Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 10
Sobre dias que devem ser esquecidos


Notas iniciais do capítulo

Aviso de gatilho: estupro.



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Meu rosto estava virado contra a cama, e Rogério segurava meus dois pulsos violentamente. O barulho do meu corpo batendo contra a madeira fazia eu querer vomitar. Tudo naquilo fazia eu querer vomitar.
Parecia que eu tinha voltado pros meus piores pesadelos. Quando eu tinha alguma reação, ou tentava sair, era respondido com um soco.
— Por favor. - murmurei, puxando o braço. Ele largou um de meus braços apenas pra pegar minha cabeça e bater na cama. Puxou com tanta força que talvez tenha arrancado tufos do meu cabelo.
Eu chorava baixinho, me forçando a respirar, tentando juntar qualquer força pra reagir. Mas eu já não tinha mais força nenhuma.
Doía. Doía demais. Fisicamente, psicologicamente, doía de formas que eu nem me lembrava mais que doía.
— Argh! - gritei, tentando o empurrar pra longe. Ele me virou apenas pra me dar um soco na boca. Senti o gosto de sangue, e minha visão embaçando.
—Escuta: - ele disse - Isso aqui é um aviso. Isso é o que vai acontecer se eu souber que você abriu sua boca pra aquele maldito psiquiatra. Ou pra qualquer pessoa. Você vai ficar quietinho?
Eu chorava, baixo.
— Vai? - repetiu, apertando seu corpo contro o meu.
— Vou. - respondi, quase inaudível, o barulho se confundindo com meu choro.
Então, como se eu fosse feito de pena, ele me pegou pelo cabelo e bateu minha cabeça na quina da cama. Duas vezes, até que eu apagasse.
— Você fica mais quieto assim. - foi a última coisa que eu ouvi.
Não sei o que aconteceu depois que desmaiei, mas, quando acordei, ainda estava sujo de sangue e sem calça. Era de manhã. As memórias vieram tão rápido quanto a dor em minha cabeça. Coloquei a roupa o mais rápido possível e fui até o banheiro. Não queria deitar naquela cama. Estava suja, como eu.
Não me lembro de, em nenhuma vez, ter surtado como surtei. Começou com um choro baixo, sentado no chão do banheiro. Logo se tornaram soluços e falta de ar, e quando vi, estava deitado no chão, gritando.
Gritando porque ainda doía. Gritando porque não sabia o que fazer.
Gritando tudo que não fui capaz de gritar na hora.
Não demorou muito pra Martha estar batendo na porta do banheiro, assustada.
— Nicolas! Nicolas, abre essa porta!
— Não! - gritei, por fim - Vai embora!
Não reconhecia a agressividade em minha própria voz.
Depois de gritar de volta algumas vezes, ela desistiu. Saiu, e me deixou sozinho.
Minha energia estava acabando. O desespero continuava intacto, mas meu escândalo estava diminuindo. Deixei a tensão em meu corpo ceder, e encostei no chão frio e sujo do banheiro.
Fiquei lá por um bom tempo, as pontadas de dor na minha cabeça e os flashbacks me torturando.
Quando juntei força suficiente, fui até o quarto, virei o colchão ao contrário e deitei.
Não queria sair da cama nunca mais.
Não sabia como algum dia poderia fazer algo além de ficar deitado e chorar, e foi exatamente isso que eu fiz por, mais ou menos, uma semana.
Não tomei banho, não comi, não fui a escola. Nem sequer falei.
— Nicolas - Martha disse - eu não consigo te ajudar se você não me contar o que foi.
Mas eu não queria contar. Eu queria me afundar nos cobertores, fechar os olhos e morrer. Esquecer que existi algum dia, esquecer de tudo que aconteceu.
Toda manhã, Martha trazia meus remédios e comida. E no almoço e na janta. Eu até tentei comer mas, sempre que comia, vomitava. E chorava ao ver Martha limpando porque, meu Deus, ela não merecia aquilo. Não merecia ficar cuidando de um adolescente perturbado como eu.
Isa passou um tempo comigo todos os dias.
Ela dizia que aquilo ia passar. Que eu precisava comer e tomar meus remédios.
Que ia ficar tudo bem.
Mas eu não respondia, e eu sabia que isso a magoava. Eu sabia que ela chorava quando chegava em casa, eu conseguia ouvir.
Não demorou muito pra eu chegar a conclusão de que era um peso pra todos, e eu sabia o que tinha que fazer.
Quando Isa apareceu no meu quarto, eu sentei na cama.
— Senta aqui. - falei, envergonhado. Ela pareceu surpresa. A olhei nos olhos e senti as lágrimas descendo. - Eu... Eu sinto muito por ter te ignorado esses dias.
— Tudo bem. - respondeu, balançando os pés na cama. - Eu to muito preocupada com você, Nick.
— Eu vou ficar bem. Foi você que me disse isso. Certo?
— Certo.
Ficamos em silêncio por um tempo, até que eu disse:
— Quanto tempo você acha que é necessário pra se amar alguém?
Isabelly pareceu confusa.
—Eu acho que depende. Tem gente na minha vida desde sempre que eu não amo, demorei anos pra aprender a me amar, e amei minha gata no momento que a vi. Não tem a ver com tempo, tem?
— Então tem a ver com o que?
— Tem a ver com sentimentos. E sentimentos não entendem tempo, não existe um tempo certo ou errado pra se amar alguém.
A complexidade de Isabelly me fascinava. Eu queria dizer:
"Eu te amo. Eu te amo demais. Eu queria que todas as pessoas no mundo fossem como você."
Mas eu não sabia como.
Aparentemente, ela sabia, porque encostou a testa na minha e disse:
— Eu sei que é esquisito, isso que a gente formou. Essa amizade/ o que quer que for. Eu sei que foi do nada, e que parece demais, mas eu te amo. Eu também te amo, se isso que está preso na sua garganta.
—Eu nunca tive que dizer que amo ninguém antes. Não desse jeito.
Ela abaixou o tom de voz:
— Agora é sua chance.
— Eu te amo.
Contei a Isabelly o quanto eu estava grato por tudo que ela tem feito. Disse-a que ela é a porcaria do Sol, um amanhecer num filme de terror: alívio. Isabelly é alívio, e confusão, e tudo de bom e novo ao mesmo tempo.
Era a primeira vez que eu tinha confessado meu amor a alguém, e teria sido mais romântico se não fosse uma despedida. Ela não teria sorrido tanto se soubesse.

