Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 13
Sobre invasão




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Quem registrou o boletim de ocorrências foi um delegado mal-humorado, que parecia que não queria estar trabalhando. Ele me fez uma série de perguntas, e eu honestamente só queria sumir.
Tremia o tempo todo e me senti tão fora do ar que mal conseguia sentir as palavras saírem da minha boca.
—Quantos anos você tem?
—17.
—Quando o crime ocorreu?
Me esforcei pra lembrar.
—Eu tinha 4 anos na primeira vez.
—E a última, quando foi?
—6 dias atrás.
Eu estava no modo automático. Não me permiti prestar atenção na realidade, ou surtaria. Só respondi as perguntas como se não estivéssemos falando de mim. Como se eu tivesse contando uma história, e não algo que destruiu boa parte do meu psicológico.
Apesar disso, ainda tremia, e Isabelly manteve as mãos em meu braço. Jonathan observava tudo atenciosamente, os olhos semicerrados.
—Você provocou isso, de alguma forma?
Eu me assustei ao som da pergunta. Me encolhi, ao que Martha interrompeu:
—O senhor não tem nenhum direito de perguntar isso a ele.
Mas a pergunta ficou na minha mente, mesmo depois que as perguntas acabaram.
No final, pra minha surpresa, Martha disse:
—Eu quero abrir outro boletim contra a mesma pessoa, se possível.
—Pelo que?
—Violência doméstica. – então nos olhou e disse: - Vocês me esperam no carro?

Isa e Jonathan quase que tiveram que me arrastar até o carro, e eu digo isso porque estava completamente fora do ar. Parecia que tudo ia se dissipando, e eu pensei que fosse desmaiar. Talvez minha pressão tivesse abaixado de puro nervosismo. Entrei no carro, sentei e apoiei a cabeça entre as pernas. Tive que fazer um relato completo do que aconteceu, e parecia que aquilo tinha me deixado fisicamente fraco.
Mal pude prestar atenção no fato de que Martha estava lá dentro naquele exato momento, denunciando o próprio marido por violência doméstica.
— Ta tudo bem? - Isa perguntou.
— Não. - respondi, sincero. Minha cabeça latejava.
— Isso é tudo tão surreal. - ela falou, baixo. Jonathan concordou.
Eu não poderia entendê-los porque sempre foi muito real pra mim. Sempre foi toda a realidade que eu conheci.
Ficamos em silêncio, os três com coisa demais na cabeça pra falar algo. Isabelly manteve a mão nas minhas costas, passando o polegar suavemente no meu ombro, mas parecia estar em outro mundo. Reparei que ela não tirava os olhos de dentro da delegacia, estava preocupada com Martha. Acho que todos nós estávamos.
Quando ela voltou, seu rosto possuía um semblante completamente diferente do de antes. Comigo, ela tinha um semblante feroz, como se estivesse pronta pra voar no pescoço de alguém pra me defender, mas, agora, sua expressão era apenas de dor. Entrou em completo silêncio, apoiou as mãos no volante e respirou fundo.
— Como você ta? - Jonathan perguntou, quase num sussurro.
— Ta tudo bem, gente. - ela disse - É sério. Eu e o Nick vamos ter que ir pra perícia. Mas eu deixo vocês em casa.
Grunhi, reclamando.
Levantei a cabeça, sentindo suor escorrendo pelo meu rosto.
— Precisa ser agora?
Eu não estava nada bem.
Martha olhou pra mim, e seu olhar me pedia desculpa.
— Precisa, Nick, sinto muito.
Assenti com a cabeça.
— Tudo bem. - falei, baixo.
— Eu deixo vocês em casa. - ela disse a Jonathan e Isabelly. Eu não queria que eles fossem embora, mas também sabia que não podiam ficar o dia inteiro comigo. Jonathan tinha faculdade e Isa... Bom, Isa já tinha perdido o horário da escola.
A olhei, e nossos olhares se conversaram. Ela queria ficar também.
—Eu poderia ir com vocês. - ela sugeriu.
— Isa, meu amor - Martha disse - eu agradeço muito. Mas é longe, seu pai não iria gostar. E lá é um lugar complicado, não sei se seria bom pra você.
