Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 9
Sobre portas trancadas


Notas iniciais do capítulo

AVISO DE GATILHO!



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Eu não sabia se deveria sentir alívio. Deveria? Tudo em mim era uma mistura de confusão e alívio. Ok, eu tenho essa coisa aí. E agora, o que acontece?
—Doutor – interrompi-o, enquanto ele tentava me explicar o que era e remédios e tudo mais – Isso significa que eu sou maluco?
Olhei pra baixo, com vergonha. Minha mão ainda estava entrelaçada na de Isa.
Luciano pareceu achar a pergunta engraçada, o que me irritou.
—Não, Nicolas. Significa que você tem um transtorno.
Eu balancei a cabeça.
—É informação demais.
Todos estavam em absoluto silêncio, era quase como se não estivessem ali.
—Eu não me sinto bipolar. – foi o que eu disse, por fim. – Quer dizer, eu não deveria ficar muito feliz e depois muito triste ou sei lá? Eu não me sinto assim.
—Nicolas, - ele disse, sentando – deixa eu te explicar primeiro. Bipolaridade não é isso. Pode ser, mas não é bem assim que funciona: você, ou as pessoas com esse transtorno em geral, podem variar de um estado pra outro. A gente chama de mania e depressão: são períodos, episódios. Você, as vezes, se sente cheio de energia, embolado, toma atitudes impulsivas ou violentas?
Eu mantive meu olhar na mão de Isabelly, não queria olhar pra ele.
—Sim. - falei, quase inaudível.
—Isso é um episódio maníaco. Foi o que você teve ao chegar aqui. E, pelo o que você disse, e que eu observei, os episódios depressivos também são muito comuns. Certo?
—Certo.
—Nicolas, eu entendo que é difícil aceitar um diagnóstico desses. Que você tenha muitas perguntas. É normal. Vamos fazer o seguinte: eu vou te encaminhar pra uma psicóloga, e ela vai te ajudar a entender e tirar suas dúvidas.
Então ele passou, pelo menos, uns três ou quatro remédios. Duas consultas com a psicóloga por semana. Uma com ele a cada duas semanas. Segundo doutor Luciano, eu precisava de tratamento “intensivo e urgente”.
Era muito pra digerir.
—Gente... – falei, assim que ele saiu do quarto – Será que eu posso ficar sozinho um pouco?
—Tudo bem. – Martha disse, e olhou pra Jonathan, que balançou a cabeça positivamente. Isa ia soltar minha mão, mas eu a segurei delicadamente.
“Fica” falei, mexendo os lábios sem fazer som. Ela olhou pra os dois, como se pedindo permissão, ao que Jonathan concordou com a cabeça. Estava calado, e eu sabia que era informação demais pra ele também.
Eles saíram do quarto e Isa e eu ficamos sozinhos. Seus lábios formaram um meio sorriso, e então ela delicadamente se aproximou, e me deu um beijo na testa. Aquele foi, provavelmente, o gesto mais carinhoso que eu tinha recebido na vida.
Ela sentou do meu lado, e nossas mãos se soltaram aos poucos. Ficamos em silêncio por, mais ou menos, meia hora. Por isso que eu quis que ela ficasse: sabia que entenderia meu silêncio. Sabia que não perguntaria nada e nem falaria nada enquanto eu não quisesse. Eu só queria saber o que aconteceria a partir de agora. Eu deveria confiar em tudo que doutor Luciano disse? Deveria tomar os remédios e ir as consultas e esperar que isso me deixe bom? E se eu for, realmente, maluco? E se nada me consertar? Nada disso entrava na minha cabeça. Eu entrei no hospital com uma infecção e sai com um diagnóstico que iria durar a minha vida inteira. “Não é curável, mas é tratável, eu garanto.” Tratável, o que porra isso significa? Significa que eu vou perder o controle e me sentir vazio e desajustado minha vida toda? Ou não?
