A Lenda do Exílio escrita por Lunéler


Capítulo 9
Mutilação


Notas iniciais do capítulo

Ciorã precisava chegar ao fundo do poço para ter fé.



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O temperamento de Ru estava impregnado no todo. Sentia como se tivesse sido fragmentado e espalhado pelo mundo. Havia sentimentos que até mesmo o Criador desconhecia. Seu eu fora replicado em toda parte, trazendo resquícios nem sempre dignos. Na verdade, talvez seus defeitos estivessem sufocando suas virtudes, moendo os bons sentimentos.

Os nervos de Ru estavam a todo vapor. Sua instabilidade rasgava os panos da sanidade com os próprios dentes, pois, nesta época, ele já nutria alguma simpatia por Ciorã, absorvia suas dores e, particularmente, seu ódio por Taraã. Sua existência era um como um vulcão com incontrolável pressão, prestes a estourar e espalhar pelo mundo sua genética contraditória. Entretanto, o líder sentia também que uma grande descarga emocional estava se projetando sobre ele, indiscriminadamente. No fim, nem um nem outro sabia quem tinha dado origem à raiva.

Ciorã acordou de um longo período de inconsciência. Estava frio e úmido e seus músculos responderam com câimbras nas panturrilhas. Contorcendo-se, ele se arrastou até uma das paredes da caverna e tomou fôlego para se levantar. Ainda estava muito escuro e, da fresta aberta pelos trabalhadores, não emanava luz alguma. Gritou por socorro incontáveis vezes, mas ninguém respondeu.

Quando amanheceu, a luz se espalhou pela câmara e mostrou o cadáver de Quebra-Pedras. O sangue ainda estava espirrado por toda parte. Era horrível ver a face de um de seus homens desfigurada. E tudo o que Ru dissera estava se cumprindo, Ciorã teria de comê-lo. A fome já o deixava atordoado. Então, com muito nojo, puxou com as unhas uma lasca da pele do braço de Quebra-Pedras, com força, até que ela se desgrudasse da carne. Ele não podia demorar muito, se não a carne poderia apodrecer. Resolveu, pois, encarar seu desafio.

Fechou os olhos e com os dentes mordeu a parte exposta, bem onde tinha removido a pele. O sangue estava frio e a carne dura, devido à contração muscular do defunto. Pouco a pouco, ele ingeriu uma generosa porção de Quebra-Pedras. Diante da fome, o nojo se foi. Sendo ou não um ato digno de um líder, isso impediu que ele morresse. Ganhou energias para gritar novamente e usar a força para atirar as pedras umas contra as outras, na tentativa de rachá-las.

Durante mais três dias esteve trancado lá, alimentando-se de Bujoel e tomando a água da chuva acumulada no fundo da caverna. Mesmo depois de perder as esperanças, ele não desistia da sobrevivência, embora soubesse que logo a carne restante do cadáver se estragaria, e ele morreria de fome.

A voz de Ru surgiu no outro lado da câmara.

⸺ Boa noite, Ciorã.

Ciorã correu até a pequena abertura para vê-lo. Mas estava muito escuro.

⸺ É você, Ru?

⸺ Sim, sou eu. Quem mais seria. Ninguém mais vai vir vê-lo. O tempo já avançou demais. Acho que eles não precisam mais de você. Taraã está no controle.

⸺ Ru, por favor, me ajude. – havia desespero na voz de Ciorã, um desespero que clamava por vingança.

⸺ Eu não posso.

⸺ Você é o Criador, merda! Faça alguma coisa. – Gritou, furioso.

Ru ficou em silêncio, depois trouxe algumas palavras entusiasmadas.

⸺ Sabe de uma coisa, Ciorã? Acho que você está pronto para entender.

⸺ Entender o que? – Cuspiu as palavras com impaciência.

⸺ Entenda... Existem coisas que só podemos obter quando chegamos definitivamente ao fim do poço. Nossa mente se bloqueia pela racionalidade, nos faz ficar cegos para as alternativas.