E fazia sentido. Eu não deveria expor Isa a esse tipo de situação.
— Eu posso ligar pro meu pai.
— Você tem certeza?
Isabelly olhou pra mim, como que pedindo permissão pra ficar. Eu não concordei, estava receoso. Mas também não discordei.
Não sabia o que era maior: meu medo de incomodar ou meu medo de ficar sozinho.
— Tenho. - ela disse, e eu não sabia se me sentia grato ou se implorava pra ela não ir.
— Eu queria muito ficar com você, maninho - Jon disse - mas eu já faltei a faculdade tipo umas quatro vezes essa semana.
— Você não deveria ter faltado. - respondi, baixo.
Estava começando a me sentir um peso novamente. Queria gritar e surtar e afastar todos, mas só fiquei quieto.
Martha deixou Jonathan em casa e Isabelly foi até o IML com a gente. Tivemos que parar no meio do caminho pra comprar remédio, porque ficava há duas horas de distância e eu estava enjoado. Eu estava tudo, menos bem.
Eu e Isabelly fomos conversando, baixinho, abraçados. A conversa sussurrada me dava a impressão de que não tinha mais ninguém no mundo.
Quando o enjoo aumentou, eu fechei os olhos e fiquei quieto, encostado no ombro de Isa.
Talvez ela tivesse pensando que eu estivesse dormindo, porquê começou a conversar com Martha.
— Você é uma ótima mãe. - Isa disse.
— O que?
— Você denunciou Rogério por causa do Nicolas. Quanto mais denúncias contra a mesma pessoa, maiores as chances dela ser condenada. Não é?
— É. Como você sabe?
— Família complicada. Mas, enfim, eu sei que você não é mãe dele, mas... Não sei, é como se fosse. Eu nunca nem ouvi falar muito da mãe dele mesmo.
Eu ouvia tudo em silêncio, com medo de me mexer e elas verem que eu estava acordada.
— Quando eu me casei com Rogério, Nick tinha uns 13 anos. Quando eu tentava falar com Rosana, a mãe dele, ela me atendia só pra me xingar, e não me deixava nem falar nada. Ele chegava em casa, nos finais de semana, e nunca respondia quando eu perguntava da mãe. Ele nunca respondia muita coisa, não deixava ninguém chegar perto dele.
Lembrei de todas as tentativas de Rosana de fazer amizade comigo, no início. Eu sempre a cortava, e agora me arrependo amargamente de não ter deixado ela entrar na minha vida antes.
Isabelly parecia estar entretida, fazendo perguntas sobre minha infância- ou a parte que Rosana sabia.
— Ele sempre foi muito encrenqueiro. - ela disse, rindo. - A gente sempre pensou que ele fosse só... Sei lá, só encrenqueiro. Nicolas era um pré-adolescente um tanto quanto violento. Eu não tenho orgulho disso, mas me afastei dele, porque foi o mais fácil a fazer. Ele deveria ter recebido um diagnóstico e um tratamento muito, muito antes.
— Eu acho que a vida foi injusta com ele. - Isabelly concluiu - E com você.
— A vida é injusta com todo mundo. Não é?
— É. - Isa falou, e então eu lembrei da mãe dela. Em certo ponto, tínhamos uma coisa em comum: nunca tivemos uma mãe. Ou pelo menos não uma que agisse como mãe. A diferença é que a dela não podia, a minha só não quis.
— Mas talvez agora as coisas mudem. Não sei, tenho alguma esperança. Rogério foi denunciado e Nicolas tem um diagnóstico.
— Eu espero que as coisas melhorem. Vocês merecem.
— Sabe - Rosana disse, mudando de assunto um pouco - se eu fosse a mãe do Nicolas, eu ficaria feliz em ter você como nora.
Isabelly riu, meio sem graça e eu não pude evitar um sorriso, que passou despercebido.
Fomos em silêncio o resto do caminho, e eu consegui dormir um pouco.
Quando chegamos no IML, eu era todo pânico. Estava tenso e andava como se fosse desabar a qualquer segundo. Martha manteve a mão nas minhas costas e eu percebi que Isa se afastou um pouco, se retraiu. Talvez também estivesse assustada.