Parecia que minha cabeça ia explodir de perguntas.
Enquanto eu me perdia em pensamentos, Isabelly se distraía brincando com minha mão. Nossos dedos roçavam um no outro, e eu também não entendia o que isso significava. Eu só sabia que era bom, e, ao contrário de todas as outras coisas na minha vida, parecia certo.
—Eu só... – falei, enfim – Eu não entendo. Nada disso, nada disso faz sentido pra mim.
Ela me olhava atenciosa, com carinho. Parecia não saber o que dizer, então só continuava passando os dedos pela minha mão.
—Quer dizer – continuei. – o que eu faço agora?
Senti meus olhos encherem de lágrimas.
Isa chegou mais perto e me olhou.
—Paciência. – ela disse. – Você tem paciência. Com você mesmo, com tudo. E faz o que o doutor pediu, e vê o que acontece.
—Você fala como se fosse simples. – reclamei.
—Nicolas, eu sei que não é simples. Eu sei que tem coisa demais envolvida. Mas o que vai adiantar ficar pensando nelas? Não vão tornar as coisas menos difíceis.
Fechei os olhos, e passei a mão pra limpar as lágrimas que caíram.
—E se ele estiver errado?
—O psiquiatra?
—É.
—Ele vai descobrir, se estiver. Você vai vê-lo regularmente, não vai?
—Aparentemente, vou. Não que eu queira.
—Não pensa nisso agora. Uma coisa de cada vez, ok?
E foi o que eu tentei fazer. Não consegui, mas tentei. As coisas, agora, pareciam diferentes. Muita coisa que, antes, não fazia sentido, passaram a fazer.
Subir e descer as escadas. As brigas. A energia que me atrapalhava. As crises de choro.
Tudo agora tinha um porquê, e eu não sabia se deveria ser reconfortante, mas era.


A primeira semana com os remédios não foi, nem de longe, o que eu imaginava que seria. Algo em mim tinha a esperança de que as coisas começassem a, magicamente, ficar bem. Mas foi o contrário disso: minha reação aos remédios foi péssima. E eu sabia que eram fortes, e que eu demoraria pra me acostumar, mas eu não esperava que me derrubassem daquele jeito. Não fui pra escola nos dois primeiros dias, só fiquei deitado na cama, exausto, assistindo TV. Era uma sensação engraçada: os remédios pra ansiedade me deixaram calmo de uma forma que nunca me senti antes, no entanto, o remédio pra, segundo o doutor, “controlar meu humor”, me deixava lá, sem energia pra levantar ou comer ou fazer qualquer coisa. Quando conseguia, eu levantava e fazia algo, mas logo depois minha energia acabava e eu precisava ficar deitado de novo. Meu pai passou a manter distância de mim, e eu ficar trancado no quarto quase abafava o som das reclamações dele.
“Eu não vou pagar remédio pra esse merdinha aí não. Isso é frescura, é coisa de viado” ele dizia, e uma infinidade de coisas que pareciam exatamente com essa.
No primeiro dia, tudo que eu fiz foi vomitar e reclamar.
— Eu odeio essa merda! - eu gritava, chorando, ajoelhado na beirada do vaso, enquanto Martha passava a mão pelas minhas costas - Eu quero parar! Eu odeio tudo isso!
Digamos que eu não estava num período bom. E os antibióticos e os remédios novos não estavam lá ajudando. Martha passou o dia inteiro comigo, e Jonathan passou lá de noite na volta pra faculdade. Aquele era, provavelmente, o período em que mais tive pessoas ao meu redor cuidando de mim, e eu não conseguia entender como funcionava. Sempre tive que me virar sozinho.
No segundo dia, as coisas melhoraram um pouco. Eu me sentia enjoado e cansado, mas consegui ficar quieto assistindo TV, e além do mais, a raiva tinha passado.
Isabelly faltou escola pra passar o dia comigo.
— Não precisa.