Isabelly foi embora, e eu estava sentindo uma determinação esquisita. Foi tudo muito mecânico: levantei, acendi a luz, procurei a gaveta de remédios no meu guarda- roupa. Achei- os lá, intactos, três cartelas de comprimido e um vidro de um remédio líquido.
Achei que aquilo bastasse.
Minhas mãos tremiam enquanto eu engolia os comprimidos, um por um.
Aquele era meu fim.
Era ali que meu sofrimento acabava. Certo?
Terminei de tomar todos, nada aconteceu. Foi só quando comecei a me sentir tonto e enjoado que a ficha caiu: eu estava morrendo. Tinha tomado todos os remédios.
Era o fim.
Fui tomado por um desespero absurdo. Comecei a chorar, momentos passando pela minha cabeça. Não os ruins, mas os bons.
Isa
E Martha
E Jonathan
E Gabriel
E meus irmãos.
Eu não quero morrer.
Juntei minhas forças pra levantar, chorando, desesperado.
— Martha! - gritei.
Fui andando até a sala. Me joguei no sofá.
— Eu não quero morrer! - chorei. Martha foi correndo até mim - Eu não quero, não me deixa morrer. Por favor, por favor. Eu não quero mais, eu não quero!
— O que aconteceu? - ela gritou. - Nicolas!
Eu estava gelado, sentindo suor descendo pelo meu rosto. Abri a mão e mostrei pra ela, as caixas de comprimidos vazias.
— Meu Deus. - murmurou - Meu Deus, não.
Tudo aconteceu muito rápido.
— Nicolas - ela disse - eu preciso que você ande até o carro. Você consegue fazer isso?
Não sei como, mas consegui. Ouvi passos corridos atrás da gente, e temi que fosse meu pai, mas não era.
— Eu ouvi, me deixa ir junto! - Isabelly disse - Eu posso te ajudar. Deixa eu ir, por favor.
Martha acenou com a cabeça, e Isabelly entrou no carro, do lado de trás, comigo.
— Que bom que você ta aqui. - murmurei. Pensei que fosse uma alucinação, mas ignorei.
Nós três estávamos assustados, mas Isabelly parecia estranhamente saber o que fazia. Ela me manteve acordado, virado de lado, pro caso de eu vomitar.
— Você não pode dormir. Fica acordado. Eu vou conversar com você.
Eu estava encostado no banco, a cabeça virada pro lado e as pernas pro lado de Isa. Ela manteve a mão no meu ombro.
— Você sabe o nome dos remédios que tomou?
—Hum? - minha capacidade de entendimento estava se esvaindo.
— O nome. Dos remédios. - senti minha visão escurecer e depois voltar ao normal - Nicolas, fica comigo. Eu to aqui.
— Não. - falei, baixo - Não sei.
— Os médicos vão precisar disso. Martha...?
— Eu sei. - Martha disse - Eu sei os nomes. Como ele está?
— Perdendo a consciência. Nicolas. Nick, - ela colocou a mão no meu rosto - qual sua cor favorita?
— Minha o que?
— Sua cor favorita.
— Preto. E amarelo.
— Como um girassol?
— É. Um girassol.
Senti uma queimação esquisita e vomitei, meus olhos se enchendo de lágrimas. Pelo menos a dor me manteve acordado o suficiente. Continuei vomitando, e chorando, parecia que era tudo feito de fogo, e que minha garganta iria literalmente queimar de tanta dor.
—Ta tudo bem - Isa falou - Ta tudo bem, você ta colocando os remédios pra fora. Isso é bom.
Não parecia bom. Não parecia nada bom.
— Estamos chegando no hospital. - Martha falou, estacionando o carro. O vômito tinha parado, mas eu continuava tossindo, e minha consciência ia e voltava, a voz de Isa se perdendo.
— Eu vou chamar alguém - Martha falou - Fica com ele. - e saiu correndo.
— A gente chegou, Nick. - ela disse, colocando a mão no meu rosto - Você aguentou até aqui. 
Ouvi passos corridos vindo até mim, e vozes desconhecidas do que provavelmente eram médicos.
— Eles chegaram, Nick.
Me esforcei pra virar o rosto pra frente, e olhar pra Isabelly. Vi, meio embaçado, seu semblante preocupado, e logo atrás, um médico vindo.
— Eu te amo, vai ficar tudo bem. - foi o que ela disse antes de sair e dar espaço pro médico. Senti uma picada no braço e fui apagando.
Tudo era quente e frio ao mesmo tempo. Eu me sentia leve e pesado e, principalmente, cheio de arrependimento.


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