⸺ E já não estou no fundo do poço??? Estou comendo a carne de um de meus subordinados. Estou à beira da morte.

⸺ Não seja dramático, Ciorã. Quando pensamos que não podemos mais aguentar, ainda nos resta um bom percentual de ânimo para sobreviver.

⸺ Me ajude, por favor! – Ciorã se debruçou sobre a parede de pedras, a frente da abertura, deixando as mãos escorrerem em súplica. Sua expressão era de incontestável auto piedade.

Ru se foi. Horas depois, Ciorã acordou com um facho de luz em seu rosto. Levantou e sentiu cheiro de carne podre; seu alimento já estava se decompondo. Só então, ele verdadeiramente perdeu as esperanças, desistiu de fato de sobreviver. Deixou seu corpo ser ruído pelo tempo, enquanto estava encolhido em posição fetal no chão, vendo as moscas pousarem sobre a pele de Quebra Pedra. De repente, acompanhou o movimento de uma delas, que pousou sobre uma rocha. Levantou-se e foi até a pedra. Com a palma da mão, tentou acertá-la, errando inutilmente.

Porém, sentiu a pedra se mover um pouco. Não era muito grande e também não tinha se mexido muito, mas Ciorã forçou-a para um lado e para o outro, até que ela se soltou. No início, não tomou fé de que aquilo seria útil, mas tentou forçar outra pedra próxima, obtendo êxito também nesta. As poucos, foi tateando cada uma delas até encontrar as que estavam frouxas.

“Não é possível! Como não percebi que estas estavam soltas?” Pensou. Mas também pensou que Ru poderia tê-las movido discretamente, pois não podia explicar como aquelas pedras estavam se soltando, ele havia forçado todas elas com brutalidade. O fato é que, de pouco em pouco, removeu muitas pedras. Elas estavam tão soltas que era difícil de acreditar. Era como se estivessem apenas encaixadas umas nas outras de forma completamente tétrica. Uma não se movia se a outra não fosse retirada primeiro. Era uma sequência. Tentativa e erro. Puramente rochas acomodadas de forma sobrepostas, firmando-se sobre si mesmas.

⸺ Está vendo, meu caro? Não se trata de força, é técnica! – A voz de Ru surgia do outro lado.

⸺ Obrigado, Ru. Sei que está colaborando. – Ciorã estava entretido com a remoção das pedras.

⸺ Eu não fiz nada... As rochas sempre estiveram dessa forma, você apenas precisava entendê-las. O que fiz foi instiga-lo a chegar ao limite. Perder as esperanças é um ato derradeiro que pode fazer-te emergir, vir à tona. As pessoas só tem fé quando não tem nada mais a perder.

Ciorã já não estava mais interessado no que ele dizia. Buscava desesperadamente a remoção daquelas pedras, pois conseguia enxergar outros pequenos fachos de luz. Retirando uma após outra, finalmente sentiu a estrutura se abalar. Se afastou e, em poucos segundos, o paredão veio abaixo, suspendendo muita poeira, que refratava a luz do sol.

Com rapidez, saltou por cima das pedras para tentar sair, enquanto o sacolejo anunciava que um novo desabamento aconteceria. Com o som quebradiço das rochas, pedaços enormes de pedras se projetaram por toda a parte. As paredes da caverna chacoalharam e começaram a ruir. Correu, ainda tropeçando, enquanto ouvia as rochas acima dele trincarem. As rachaduras recortaram as paredes e logo porções de pedras se desprenderam do teto e caíram. Coirã desviou de uma rocha que cairia sobre sua cabeça, soltou por mais duas outras.

Uma pedra menor caiu sobre o ombro dele, derrubando-o. Ele logo se levantou e fugiu, por pouco não sendo esmagado por uma rocha de oitocentos quilos. Finalmente ele conseguiu chegar à saída da caverna. Com desespero aspirou o ar limpo do litoral, ainda ofegante. De onde estava, viu o oceano se estender no horizonte e o desfiladeiro íngreme de pedras se perder logo a sua frente.

