Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 11
Sobre confissões




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Minha consciência ia e voltava. Não conseguia ficar acordado tempo o suficiente pra entender o que estava acontecendo ao meu redor ou onde eu estava.

Me lembro de gritar de dor. Também lembro do choro que se repetia todas as vezes que eu acordava, e do calor de alguém com a mão em minhas costas toda vez que eu vomitava, mas não estava acordado o suficiente pra identificar as pessoas. Não estava acordado o suficiente pra nada, a não ser pra sentir dor.

Parecia que tudo doía. Minha garganta, meu estômago, minhas costas.

A dor se tornou maior ainda quando acordei definitivamente. Abri os olhos e olhei ao redor, tentando identificar o local, então a dor me atingiu. Me encolhi, reclamando, quase chorando.

Uma enfermeira foi até lá e injetou algo na minha veia, e a dor foi diminuindo.

  - Se ele sentir dor novamente, você me chama.

Ela, então, me perguntou se eu sabia qual meu nome e que dia era. Tentei falar, mas meu corpo não obedecia meus comandos. Pisquei, sentindo a dor em minha cabeça, tudo em mim era confusão. Meu corpo todo estava pesado e eu me sentia tentado a voltar a dormir.

Assim que a enfermeira saiu, usei toda a força que tinha pra virar pro lado, e fechei os olhos. Estava cansado. Senti uma mão quente no meu rosto, e abri os olhos pra encontrar Isabelly, sem maquiagem nenhuma, os cabelos num rabo de cavalo. Ela sorriu pra mim, mas eu pude ver seus olhos vermelhos e inchados.

Fiquei lá, parado. Me sentia vazio, entorpecido. Parte de mim – grande parte – queria ter sucedido na minha tentativa, principalmente pra não ter que lidar com tudo que vinha depois. Eu não queria ver as caras de decepção, não queria sentir essa dor absurda, não queria nada disso.

Eu queria morrer.

A sensação de inutilidade me atormentava, conforme as memórias foram voltando. Eu havia falhado, e minha vontade súbita de viver que tive naquele momento, simplesmente sumiu. Talvez fosse mais instinto do que tudo.

Isa estava com sono. Percebi isso ao observá-la, sentada na cadeira, os olhos fechando aos poucos. Quis perguntar há quanto tempo ela estava aqui.

—Oi. – foi tudo o que eu consegui dizer. Ela pareceu surpresa, e eu vi a sombra de um sorriso se formar no canto dos lábios, um sorriso verdadeiro dessa vez.

—Oi, meu amor. – respondeu. Me senti culpado ao som do “meu amor”. Pensei que fosse chorar, mas não chorei. Algo em mim implorava pra que eu chorasse, saísse daquela inércia sem sentimentos. Mas não consegui. – To feliz que você acordou. Você é muito lindo, mas eu estava ficando entediada de ficar só olhando pra sua cara.  

Eu soltei uma risada baixa, e então senti meus olhos encherem de lágrimas. Me enchi de raiva e falei, alto, num tom de choro:

—Para! – ela puxou a mão do meu cabelo, assustada. Tive uma crise de tosse pelo esforço de gritar. Continuei chorando quando a tosse parou, e então olhei pra Isa, suas sobrancelhas arqueadas como se ela fosse chorar também.

—Nick... – ela murmurou – Nicolas, ta tudo bem.

—Não! Não ta. Para de agir como se não estivesse com raiva de mim.

Isabelly pareceu confusa. Apoiou a mão na cama, e suspirou. Seu esforço pra lidar comigo era quase palpável, e eu quis desaparecer.

—Nicolas, eu não estou com raiva. Como eu poderia estar? É claro que eu acho péssimo você ter tentado se matar. E eu fico muito triste por saber que você se sente assim, e com raiva dessa situação toda. Com raiva porque te fizeram chegar a esse ponto, com raiva do que fizeram com você, com raiva do mundo por ser assim tão injusto. Mas não de você. – deixei ela colocar a mão no meu ombro, e seu tom abaixou – Nunca de você.

—E os outros?

—Ninguém ta com raiva de você, Nick. A gente te ama. Ta aqui pra te apoiar, não pra te julgar.

De todas as coisas no mundo, aquilo era exatamente o que eu precisava ouvir. Isa me deixou chorar e murmurar coisas sem sentido, e então disse:

—Nick, você passou por muita coisa. Não só em geral, mas especificamente agora. Você precisa descansar. Você consegue fazer isso?

Sim, eu conseguia. Estava exausto, e dormir era a coisa que eu estava lutando pra não fazer, mas tomei aquilo como uma permissão. Caí no sono rapidamente, meu peito doendo por causa do choro e todo o resto doendo por causa dos remédios.

Quando acordei, me sentia melhor. Quem estava lá era Jonathan dessa vez.

—Quanto tempo eu dormi? – perguntei.

—No geral ou agora?

—Os dois.

—Agora, umas duas horas. Isa ta jantando, e Martha ta trabalhando.

—Trabalhando?

Parei pra pensar. Uma semana?

—Você ficou inconsciente por, mais ou menos, seis dias.

Meu Deus. Seis dias. Já faziam seis dias que eu estava naquela mistura de dor e memórias embaçadas.

Jonathan passou a mão pelos cabelos.

—Eu pensei que fosse... argh, nem sei o que pensei. Eu só... estava tão preocupado.

—Desculpa. – falei.

—Ta tudo bem. Só, por favor, não faz isso de novo.

Eu sabia que não podia prometer nada, mas, mesmo assim, assenti com a cabeça, pra tranquiliza-lo.  

Isabelly entrou no quarto, agitada como sempre, mexendo em uma de suas pulseiras.

