sem mãe. E Jon cresceu com uma mãe que controla cada segundo de sua vida. Ironicamente, as duas são a mesma pessoa.
—Jon? - chamei. - Se ele fez o que fez com Rosana. E comigo. Por que não com você?
Ele balançou a cabeça.
— Não sei.
Eu vi Jon evitando meu olhar e sabia que estava mentindo.
— Você sabe. Jonathan, eu tenho o direito de saber.
— Eu não to mais falando com Rosana depois que eu descobri. - ele falou, juntando as sobrancelhas. Era palpável o quanto era difícil pra ele ser o mensageiro de tantas coisas ruins. - Eles fizeram um trato. Rogério ficava longe de mim, ela não o denunciava sobre você.
Senti o ódio pulsando em mim. Tentei contê-lo, mas era mais forte que eu.
— Então é isso que eu sou? A porra de uma moeda de troca?
— Nick, você ta gritando.
— É claro que eu to gritando! Eu odeio essa mulher. Eu te odeio. Vai embora!
Jonathan parecia surpreso. Eu estava chorando e gritando, a velha loucura que tinha voltado pra dar oi.
Uma enfermeira apareceu e aplicou algo na minha veia, e eu não tinha forças pra resistir. Mal conseguia mexer o braço. Senti tudo repuxar e então apaguei.
Quando acordei, Jonathan não estava mais lá.
Era muita informação pra processar. Eu sentia muita raiva de Rosana e, ao mesmo tempo, um pouco de empatia por ela. Não sabia dizer.
Isabelly estava lá. Provavelmente sabia que eu tinha surtado um pouco, os médicos devem ter contado.
— O que aconteceu? - perguntou, afastando meu cabelo da testa.
—Não quero falar sobre. - respondi, tentando soar o menos agressivo possível.
Minha cabeça parecia que ia explodir.
— Tudo bem. - ela disse, então eu virei pro lado, mantendo meu corpo na direção de Isa, e fechei os olhos.
Eu iria contar pra ela, claro. Só não agora. Agora eu precisava respirar fundo e processar as informações.
— Eu briguei com Jonathan. - falei, abrindo os olhos e suspirando.
— Por quê?
— Longa história. Não foi bem uma briga, eu me irritei e gritei com ele. Me sinto péssimo.
Ela deu de ombros.
— Pede desculpas pra ele, se você achar que deve.
— Quando ele voltar aqui, eu falo.
— Quando você vai pra casa?
Eu fiz um mínimo movimento com o braço, que ja não doía mais tanto.
— Logo, acho. Talvez em menos de uma semana. Meus movimentos tão voltando ao normal, mas acho que vou precisar de fisioterapia. - falei, desanimado.
— Você vai ficar bem, isso que importa.
Concordei, e repeti pra mim mesmo: eu vou ficar bem.
Na minha mente catastrófica, era difícil de acreditar nisso, mas me forcei. Era o único jeito de seguir em frente.
Embora Rogério estivesse preso, eu ainda sentia medo. O medo ainda estava em todo lugar.
—Tem como fazer um favor pra mim? - pedi.
— Fala.
Tirei o telefone do bolso e a entreguei.
— Liga pro Jonathan? Eu não consigo mexer no telefone direito com esse braço.
Ela balançou a cabeça e digitou a senha no meu telefone, que ela sabia de cor, então colocou pra chamar e me entregou.
Por impulso, foi segurar com o braço direito, mas logo me contive. Parecia uma criança traumatizada.
Segurei o telefone com o braço bom e esperei atender.
Mas quem atendeu não foi Jonathan.
— Alô? - ela disse.
Faziam meses que eu não ouvia a voz de minha mãe. Meu coração estava acelerado e eu não ousei pronunciar nenhuma palavra.
— Nick? - ela disse. - Nicolas, oi. Jonathan saiu e deixou o telefone em casa.
— Hã...- gaguejei - okay. Então... Tchau.
