Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 12
Sobre surtos e decisões difíceis




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—Eu não sei quando começou. - Disse a Jon, sinceramente. O ar estava pesado e parecia que eu ia me sufocar em minhas próprias palavras. - No início, era só nos finais de semana na fazenda. E então começou a acontecer dentro de casa mesmo e, não demorou muito pra que se tornasse algum tipo de punição. Brigou na escola? Pro porão. Respondeu sua mãe? Pro porão. "Pro porão" ele dizia. E eu obedecia. Por que merdas eu obedecia?

Comecei a chorar. Minhas mãos tremiam, e minha garganta ia se fechando enquanto eu falava. Parecia errado compartilhar aquilo com alguém, principalmente porque tinha jurado pra mim mesmo que nunca falaria sobre nada daquilo. Eu queria esquecer.

Jonathan ouvia atenciosamente, as sobrancelhas juntas, como se estivesse se segurando pra não chorar.

—Teve uma vez – continuei, entre o choro – Teve uma vez que...

Não conseguia terminar as frases. Jon me abraçou, forte.

—Ta tudo bem, Nick. Você ta seguro agora. – falou.

Mas eu não me sentia seguro.

—Teve uma vez que ele levou os amigos.

—Ah não.

—Eram três.

—Meu Deus, não. – Jon murmurava. – Quantos anos você tinha, Nick?

—10.

—Como eu nunca soube de nada disso? Nicolas, eu... meu Deus.

Jon parecia totalmente sem reação, os olhos agora levemente arregalados, sem emoção nenhuma.

Soltei um soluço estridente, e ele me apertou mais forte.

—A mãe sabia. – falei, baixo.

—O quê? – Jon falou, incrédulo – Ela sabia?

—Sim. Ela viu uma vez. Abriu a porta do porão, olhou, deu meia volta e saiu. Ela sempre soube, Jon, e mesmo assim deixou.

—Nicolas, eu... – suas palavras se perderam.

As lembranças faziam eu querer gritar e espernear, como uma criança mimada. Chorei por algum tempo, e então ouvi Jon murmurar:

—Isso explica tanta coisa.

Me ajeitei em seus braços.

—O quê?

—Você sumia ás vezes. E eu ouvia... ouvia você gritar. Eu pensava que ele te batia, mas...

—Mas não era só isso. – completei, sem coragem de olhá-lo nos olhos. Algo em mim tinha passado de estágio do medo de falar, e agora eu só queria falar sem parar. Desabafar. Mas não conseguia, era demais pra colocar em palavras.

—E você se retraí quando alguém te toca, - ele continuou – se encolhe. Eu sempre achei isso estranho. Tem tanta coisa estranha, agora que eu penso sobre isso. Eu sou idiota por não ter percebido, me desculpa, Nick. – e então abafou um soluço – Eu deveria ter te protegido, me desculpa.

Os dois choravam convulsivamente, se abraçando.

Aquela foi a realização de que nossa infância foi regida por um abuso e, pela primeira vez, eu percebi que isso afetava Jon também.

—Nick, quanto tempo isso durou? Quando isso parou? – ele perguntou, enfim.

Eu me afastei de seus braços, olhei pra baixo e murmurei:

—Não parou.

Jon engasgou e levantou da cadeira.

—Como assim?

—Quer dizer, parou quando ele saiu de casa. E voltou quando eu tentei me matar.

—Nicolas, foi por isso?

—Foi.

Jonathan andava de um lado pro outro no quarto, murmurando coisas como: “Isso é inaceitável” e “Você tem que sair daquela casa. ”

—Jonathan? – chamei, cautelosamente. Ele me olhou. – Eu sinto que você ta surtando junto comigo, e isso não é nada bom.

Ele sentou. Depois levantou de novo. Eu reconhecia a raiva nele, porque era meu estado natural. Eu conhecia raiva como mais ninguém.

—Acho que a gente deveria chamar Isabelly. – sugeri. Estava começando a ficar assustado com o desespero de Jon se misturando com o meu. Estava contando com a calma de Isa pra amenizar as coisas.

Ela entrou no quarto e, pela sua expressão, pressentiu que havia algo muito errado.

—Ok – falou – alguém vai me explicar o que ta acontecendo?

Seu tom não era agressivo, mas era quase uma ordem.

Tinham dois garotos surtando, e Isa talvez soubesse que a única forma de nos acalmar era sendo firme.

—Conta pra ela. – falei, baixo, olhando pra Nicolas.

—Jonathan, será que tem como você parar de andar? – ela falou. – Senta aqui, por favor. – e apontou pra poltrona no canto do quarto. Jon obedeceu, embora balançasse a perna. Eu não fazia nada além de chorar baixinho, mas minha energia estava quase acabando. - Se acalma, e deixa que eu converso com Nicolas.

Então ela chegou perto de mim, sentou na outra cadeira e pegou minha mão carinhosamente.

—O que foi?

Comecei a chorar novamente.

—Eu não consigo... – falei.

Do fundo do quarto, Jon disse:

—Nick foi abusado. – fez uma pausa- Pelo pai. E eu estou surtando porque não sabia.

Isabelly mordeu o lábio, nem ela tinha reação pra isso. Eu queria gritar com Jonathan por contar, mas estava aliviado que não precisei dizer. Me sentia envergonhado.

—Nick, eu sinto muito. – falou, depois de alguns segundos. – Sinto muito mesmo.

Desviei o olhar, queria sumir. Contá-los tinha sido um erro. Deitei na cama e enfiei a cabeça no travesseiro. Isa passou a mão pelos meus cabelos.