— Precisa sim. - ela insistiu - Eu to com saudade e não quero deixar você sozinho.
Era uma terça-feira, e Martha trabalhava as terças.
— Além do mais, - Isa continuou. - é uma desculpa pra faltar aula.
Eu ri, deitado no sofá. Ela estava sentada na mesa, passando os filmes na Netflix, sem nem ler.
— Vem pra cá. - falei, sentando. Eu conseguia sentir as marcas do sofá no meu rosto, e Isabelly riu.
— Você ta sensacional. Deixa eu tirar uma foto.
—Pelo amor de Deus, não. - falei rindo. Tampei o rosto com as mãos, e depois com a almofada, assim que ela pegou o telefone.
— Sem graça. - a garota cedeu, sentando no sofá e deixando o telefone de lado. - Vem aqui, deixa eu arrumar seu cabelo.
Então abaixei a almofada e a menina, ainda rindo, fez o melhor que pode pra ajeitar minha juba ondulada. Eu precisava muito cortar o cabelo.
Então ela olhos nos meus olhos, e abaixou as mãos. Pro meu pescoço. Isabelly estava séria, e eu conseguia sentir nossas respirações se misturando.
Era uma sensação nova. Estávamos tão perto que eu não pude evitar de olhar todos os detalhes do rosto de Isabelly: seus olhos castanho- escuros e alguns fios de cabelo rosa caindo rebeldes pelos olhos. E aquela pintinha adorável, perto do lábio inferior. A voz de Jonathan passou pela minha cabeça.
"Mas você quer beijá-la?"
Quero. E não é pouco.
Isabelly soltou uma risada, e desviou o olhar pra baixo. Eu sorri, respirando fundo. A situação parecia engraçada, apesar de ligeiramente decepcionante. Ela tirou as mãos de mim e recostou no sofá.
— Deveríamos fazer maratona de alguma coisa. - falou, completamente ignorando que quase nos beijamos - Você já viu Star Wars?
E foi assim que passamos o dia vendo Star Wars. Isabelly deitou no meu braço, e eu apoiei minha cabeça nela. Dormi na metade do segundo filme.
— Inaceitável. - ela reclamou, ao me acordar. - Como você pode ter dormido no meio dessa obra-prima?
— Hum? - murmurei, meio dormindo.
Isa pegou a almofada do sofá e colocou no colo, e me olhou. Deitei sem pensar duas vezes, e voltei a dormir, enquanto ela, aparentemente, continuou assistindo os filmes.
Acordei com o barulho irritante de uma música infantil. Abri os olhos e vi que a luz estava apagada, pela iluminação de fora deveria estar de tarde. Senti um peso quentinho em mim e, quando olhei, percebi que Gabi estava deitada no meu peito, assistindo TV. A peguei no colo e sentei, olhando ao redor, a procura de Martha e Isabelly. As duas estavam sentadas na bancada da cozinha conversando, e eu vi que Lucas estava no colo de Isa, brincando com seu cabelo. Aquela, por algum motivo, pareceu a cena mais bonita que eu já vi em toda minha vida.
— Gabi, vamos lá na mamãe? - falei, e ela repetiu:
— Mamãe.
— Isso.
Passar tempo com os bebês era a coisa que mais me fazia feliz no mundo. Era engraçado sentir que essas coisas minúsculas eram meus irmãozinhos e, por uns segundos, me arrependi de não ter ficado mais tempo com eles antes de ser obrigado a isso.
— Bom dia, Bela Adormecida. - Isa falou, rindo. - Você dorme pesado, hein? E eu com medo de te acordar.
Eu me espreguicei e sentei do lado de Martha.
— Como você ta? - perguntou.
— Melhor. Acho que to me acostumando aos remédios.
Então ela olhou pra Isa e depois pra mim.
— Ela cuidou bem de você?
Balancei a cabeça positivamente e Isa riu. "Obrigado" falei pra Isa, sem fazer som, e ela deu um sorriso. Um sorriso diferente, quase com uma ponta de timidez.
