Os Véus do Tempo escrita por le Monsieur Fraser


Capítulo 2
Capítulo II - Um Sopro do Diabo


Notas iniciais do capítulo

Uma boa leitura, espero que gostem.



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2
U M   S O P R O   D O   D I A B O

Acordei cedo, como de costume nas minhas viagens e desci para o café da manhã. Dona Ribeiro me serviu um pouco de café e se sentou à mesa que eu estava logo puxando uma conversa:

— Dormiu bem com os índios? — ela perguntou, me servindo um pedaço de bolo.

— Ha ha ha — imitei uma risada. — Sara e a Família já foram embora?

— Sara? Que sara? — Dona Ribeiro perguntou.

— Sara, a filha do seu Jorge e da Dona Eliza.

— Não hospedamos nenhum Jorge ou Eliza, Henrique. — sua expressão era séria e perturbada.

Arregalei-me os olhos e engoli em seco, não sabia o que pensar. E logo Dona Ribeiro começou a rir.

— Devia ter visto a sua cara — ela disse.

— A senhora acordou mais animada do que nunca hoje. — Soltei um riso frouxo por ter caído na brincadeira de Dona Ribeiro.

— Hoje é dia de Lua Cheia, vamos ter o Ritual do Fogo na Gruta do Diabo com o meu povo, os Guaranis. E respondendo a sua pergunta, eles já foram. Saíram apressados logo cedinho.

— Ritual do Fogo? — peguei um pão de queijo que estava próximo, o devorando com vontade.

— Sim, fazemos toda lua cheia desde que o portal da cidade foi demolido.

— Que portal?

— O da entrada da cidade. Um dia eles derrubaram sem mais nem menos. Resumindo a história pra você, os espíritos da natureza se zangaram, agora toda lua cheia fazemos um Ritual do Fogo na Gruta do Diabo para manter a paz com os espíritos ancestrais.

— Ah, sim, Ritual de Fogo, sei. E depois eu sou o maluco que vê índio na mata. — Sussurrei.

— O que você disse ai?

— Que lindo dia para ir visitar os macacos na mata. — tentei disfarçar, logo trocando de assunto. — E podemos assistir?

— Poder, não pode não, mas se você quiser e conseguir se esconder na mata logo atrás da entrada da Caverna, vai conseguir nos ver. Só tome cuidado para não ser pego. Você pode ir comigo até uma parte do caminho, saímos pela noite.

O dia passou quase que em um estalar de dedos. Dona Ribeiro descendia dos Guaranis, cresceu em uma reserva indígena e participou da fundação da Reserva do Takuari. Ela desceu as escadas em uma espécie de traje cerimonial indígena. Ela estava seminua, com o cabelo solto e parte da pele pintada. Usava muitas penas em várias partes do corpo e alguns colares. Não era uma visão lá muito agradável de se ver, especialmente pela parte seminua.

Eu a acompanhei até perto da entrada da Caverna, que levava a Gruta do Diabo, e depois segui sozinho noite adentro com cautela. Eu estava já estava ficando paranoico com todo aquele breu. Cada barulho ou estalo na mata e eu jurava ser uma onça vindo me pegar por bisbilhotar rituais antigos.

Finalmente cheguei a entrada da Caverna. Não havia ninguém ali a primeira vista, mas as luzes da entrada estavam acesas. “Será que aquela velha sem vergonha e piadista me enganou de novo?”. De repente ouvi tambores, mas vinham de dentro da Gruta. “Ela me havia dito que seria realizado pelo lado de fora e não de dentro. Bom. Não importa”. Me aproximei calmamente, adentrando a gruta e segui o som dos tambores. Desci pela grande escada até tê-los no meu campo de visão e lá estavam eles! Eu podia contar ao menos vinte mulheres e poucos homens. Estavam todas parecidas e vejam só, lá estava dona Ribeiro. Parecia mais séria do que de costume.

Os tambores se calaram, e tochas foram acesas e distribuídas para as mulheres que vestiam os trajes cerimoniais. A música recomeçou novamente, mas de forma mais lenta. Agora as mulheres dançavam com as tochas, girando e rodopiando em um formato circular. Com exceção de dona Ribeiro, que estava imóvel no centro do círculo. O ritmo dos tambores aumentava e a espécie de dança das mulheres guaranis também. Dona Ribeiro então soltou um grito alto e abafado em uma língua a muito esquecida. Eu reconheceria essa língua em qualquer lugar, já que Dona Ribeiro vivia falando pelos cantos. Era o tupi. Tupi-Guarani.