—Ah, oi, você acordou. – falou, sorrindo. Puxou uma cadeira pro lado de Jon, e eles começaram a me contar o que eu tinha perdido. A conversa tinha um clima leve, como se fossemos amigos se encontrando numa lanchonete. Isa me contou sobre as travessuras da sua gatinha Wendy, e Jonathan fofocava sobre a faculdade. Me permiti a sentir leve por um tempo, até que a conversa, eventualmente, se tornou sobre mim.

—E você, Nick? – Isabelly perguntou – O que a gente perdeu?

Eu suspirei, quase rindo da pergunta.

—Não muito.

Inventei uma historinha aleatória sobre escola e fofocas, e os dois riram. Então Jon, como toda sua falta de noção, fez a pergunta que estava engasgada na minha garganta desde terça-feira passada:

—Isa? – chamou, com cuidado, se virando pra ela. Os dois pareciam ter ficado mais próximos esses dias, e eu não sabia dizer se isso me incomodava ou se me agradava. – Isso pode parecer uma pergunta estranha, mas... naquele dia, Martha me contou que foi você que ajudou Nicolas. Que você sabia o que fazer. – eu me encolhi, lembrando – Como?

Isa me olhou, desviando o olhar de Jon.

—Não acho que seria bom falar sobre isso agora.

Por causa de mim, claro.

—Não precisam me tratar como se eu fosse de vidro. – respondi. – Além do mais, eu também quero saber.

—Acredite, você não quer.

—Isa, eu quero saber tudo que você tem pra me contar sobre você. Se não quiser, eu respeito. A gente respeita. – tive a súbita realização de que não tinha a agradecido ainda. – Aliás... obrigado.

Estendi a mão pra ela.

—De nada. – então formou com os lábios, pra Jon não ouvir, “Eu te amo. ”

Eu sorri de verdade, pela primeira vez em algum tempo.

—Minha mãe se suicidou. – ela disse, baixo. Eu encolhi os ombros, sentindo a dor na voz da garota. – Antes de se matar, ela tentou várias vezes, então a situação não foi estranha pra mim.

—Me desculpa por perguntar. – Jon falou.

—Não tem problema.

Esperei até estarmos sozinhos pra poder perguntar mais sobre sua mãe. Eu queria saber, queria entender as coisas pelas quais Isabelly passou. Queria que ela dividisse comigo, assim como eu tinha dividido com ela a maioria das coisas.

—A gente pode conversar sobre isso depois, Nick. – ela disse – Eu não quero te estressar.

—Quantas pessoas sabem sobre a sua mãe?

—Tirando da família? Ninguém.

—Talvez seja por isso que é tão difícil pra você me contar. Eu passo praticamente a maioria do tempo com você, e mal sabia disso. Você nunca fala sobre sua mãe. – falei, quase num tom chateado. – Eu quero fazer parte da sua vida. De toda ela, até as partes que você não gosta de falar.

A garota deu um sorriso fechado, a mão apertando a minha.

—Minha mãe tinha esquizofrenia. – ela disse, enfim. – Era tudo tão péssimo, sinceramente. Ela passou um tempo controlada, mas aí ela ficou grávida e teve que parar de tomar os remédios. Por minha culpa, ela voltou ao estágio inicial. As alucinações voltaram, e meu pai teve que cuidar de um bebê e dela. Acho que, pra ser sincera, eu nunca tive uma infância. Eu não a culpo, claro. Mas tudo que eu fiz, desde que me lembro, foi me sacrificar por ela. Eu entendo agora que não deveria. Que eu deveria ter vivido minha vida, que eu não poderia ter tomado as dores dela como se fossem minhas. Mas eu só entendi isso depois que ela morreu. Eu fiz de tudo, tudo mesmo – lágrimas encheram os olhos de Isabelly – e, mesmo assim, ela se foi.

—Não foi sua culpa. – murmurei. – Não foi sua culpa, nada disso. Você fez o que pode, mais do que pode. Eu sinto muito por tudo isso, de verdade. Eu fico muito feliz que você tenha achado seu caminho. Eu sentia essa força vindo de você, e nunca soube de onde surgia, agora eu sei. E eu fico feliz que nossos caminhos se cruzaram, porque você tem me ensinado muita, muita coisa.

Ela encostou o rosto no meu peito.

—Obrigada. - falou, baixo.

E lá estávamos nós, duas almas quebradas, tentando encontrar o sentindo. E estávamos seguros, porque estávamos juntos.

Martha, Jon e Isa passaram a noite comigo e, mais do que nunca, eu senti falta de Gabriel. Pensando sobre ele, imaginei tê-lo visto durante essa semana, mas não tinha certeza. Talvez tenha sido ele que estivesse chorando. Desejei que Jon estivesse acordado pra perguntar, mas deixei pra falar sobre de manhã.

Eu estava bem e confortável. Doutor Luciano passou lá e aumentou a dose dos meus remédios, e o hospital estava me mantendo medicado o tempo todo, então talvez fosse isso. Ou talvez fossem as pessoas me apoiando, não sei. Quase me permiti sentir esperança. Até que dormi.

E revivi aquela noite. E todas as outras noites que a mesma coisa se repetiu.

Acordei suando e sentei, apesar de estar fraco.

Os três pareciam assustados.

—Nick, você tava gritando. O que aconteceu? – Martha perguntou, levantando.

—Jonathan. – murmurei. – Preciso falar com o Jonathan.

Eu não aguentava mais. Era meu limite. Precisava colocar pra fora tudo que tinha acontecido, antes que aquilo me matasse por dentro.

Ficamos sozinhos e, na adrenalina do pesadelo, não pensei duas vezes:

Contei pra Jonathan tudo que fizeram comigo.


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