— Ta ficando tarde. - Isa disse. - Acho que vou ir pra casa.
Eu fiquei agradecido, porque daqui a pouco meu pai chegaria e eu não queria que ela o conhecesse.
Isabelly entregou Lucas pra Martha, e eu deixei Gabi no sofá asistindo desenho pra ir levá-la até a porta.
Descemos as escadas até o terceiro andar em silêncio, e eu olhava de relance pra Isabelly de vez em quando. A garota manteve o olhar firme nas escadas, sem me olhar de volta. Isabelly é uma garota excepcional, e isso era tudo que se passava pela minha mente.
Quando chegamos na porta, ela se posicionou na minha frente e disse:
— Eu quero continuar o que começamos mais cedo.
Juntei minhas sombrancelhas, confuso.
—O que?
Isabelly passou as mãos pelo meu cabelo, e abaixou pelo meu pescoço.
— Isso aqui. - ela disse. E então me beijou.
Era uma sensação diferente, leve. Quase como se eu estivesse voando.
Coloquei minhas mãos na cintura da garota. Parecia que não existia nada mais ao nosso redor.
Pela primeira vez em muito tempo, minha mente estava em um lugar só: ali, com ela.
Nos afastamos, e eu sorri involuntáriamente. Senti que estava vermelho, e ela pareceu achar muito engraçado. Pegou a chave de casa em silêncio e abriu a porta.
— Te vejo amanhã. - disse.
Mas eu não queria me despedir. A segurei delicadamente pelo pulso.
— Espera.
— O que?
— Sai comigo.
Isa riu. Nós parecíamos extramamente felizes, como duas crianças.
— Quando?
— Sexta-feira.
— Tudo bem.
Então a beijei na testa, de despedida, e ela entrou.
Só quando saiu de perto de mim que eu pude perceber o quanto meu coração estava acelerado.
Subi as escadas ainda com o sorriso no rosto. Em casa, fiquei sentado assistindo desenho com os bebês e Martha, mas minha cabeça ainda estava em Isa.
Fui pro quarto cedo, não queria que Rogério chegasse e interrompesse minha felicidade. Mal sabia eu que me esconder no quarto foi a pior coisa que eu fiz.
Ele chegou, e não estava bêbado dessa vez. Não tiveram gritos na sala. Ao contrário, eu ouvi ele conversando com Martha- pedindo desculpas. Disse que estava muito, muito arrependido. E que ia ser uma homem melhor e tudo mais.
Martha chorou, eu consegui ouvi-la chorando. Eu sabia que ela o perdoaria, Martha tem um coração enorme - grande o suficiente pra abrigar um adolescente que não tinha ninguém. Então como ela não o perdoaria?
"Eu vou conversar com o Nicolas" ele disse "Tenho que pedir desculpas a ele também. Pode me esperar no quarto."
Quando ouvi seus passos, tentei levantar e trancar a porta, não queria ouvir suas desculpas esfarrapadas. Mas tropecei e caím
Quando ele entrou, eu estava no chão, do lado da cama.
Eu estava esperando desculpas que eu não iria aceitar, mas, quando olhei em seus olhos, sabia que não era isso. Eu conhecia aquela expressão. Levantei e fui correndo até a porta, ao que ele trancou e me segurou com o braço. Estiquei a mão e bati na porta.
— Martha! - gritei, e Rogério cobriu minha boca com a mão.
— Shhh, quietinho. Eu só quero conversar com você. - sua voz estava calma, mas eu não.
Tentei, com toda a força que tinha, me soltar. Mas eu estava fraco e cansado. Eventualmente, cedi, e não me orgulho disso.
Tudo o que eu fiz foi chorar, baixinho. E implorar.
"Por favor, por favor, para."
Mas ele não parou. E tudo que me restou fazer foi torcer pro tempo passar rápido.


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