Isabelly ficou numa sala de espera quase vazia, e eu fiquei com medo de deixá-la sozinha.
— Você vai ficar bem aqui? - perguntei. Ela deu de ombros.
— Não sei.
— Qualquer coisa, vai lá pra fora, ok? Ou me liga.
— Tudo bem.
E então saí, e algo em mim se perguntava quando criamos esse instinto protetor um com o outro.

O exame de corpo de delito foi uma das piores coisas que fiz na minha vida. O médico era velho, com cabelos brancos e até que bem simpático, mas isso não anulou o fato de que era uma experiência horrível. Esses estavam, literalmente, procurando indícios de violência e estupro em mim, o que não poderia me fazer sentir mais sujo e nojento.
Meu corpo era cheio de marcas, várias feitas por mim, mas muitas eram cicatrizes de Rogério, Rosana e das brigas em geral. A mais recente era, provavelmente, o corte do vidro, que já estava fechando mas ainda estava bem exposto. Eu tinha algumas marcas roxas no braço de terça passada e também um corte na cabeça.
Mas nenhuma marca se comparava com a enorme queimadura que eu tenho nas costas. Ela pega do meu ombro e vai até em baixo, formando uma linha grossa e disforme, algumas partes piores que as outras. Ganhei esse presente de Rosana quando tinha apenas um mês e ela tentou me jogar fora numa fogueira, e Rogério me salvou. Sei disso porque ele fez questão de me contar e jogar na minha cara o quanto é ótimo por ter me ajudado. Tipo "parabéns por ter tirado seu filho recém-nascido de uma fogueira, só uma pessoa muito exemplar faria isso". A auto consciência de todas essas cicatrizes e marcas só me faziam querer escapar do meu próprio corpo.
O exame demorou muito mais do que deveria, isso porque eu me esquivava e me encolhia, tremendo, toda vez que o médico ia encostar em mim. Tudo era vergonhoso e invasivo, e eu queria vomitar.
Quando saí de lá, estava fora do ar de novo. Martha estava na sala de espera também, e Isabelly apoiava a cabeça em seu ombro.
— Como foi? - Martha perguntou, e eu sentei do seu lado em silêncio. Não queria falar sobre.
O cabelo de Isa hoje estava numa trança bem feita, cheia de florezinhas enfiadas, ao que ela desmanchava lentamente. Então levantou, o elástico que prendia a ponta de sua trança enfiada no braço e foi até mim.
— Vira pra lá. - falou. E então prendeu meu cabelo num rabo de cavalo, puxando a franja pra trás. Eu estava suando e meu cabelo estava começando a grudar no rosto.
— Obrigado. - falei.
Ela deu de ombros e foi pentear o próprio cabelo, que estava um ondulado engraçado por causa da trança recém desmanchada. Reparei que ela guardou as flores no bolso da calça, e achei aquilo simplesmente adorável. Num outro universo, eu e ela estaríamos juntos agora, fazendo coisas de casais e indo em lugares que casais vão.

Por sorte, o caminho de lá até a casa de Ana era rápido, porque eu não sei se aguentaria mais muito tempo no carro.
Ana era baixinha e tinha cabelos encaracolados, a pele cor de chocolate, igualzinho Martha. A casa era grande e tinha até um quarto de hóspedes, onde eu e Martha ficaríamos.
— Eu trouxe algumas roupas suas. - ela disse. - Daqui a pouco você toma um banho.
— Vou fazer alguma coisa pra gente comer. - Ana disse - Se vocês quiserem assistir TV, tem uma lá no quarto.
Os gêmeos estavam ocupando a TV da sala, junto com uma menina de uns 7 anos, Caroline, filha de Ana.
Eu e Isa ficamos assistindo filme sentados no chão do quarto, encostados na cama, com ela deitada no meu ombro. Estávamos assistindo Harry Potter - escolha dela- até que eu comecei a me sentir esquisito de novo. As memórias de hoje não queriam me deixar em paz.
— Espera aí. - falei, e ela levantou a cabeça - Vou buscar um casaco.