—Nicolas? – chamou – Olha pra mim. Nick.

Juntei toda a minha coragem pra olhá-la nos olhos. Eu esperava encontrar de tudo naqueles olhos pretos: desespero, pena, arrependimento de ter entrado na minha vida. Mas seus olhos não me diziam nada além de cuidado. Ela mantinha uma expressão quase neutra, como se qualquer erro fosse quebrar o mundo em pedaços – e talvez fosse mesmo.

—Quando isso aconteceu? – perguntou.

—Na minha infância toda. E terça passada.

Jonathan disse que ia beber água e nos deixou sozinhos no quarto. Talvez ele também precisasse processar. Assim que me vi sozinho com Isa, me enfiei nos braços dela e fechei os olhos.

—Nicolas, eu espero que você saiba que você é muito forte por ter passado por tudo isso. –  Isabelly disse, e aquilo me surpreendeu. Força seria a última das palavras que eu relacionaria comigo.

—Eu não me sinto assim. – confessei.

—Você vai, eu prometo.

—Olha onde eu to – soltei uma risada irônica – Num hospital. Porque quase me matei.

—Você pediu ajuda. Viver foi uma escolha sua, Nicolas. E eu estou muito orgulhosa dessa escolha. E de você, por ter tido coragem de se abrir. Você é forte e corajoso, e eu te amo.

Passado o choque inicial, Isabelly parecia ter recuperado seu dom de sempre saber o que falar.

—Eu só... não sei o que fazer. Não quero ficar na mesma casa que ele.

—A gente vai resolver isso. Eu, você e Jon. Juntos.

—Como?

—Eu não sei como. Mas vamos. Eu preciso que vocês dois se acalmem, e aí a gente conversa sobre o que pode fazer. Pode ser?

—Pode.

Isabelly ficou comigo até o choro parar de vez e minha respiração voltar ao normal. Eu conseguia ouvir o coração da menina batendo, e aquele som me trazia uma calma absurda.

Martha foi pra casa pra ficar com os bebês e Jonathan ficou sentado na poltrona, pensativo. E depois foi até Isa e passou os braços por trás dela. De certa forma, estávamos todos abraçados, e foi assim que conseguimos não surtar.

Quando nos soltamos, tudo parecia esquisito. Borrado. Como se nada mais fizesse sentido a não ser as batidas do coração de Isa.

Mas tive que me forçar a achar um sentido.

—Nick – Isa disse – acho que a primeira coisa que você tem que fazer é falar com Martha.

Balancei a cabeça, negando.

—Eu não conseguiria. E ela não acreditaria.

—Por que não? Não é ela que tem te defendido todo esse tempo?

—É.

—A gente vai estar com você o tempo todo. – Jon avisou.

—Por que eu falaria com ela?

—Porque você precisa denunciar. E Martha é quem mais pode ajudar nessa situação, afinal, ela é advogada. – Isa concluiu.

—O quê? Denunciar? Não. – concluí. – Não mesmo.

—Nicolas, você não acha que ele precisa pagar pelo que fez?

Abaixei o olhar.

—Acho.

—Mas...?

—Mas denunciar significaria desenterrar muita coisa que eu quero esquecer.

—E você ta conseguindo esquecer?

—Não.

Minha vida girava ao redor do que tinha acontecido: tenho medo de locais fechados, não gosto que segurem meu braço e vomito em carros. Pequenos sinais de que o trauma sempre está comigo. E também tem os grandes sinais, como os pesadelos e surtar eventualmente. E tentar me matar.

Então Isa falou algo que eu não tinha pensado antes:

—É seu dever denunciar. Nicolas, ele tem mais dois filhos. Bebês. E você pode impedir que algo aconteça com eles também.

Aquilo foi tudo que precisou pra me convencer. Eu faria o que fosse pra proteger meus irmãos daquele monstro.

Contar pra Martha não foi fácil, mas também não foi tão difícil quanto imaginei.

Ela chorou. Chorou muito. Não era fácil acreditar que se casou com um cara capaz de fazer algo assim.

Mas ela acreditou, e foi aí que me surpreendi. Talvez ela sempre desconfiasse do que ele é capaz. Talvez tenha ouvido do quarto dela, não sei.

Martha sumiu por dois dias, e deixou os bebês com sua irmã. Ela apareceu no dia da minha alta. Colocou nós três no carro e disse:

—Nicolas, nós vamos passar um tempo na casa da Ana, minha irmã. Tudo bem pra você?

—Sim.

Qualquer lugar longe de Rogério estava bom pra mim.

—Mas, antes... vamos passar na delegacia. – ela parou o carro no acostamento, e olhou pra trás. – Você consegue fazer isso?

Isa segurou minha mão firme.

—Consigo.

Chegamos na delegacia, e eu ainda estava meio zonzo do hospital, meu braço marcado de agulhas, e enjoado por causa do carro. Mas os três estavam ao meu lado, e eu sabia que iria ficar bem.

A delegacia tinha cheiro de fumaça e xixi, mas tentei ignorar. Olhei pra Isabelly, que puxou um pouco do cabelo rosa claro pra trás da orelha e depois pra Jonathan, que me lançou um olhar encorajador. Por fim, olhei pra Martha e assenti.

Martha prendeu seu longo cabelo preto num coque, tirou seu cartão profissional de advogada, e colocou em cima da mesa, junto com a identidade.

—Eu gostaria de denunciar um caso de estupro. – ela disse. E, a partir daí, tudo mudou.


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