—Nicolas, espera. - ela disse. Era esquisito Rosana se dirigir a mim diretamente, já que tudo que ela sempre fez foi me ignorar. - Eu preciso conversar com você.
— Sobre o quê?
— Eu prefiro que seja pessoalmente.
"Então agora você quer me ver?" pensei.
— Não sei, não.
— Nicolas, é importante. Eu sou sua mãe e to pedindo pra você vir me ver.
Hesitei por uns segundos.
— Pode ser na praça? Perto da escola.
Não queria ir até minha antiga casa. Na verdade, não queria vê-la, mas também não sabia como dizer não.
— Pode. Quando?
— Semana que vem.
—Obrigada, filho.
Filho?
—Tchau.
E então desliguei e guardei o telefone, perplexo.
— Isa? - chamei, um pouco tonto. - Minha mãe quer me ver.
Ela franziu a testa.
— Eu não sei muito sobre a sua mãe. - admitiu - Mas to assumindo que vocês não se dão muito bem.
Soltei uma risada irônica.
— Ela me expulsou de casa.
Isabelly parecia surpresa.
— Mas... Por que ela quer te ver, então?
Balancei a cabeça negativamente.
— Não sei. Esse é meu medo.

Fiquei no hospital por mais ou menos, mais uma semana e, pelo que percebi, todos estavam esperando que eu surtasse de novo. Doutor Luciano apareceu lá duas vezes e disse que eu deveria começar minhas consultas com a psicóloga, ao qual eu concordei. Marcamos pra alguns dias depois de eu sair do hospital, e eu estava ansioso. Isabelly pareceu perceber que tinha algo de errado, porque estava duas vezes mais cuidadosa com o que falava perto de mim.
Eu me sentia distante dela e, principalmente sozinho. Jonathan não apareceu e Martha estava ocupada com os bebês, enquanto que Isabelly mal sabia sobre as coisas que eu tinha descoberto. Mantive tudo aquilo preso na garganta e estava tudo se juntando e se tornando maior. Eu queria, claro, contar pra Isa, só não sabia como exatamente.
Mas eu não surtei. Chorei bastante, e me senti muito sozinho, mas aquele era o máximo de controle que eu tinha sobre meus sentimentos em muito tempo.

Quando saí do hospital, tive que confrontar mais uma coisa: voltar a escola.
— Acho que você já ta bem o suficiente pra voltar, Nick. - Martha disse.
Me senti nervoso e agitado só de pensar em dar as caras depois de quase um mês sem ir, juntando a época que estive mal e agora isso.
—Mas... - argumentei- já ta no final do ano.
— Doutor Luciano tem um atestado pra você.
Me remexi na cadeira da cozinha, os dois bebês no meu colo.
— Não é isso, eu só... Não to pronto. Não posso fazer o terceiro ano de novo que vem? Provavelmente vou repetir mesmo.
— Nicolas, suas notas estão razoáveis.
Olhei pra baixo, respirando forte.
— Eu não to pronto. - repeti.
— Vamos fazer o seguinte - ela disse - você conversa com a psicóloga e decide se não quer mesmo. Se você ainda quiser voltar só ano que vem, tudo bem então.
Respirei fundo, uma onda de alívio percorrendo todo meu corpo.
— Mas - ela continuou - vai ter que se dedicar ao dobro ano que vem.
— Eu vou. Prometo.
Gabi riu, brincando com meu cabelo.
No andar de baixo, eu conseguia ouvir o cachorro de Isabelly latindo. Era bom estar em casa de novo.
Fiquei com os gêmeos por um tempo, até que deu a hora de ir ver Rosana.
— Nicolas? - Martha chamou, enquanto eu me arrumava - Você não acha melhor eu ir com você?
— Ta tudo bem, Martha. Eu não vou surtar. - falei, achando a preocupação dela até que engraçada.
Mas eu também estava com medo, e considerei sériamente a proposta dela.
— Você me espera na loja de sorvete lá do lado? - falei, reconsiderando minha resposta.
Ela sorriu e concordou.
— Vai ser bom sair com os bebês.