Me acomodei na escada de pedra da Gruta, observando atentamente o ritual, que começava a ficar cada vez mais acelerado. Pareciam ridículas e talvez estivessem sendo. Dançando e girando, em círculos. Gritando palavras em Tupi-Guarani. Foi quando uma espécie de sopro me acolheu, vindo de trás, e os cabelos da minha nuca se arrepiaram. Virei-me rapidamente, pensando ter alguém ali, mas não vi ninguém. Voltei a olhar a dança e mais uma vez o sopro, seguido do arrepio. Tive uma sensação estranha. Olhei para trás novamente e um arrepio tomou conta de meu corpo, da cabeça aos pés. O Índio da noite passada, ele estava lá, em pé, na entrada da Gruta. Ele se aproximou, correndo em minha direção, e antes mesmo que eu pudesse reagir, minha visão ficou turva e escureceu. Acordei, logo me levantando. Minha cabeça doía e não parava de girar. Eu ainda estava dentro da Gruta, mas podia ver os raios do sol penetrando a entrada da caverna. Me perguntei quanto tempo fiquei ali dentro para já estar amanhecendo. Logo me ocorreu que os índios não estavam mais lá, e nem mesmo o que estava com arco e flecha e cocar. Me levantei, limpando o cascalho de minhas roupas e corri de volta para a Pousada, ainda confuso com tudo o que tinha acontecido.

Mais tarde naquele mesmo dia desci até a cozinha para o almoço. Já havia passado da hora, mas Dona Ribeiro foi gentil e me fez um belo prato com as sobras. Não me importava, desde que estivesse bom. E estava. Ela me acompanhou enquanto eu comia, puxando uma conversa, do jeito que ela gostava.

— O que achou do Ritual ontem?

— Intrigante, para dizer o mínimo. — engoli em seco. — Ninguém notou que estava lá?

— Não. Me pergunto onde você estava, Henrique, que não dormiu aqui.

Desviei o olhar. Como eles não me viram se eu estava o tempo todo desmaiado na única escada que leva a saída da gruta?

— Passei a noite acordado, observando as estrelas depois do ritual.

— Você deveria ir visitar a Gruta do Diabo com calma. Pena que eles a manterão fechada pelos próximos dias.

— Fechada por causa de que?

— Fazem isso depois de todo ritual, é coisa normal. Mas eu tenho a chave que abre o portão, você pode ir lá.

— Obrigado, eu acho. — eu ainda estava perturbado e incomodado com os últimos acontecimentos. — Eu sei que a senhora vai rir da minha cara, muito provavelmente, mas ontem eu vi aquele índio de novo.

— O que? — Ela parou no meio do salão, e permaneceu imóvel por alguns instantes. — Tem certeza Henrique? — Sua expressão estava séria.

— Tenho. Eu... — fiz uma pausa, pensando se deveria contar a verdade. — ...desmaiei quando ele se aproximou de mim ontem, e acordei só agora pela manhã.

Ela estava pensativa. Era engraçado o jeito como ela franzia as sobrancelhas enquanto fazia isso.

— Talvez seja um guia do passado. Existem lendas, sabe. E você disse que ele se aproximou na gruta? — concordei com a cabeça — Interessante.

Ela se sentou à minha frente e respirou fundo.

— O que pode me contar sobre, Dona Ribeiro? — perguntei.

— Reza a lenda de que a Gruta do Diabo é um Portal para viajantes antigos. Nos séculos passados, antes do homem branco chegar a essas terras, indígenas e quilombolas dividiam estas terras e colocavam suas colheitas na entrada da Caverna, para que durassem mais tempo, sem estragar.

— E de onde saiu esse nome? Gruta do Diabo?

— Se ouviam vozes vindas de dentro da gruta. Os quilombolas interpretavam como vozes do Diabo. Da alma de pessoas aflitas e perdidas. Ao contrário de nós indígenas. Sabemos que a Gruta é a fonte de um poder maior do que nós aqui na terra, e alguns acreditam ser um portal para outro tempo. Em 1887 uma mulher quilombola desapareceu dentro da gruta. Vinte homens foram em missão de resgate e nunca mais voltaram. Seus corpos nunca foram encontrados e todos que desapareceram na gruta, jamais retornaram. Há quem diga que de tempos em tempos, um guia espiritual do passado aparece vestido com um cocar e o corpo pintado, para guiar os viajantes.

— Viajantes?

— Sim, os Viajantes que atravessam o portal em busca do passado. Há relatos de pessoas desaparecendo ao longo dos anos naquela gruta, após terem dito ver um índio que só elas viam.

— E a senhora quer que eu volte lá pra que? Pra morrer? Porque é óbvio o que acontece com as pessoas que entram lá.

— Não seja bobo Henrique, lendas são só isso mesmo, lendas! Vai ser bom pra você explorar e você vai gostar. A Gruta é linda e eu posso ir com você, se estiver com medo. — Ela riu.

— Eu? Com medo? Deixe disso! — respirei fundo e estendi minha mão para ela. — Passe logo essa chave pra cá.

Peguei a chave e sai logo em seguida até a gruta, antes que ela me atazanasse ainda mais com toda aquela história. “Eu com medo? Dona Ribeiro que é abusada, isso sim. Contado história pra boi dormir”. “Guia do Passado... é cada coisa que a gente ouve por aí”.