Tive que segurar na parede enquanto andava, já que estava tonto e tremendo. Procurei algo que servisse no meio das roupas que Martha trouxe e achei um moletom. Coloquei e sentei do lado de Isa novamente. Ela esticou o braço e eu me apoiei nela, ao que a garota me envolveu, tentando me esquentar.
— Eu realmente não to com frio. Você ta bem? - perguntou, e eu menti:
— Sim.
Isa me soltou de seu abraço e colocou a mão na minha testa, devagar.
— Você ta com febre. - afirmou. Não respondi, só deitei em seu ombro. - Talvez você devesse ir dormir pra ver se melhora.
— Não, vamos terminar de ver o filme. - insisti.
Comecei a me sentir gelado e com calor ao mesmo tempo, se é que isso é possível. Uma memória indesejada de Rogério invadiu minha mente e eu me senti sujo e enjoado de repente. Tinha ódio de como minha mente conseguia estragar os momentos mais normais.
Respirei fundo, tentando me manter na realidade. Talvez a febre estivesse mais alta do que eu pensei. Senti minha garganta arder numa onda de náusea e me soltei bruscamente de Isa.
— Nick?
Antes que eu pudesse fazer algo, vomitei em cima da minha calça jeans. Algo em mim gritava "você é sujo, é isso que você é". Fui correndo até o banheiro do quarto e me abaixei no vaso, agradecendo ao universo por meu cabelo ainda estar preso. Isa foi atrás de mim e, como não tive tempo de fechar a porta, entrou.
Vomitei novamente antes que tivesse tempo de olhá-la, e ela se abaixou e colocou a mão nas minhas costas.
Tudo foi muito violento. Flashbacks me invadiam e eu vomitava em resposta, era como se meu corpo todo reagisse ao acontecimento.
— Faz isso parar. - murmurei, ao ponto de chorar.
— Vai ficar tudo bem. - prometeu, esfregando minhas costas.
Quando parei de vomitar, me sentia cansado e nojento. E fraco. Isabelly ficou comigo por um tempo e então disse:
— Nick, eu vou pegar outra roupa pra você e avisar a Martha que você não ta bem. Ok?
—Não me deixa sozinho. - reclamei. Tinha medo dos flashbacks voltarem.
— Vai ser rápido, prometo.
Quando voltou, ela trazia roupas limpas, uma toalha e um copo de água. Me esforcei ao máximo pra beber a água, embora minhas mãos tremessem. Isabelly manteve sua mão ao redor da minha, me impedindo de derrubar o copo.
— Obrigado. - murmurei.
— Você acha que consegue tomar um banho?
Assenti com a cabeça, me sentia um pouco melhor agora que minha mente tinha parado de me torturar, apesar da febre.
—Vou te esperar no quarto. Qualquer coisa, me chama. Ok?
—Ok.
Isa me deu um beijo na testa e saiu.
Tomar banho não foi tarefa fácil, mas eu me senti mil vezes melhor quando acabei, com uma roupa limpa e um casaco. Mas também me sentia extremamente fraco e fui direto pra cama. Isa passou a mão pelo meu cabelo molhado.
— Eu vou ir embora daqui a pouco, assim que você dormir. - avisou - Descansa, ta bom?
— Ta. - concordei - Obrigado. Por cuidar de mim. Por tudo.
— Obrigada por cuidar de mim também. - respondeu, afastando meus cabelos da testa. - Acho que fazemos uma ótima dupla, Nick.
Eu caí no sono rápido e acordei algumas horas depois, encharcado em suor, mas sem febre. Estava de noite, e eu consegui levantar sem tremer ou ficar tonto. Fui até a sala.
— Como você ta? - Martha perguntou.
— Melhor.
— Tem remédio aqui, se você precisar. - Ana complementou.
— Obrigado.
Tirei o casaco e sentei no tapete da sala com as três crianças.
Pensei que a pior parte já tinha passado, até que ouvi um barulho no portão da casa. O cachorro de Ana, um pastor alemão gigante, começou a latir agressivamente da janela. Elas mudaram a TV pro canal da câmera que tinha vista pro lado de fora da casa e lá estava ele:
Rogério, xingando aos montes e socando o portão.


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