Fomos então, eu, ela, Isabelly e os gêmeos num carrinho de bebê duplo que era a coisa mais fofa que eu já tinha visto. Eu não estava mais nervoso, e grande parte disso era porque tinha eles ao meu lado.
Fui andando paralelo a Isabelly, e tinha a sensação que esquisita que faltava algo. Comecei a reparar em como nossas mãos estavam perto uma da outra, e quase estiquei os dedos pra encostá-la. A vi fazendo o mesmo umas duas ou três vezes durante o caminho, até que, num impulso, apenas encostei em sua mão. Foi automático, assim que se encostaram, se entrelaçaram, quase como se nossas mãos tivessem vida própria.
Nos olhamos e sorrimos. Segurar a mão de Isa era a melhor coisa que eu tinha feito em um bom tempo. Quis beijá-la novamente. Teria beijado, se estivessemos sozinhos. Prometi pra mim mesmo que a beijaria na próxima oportunidade.
E foi assim, sorriso no rosto, que me desprendi das duas e fui caminhando em direção a Rosana.
Lembrei da minha conversa com Jonathan e senti a raiva entrando em mim. Respirei fundo.
Precisava me manter calmo.
Procurei o olhar das meninas na sorveteria de frente a praça, mas ja estavam dístraidas.
Então tomei coragem e sentei do lado de Rosana, num banquinho de madeira.
— Olá. - falei, segurando um braço contra o outro, nervoso.
— Que bom que você veio. - ela disse.
Eu estava me esforçando pra ser o mais educado possível.
— Por que...?
— Porque eu quero conversar com você. Como vai a escola?
— Sem enrolação. - a cortei. Ela nunca se importou, nem nunca vai se importar, sobre essas coisas.
—Nicolas, eu queria te pedir desculpas. Rosana tocou meu braço, e eu puxei pra longe.
Eu ri, ironicamente.
— Desculpas não vão consertar as coisas.
— Eu vi que você denunciou Rogério. Eu queria ter tido essa coragem.
Balancei a cabeça, achando a situação toda irônica.
— É, mas não teve. Você deixou ele fazer o que quiser comigo durante minha maldita infância toda!
"Mantenha a calma, Nicolas." me lembrei. Respirei fundo novamente.
Rosana começou a chorar.
—Eu realmente sinto muito, filho. Eu queria que tivesse alguma forma de fazer você me perdoar. Tem tanta coisa que eu fiz que não deveria ter feito. Tanta, tanta coisa. Começando por te mandar embora. Vou arrumar uma forma de te compensar, eu prometo.
Me mantive calado, não queria dizer
nada. Naquele momento, me senti horrivel por simplesmente não querer perdoá-la. Não queria.
Rosana se acalmou um pouco, então disse:
— Nick, se você quiser voltar... As portas de casa estão abertas pra você. Você precisa de uma mãe.
— Não preciso! - aumentei o tom de voz. - Nunca precisei. Nunca nem soube o que é isso. Sabe quando eu descobri o que é ter uma mãe, Rosana? - fiz uma pausa, controlando meu tom - Há pouco tempo. E não foi com você!
—Me dá uma chance, Nicolas. - ela pediu. Implorou, quase. - Eu posso ser tudo isso. Eu sou sua mãe.
Eu ri irônicamente.
— Você nunca fez nada por mim.
— Eu te protegi durante todos esses anos! - ela soltou.
— Me protegeu? De quê? Porque do meu pai que não foi.
— Quer saber? - ela disse, limpando as lágrimas. - Talvez seja a hora de você saber mesmo.
Me desarmei. Saber o quê?
— O quê?
Ela me olhou. Não tinha mais o olhar de antes, aquele que pedia desculpas. Sabia que qualquer coisa que ela falasse seria pra me machucar.
— Sabe seu amigo Gabriel?
Me assustei, ajeitando a postura.
— O quê? Você viu ele? O que você fez com ele?
— Nicolas, - ela disse, fria - nunca teve nenhum Gabriel.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Campo de Girassóis" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.