Com muitos hematomas, Ciora caminhou pelas trilhas em direção ao Largo. Durante várias horas ele se deslocou pelo desfiladeiro, se alimentando de pequenas raízes que se fixavam no paredão. O ferimento de sua perna ardia muito e a pedra que caiu sobre seu ombro talvez tivesse trincado sua clavícula direita. Por isso caminhava com lentidão.

Ao cair da noite, ele já podia avistar o Largo lá de cima. Pensou em como deveria aparecer e resolveu que passaria algum tempo espionando seus homens, pois queria ver os desdobramentos do comando de Taraa, entender o que tinha mudado. Mal podia controlar a sua ânsia por vingança, mas não queria arriscar.

Durante aquela noite, ficou escondido nas matas, olhando de longe. Percebeu que o grupo estava uma grande balbúrdia. Os estoques de alimentos estavam deficientes. Perdeu-se o controle sobre o ritmo de trabalho, os trabalhadores não estavam sendo monitorados.

Na madrugada, veio sorrateiramente até a morada de Querri. Ele o considerava seu subordinado mais confiável. Em total silêncio, atravessou o campo da Fagulha e chegou a Vila Circular. Todos dormiam. Chegou até a casa de Querri e o viu pela fresta da porta dormindo com sua companheira.

⸺ Querri! - Chamou em cochicho.

Ele não ouviu. Então o líder abriu a porta lentamente, se aproximou da cama dele e o sacudiu.

⸺ Querri, sou eu. Acorde!

Ele acordou sonolento e assustou-se, dizendo em voz baixa:

⸺ Ciorã, é você? O que está fazendo aqui. Pensei que estivesse morto.

⸺ Shhhh! Fale baixo. Venha, preciso conversar com você.

            Ciorã saiu da casa em silêncio, enquanto Querri vestia sua roupa. Os dois se afastaram para o bosque mais próximo.

⸺ Vamos, me conte tudo. O que Taraã tem feito?

⸺ Poxa, Ciorã, como estou feliz em te ver. Vamos aos fatos... Ele está levando o grupo ao fracasso. Trouxe para perto dele os amigos mais chegados e os colocou como Chefes de Setores. Eu, Lió, Duan e todos os outros nos tornamos operários comuns agora. Mas os paspalhos que ele pôs para chefiar não são capazes de fazer o trabalho mínimo, nem sequer conhecem suas funções. Veja que absurdo! Colocaram um qualquer para chefiar o grupo de pesca, um operário preguiçoso e indisciplinado que não sabe a diferença de um peixe para uma galinha. Nem ao menos sabe operar as armadilhas. Taraã é inconsequente, ignorante, idiota...

⸺ Calma, Querri. -  Ciorã tentou acalmá-lo ao ver sua exaltação.

⸺ Escute, Ciorã. Você precisa fazer alguma coisa, precisa tirá-lo do comando, colocar ordem no grupo. Taraã não está interessado em manter sua liderança, apenas quer usufruir de todas as regalias de um líder, sem ter tal direito. Ele está disseminando mentiras sobre seu desaparecimento, dizendo que você nos traiu, que nos abandonou a própria sorte. Sempre que alguém contesta suas ordens, ele os chicoteia. A forma de gerência dele é péssima. As plantações estão ruindo. Ele não se importa com a alimentação e o bem estar do grupo.

⸺ Fique tranquilo. Ao amanhecer as coisas vão mudar. Vou mata-lo. – Ciorã sentiu satisfação em dizer.

⸺ Chefe, tem certeza de que essa é a decisão mais acertada? Apesar de todos os erros dele, lembre que ele tem filhos e uma esposa. Estará punindo pessoas inocentes por consequência. Quem vai prover o sustento deles?

⸺ Entendo seu ponto de vista, Querri. Mas... – titubeou – já tomei minha decisão.

⸺ Como queira, Chefe. – Querri demonstrou respeito.