Cheguei a entrada da gruta após uma caminhada de quase trinta minutos. Não tinha reparado durante a noite, mas era linda. Abri o cadeado do portão e entrei. Estava receoso, mas segui em frente. Desci pela escada de pedra, em uma espécie de hall da gruta. Deus, como era lindo todas essas estalagmites. As formas da escada e da passarela embelezavam ainda mais o local. Havia um pouco de água no chão e um passarela continuava gruta adentro, levando para outros pedaços. Até me esqueci da história boba da Dona Ribeiro sobre a Gruta ser um portal para viajantes.

Continuei andando pela passarela, quase um quilometro gruta adentro. A água era cristalina e dava pra se ver a fundura de cada local, e como era fundo! Fiquei algum tempo ali, admirando a beleza do local. Desejei nadar naquela água, mas não ousaria, pelo menos não sozinho. Me virei para ir embora, já devia ter escurecido do lado de fora, e foi quando me deparei com aquele índio pela terceira vez em dois dias. O mesmo arrepio da noite passada tomou conta de meu corpo e eu paralisei. Conseguia vê-lo melhor desta vez, à medida que eu me acalmava. Seu cocar era cheio de penas, e ele não usava nada além de um tanga para cobrir suas partes intimas. Seu corpo estava todo pintado de preto e vermelho, com desenhos em vários formatos e direções.

E então, antes que eu pudesse reagir ou falar, ele me empurrou bruscamente da passarela. Atravessei por cima da barra de proteção e cai dentro da água. Estava tão fria. Foram se como mil facas perfurassem o meu corpo, de novo e de novo. Consegui subir a superfície, gritando por ajuda. Ele apenas me olhou e deu meia-volta. Comecei a afundar. Nunca nadei muito bem, apenas o suficiente para não me afogar, mas não importava o que eu fizesse, nada me fazia voltar a superfície de novo, para longe das águas gélidas da gruta. Uma bola de canhão parecia ter sido amarrada aos meus pés, me levando cada vez mais para o fundo.

Um barulho tomou conta dos meus ouvidos. Primeiro um forte zumbido incessante e depois o som de tiros abafados e o que pareciam ser espadas e gritos. Sons de cavalos, carruagens, vozes. Me senti em uma montanha russa fundida a um kamikaze, que não parava de rodar e acelerar, me virando do avesso. Sentia a minha pele se rasgar e meus ossos se quebrarem. Tudo isso era verdade, mas nada disso poderia descrever a sensação com clareza. Eu sentia tudo girar, mas ao mesmo tempo se manter parado. Uma forte sensação de terror tomou conta de mim, que perdi a noção de quem eu era e de que estava começando a me afogar. Os zumbidos aumentaram, minha visão se turvou e por fim escureceu completamente.

Acordei a tossidas, cuspindo água de meus pulmões, tentando assimilar o que havia acontecido. Eu não havia me afogado, isso era certo, e me senti aliviado com isso. Ainda assim, nada fazia parar a constante sensação de náusea que revirava o meu estômago do avesso. Quando dei por mim e de tudo o que havia acontecido, foi que notei que a escada e a passarela da gruta que antes estavam lá, haviam desaparecido, juntamente com as luzes artificiais que iluminavam a caverna. Me lembro de pensar nas possíveis teorias do que havia acontecido, mas nada explicaria tudo aquilo. Ao menos não com lógica.

Resolvi escalar até a saída, já que seria melhor do que ficar ali parado. Talvez eu tivesse ido parar em outro pedaço da gruta, mas isso seria possível? Não sei. Não foi difícil escalar até o topo. Poucos minutos depois e eu estava do lado de fora, mas ei, onde está o portão? Antes mesmo que eu pudesse terminar de refletir, índios saíram correndo de dentro da mata aos gritos, com arcos e flechas nas mãos, disparando contra algo ou alguém que parecia vir logo atrás. Me escondi atrás de uma das pedras, observando aquela cena, no mínimo curiosa. Cavalheiros trajados de forma esquisita, com uma espécie de traje militar e bicorne, sim bicorne, atirando com mosquetes, contra os índios. Todos entraram na mata novamente, no que parecia ser uma perseguição constante. Corri floresta adentro, indo em direção da pousada. O que seria tudo aquilo? Uma encenação para um filme? Após horas andando em círculos, eu não conseguia achar. Fiz e refiz o caminho várias vezes, pensando onde eu havia virado errado.

Ouvi barulhos de cavalos, e me aproximei, até dar em um estrada de terra. Uma carruagem agora? Voltamos ao século dezenove ou o que?

Um pedaço de papel voara de dentro da carruagem, vindo parar aos meus pés com o vento. O peguei, abrindo para ver o que estava escrito. Parei por um instante, relendo o papel várias vezes para ter certeza do que eu via.

— Mas que porr...


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Notas finais do capítulo

E aí, gostaram? O pequeno jornal no fim foi feito com base em imagens verdadeiras do Correio Braziliense (1808-1822) e das próprias notícias, com uma leve incrementada de minha parte.

Até a próxima!



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