O pescador seguiu para sua casa e Ciorã se embrenhou no matagal. Furtivamente, passou em uma das fornalhas do setor de forja de armas e pegou uma faca. Estava determinado a assassinar Taraã, mas também estava tremendamente tomado por um sentimento intenso: o desejo de ver Doma e seus filhos. Contornou os galpões provisórios e adentrou pelo Bosque Cortado até chegar na sua residência.

De imediato, sentiu saudades de seu lar e pensou em entrar, mas hesitou ao ver uma placa na porta da frente em que estava escrito traidor. Deu a volta pela lateral da casa e espiou pela janela do quarto, onde viu sua esposa dormindo, abraçada a seus dois filhos. Sentiu um nó na garganta, segurou um choro que tinha origem no misto de alívio e emoção. Vendo que ela estava segura, abriu espaço em sua mente para voltar a seu objetivo. Correu por trás das estrumeiras e contornou Bosque Sereno até chegar à casa de Taraã, adentrando em silêncio.

Ciorã finalmente o encontrou. Ao menos não tinha tomado sua residência. Estava em sua própria cama, dormindo, com expressão relaxada, deitado de bruços. Os cabelos ruivos e volumosos se espalhavam no lençol branco de linho. Ele imaginava que logo aquele lençol estaria tingido de vermelho.

Sorrateiramente, andou nas pontas dos pés até estar ao lado da cama. Lili dormia profundamente ao lado dele, naquele momento o pensamento dele era inconsequente, direcionado apenas para o assassinato de Taraã. Ele não havia considerado em sua decisão o sofrimento espontâneo que causaria a Lili e aos filhos dela.

Ajoelhou-se no chão e aproximou as mãos do pescoço de Taraã. Daquela posição, podia até mesmo ouvir o som da respiração dele. Seus dedos tremiam em ódio e suas mãos queriam esganá-lo. Mas então fechou os olhos e pensou de novo sobre o seu plano. Uma morte repentina e rápida era o que havia planejado. Com a mão direita, puxou a pequena faca da cintura. Segurou o cabo com as duas mãos e apontou bem na sua nuca. O nervosismo o fez prender a respiração. A ponta da faca tremia, fazendo o reflexo da lâmina se projetar em seu rosto.

Começou a suar frio, e quando o fechou os olhos para mata-lo, sentiu um par de mãos grandes e ásperas envolver as suas, impedindo o movimento da arma.

⸺ Shhhh... – Uma voz sussurrou em seu ouvido.

Ciorã arregalou os olhos e soltou a respiração, enquanto tinha os movimentos conduzidos pelo indivíduo. Ele não podia vê-lo, pois estava atrás dele.

A pessoa o fez trazer a faca para si e guarda-la. Depois o fez levantar-se lentamente em silêncio. Ciorã se perguntava quem seria o traidor.

Pelo tamanho das mãos e o comprimento dos braços, supôs que era um dos homens maiores e mais fortes. Bujoel estava morto... Talvez fosse Muriel, Dondô, ou um dos seus homens apelidado de Montanha. Mas... não. Nenhum deles seria tão ardiloso.

Então Ciorã  notou que não havia força nem agressividade naquele movimento. Ele estava apenas sendo conduzido. O homem o soltou.

⸺ Venha – A voz de Ru chegou aos seus ouvidos de uma maneira suave, ainda em sussurro.

Ciorã virou-se para vê-lo, mas ele já estava de costas, atravessando a porta da casa. Viu que ele era alto e forte e vestia uma manta vermelha com adornos dourados. Ainda sendo cuidadoso com os ruídos, saiu da morada para encontra-lo, mas ele não estava mais lá. Olhou ao redor, no lado de fora, e não havia ninguém. Até que viu, em um canto nos fundos da residência, um homem sentado, em meio ao monte de lixo e velharias.

⸺ Vamos, não tenho todo tempo do mundo.

Ciorã se aproximou cautelosamente. Notou que Ru estava coberto com a capa vermelha e um capuz da mesma cor, que deixava seu rosto completamente coberto. Em silêncio, sentou-se ao lado dele, no meio da poeira e das teias de aranha.

⸺ Vi que esteve perto de realizar um desejo antigo. – Ru parecia desinteressado, entediado. -  Mas eu tenho uma ideia melhor.

⸺ Qual?

⸺ Acho que você deve se render.

⸺ O que? – Ciorã se exaltou.

⸺ Shhhh. Venha cá.

Ciorã inclinou o rosto em sua direção, como se para ouvir um segredo, que foi dito com tom de voz bem baixo. O hálito de Ru tinha cheiro de óleo queimado. E depois Ciorã se entregou aos dois soldados que patrulhavam a vila. Até mesmo eles tiveram receio de prendê-lo, por mais que Taraã tivesse sido claro quanto a esta ordem. De toda forma, o líder foi levado ao pavilhão de carceragem.

Estar em uma daquelas celas, mesmo que por pouco tempo, era uma experiência desagradável. O fazia pensar sobre o quanto a privação de liberdade poderia dilacerar a mente humana. Ele ficou lá tão somente o resto da noite, pois ao amanhecer, Taraã veio visita-lo.

⸺ Ora Ciorã, é uma surpresa tê-lo aqui. – Havia deboche.

⸺ Não gosto de cinismo! Faça logo o que veio fazer aqui.

⸺ Se acha que vim mata-lo, saiba que eu jamais faria isso. Afinal de contas, você era o líder. Era – destacou – E não estou disposto a colocar minha fama em risco ao matar alguém tão adorado por todos.

⸺ Do que está falando? – Ciorã tentou sustentar expressão surpresa, mas não conseguiu, pois sua liderança sempre foi inquestionável.

⸺ Você sabe! Não se faça de sonso. Só não consigo entender porque as pessoas insistem em amar um traidor.

⸺ Traidor?

⸺ Você os abandonou. Resolveu ficar sozinho naquela caverna. Pelo menos é o que todos dizem. – Taraã deu um riso irônico. – Mas não se preocupe, esta manhã vou mostrar a todos quem você é.

*  *  *

Todos estavam reunidos na fagulha. No pouco tempo em que Taraã esteve à frente do grupo, mandou que erguessem ali uma estrutura de madeira alta, como se fosse uma torre. Quis que fosse assim para transparecer sua superioridade perante os outros. Ciorã foi trazido pra lá, acorrentado nos pés e nas mãos. Subiu as escadas, conduzido por um soldado, que cochichou perto dele “não o deixe fazer isso, senhor”.

Em seguida, Taraã subiu as escadas, estufando o peito. O olhar soberbo e o sorriso falso em seu rosto escancaravam sua índole. Estava usando a túnica marrom de Ciorã. Abriu os braços esperando uma salva de palmas, mas as pessoas demonstraram total desânimo e desaprovação ao ver o rosto abatido de Ciorã. Então ele foi até um autofalante rudimentar que os músicos haviam construído e fixado no batente para falar.

⸺ Hoje temos a nossa frente a figura desaparecida de Ciorã, o antigo líder de vocês. – Começaram alguns burburinhos. – Ele se entregou a mim hoje de manhã. Como muitos sabem, era um foragido. Ele abandonou seu povo para viver na solidão de uma caverna, somente porque se achava superior a nós. – Houveram alguns risos na plateia.

Ciorã estava de joelhos, com a mãos amarradas para trás, a expressão séria. Olhava no fundo dos olhos de seus homens, sem vergonha, sem medo.

⸺ Todos sabemos que ele tem um segredo que não quer dividir com ninguém, o que faz dele o mais egoísta de nosso grupo. Por isso, resolvi trazer justiça hoje. Vamos tirá-lo do poder formalmente, para que seu nome seja lembrado como traidor.

Criaram-se focos de uivos e gritos, um misto de indecisão, de antagonismo. Porém, logo os que demonstravam apoio à Tarãa começaram a se envolver pelos que eram contra ele. A massa foi se inflamando como se estivesse se espalhando, contagiando os demais. Era como um organismo sendo tomado pela metástase. E Ciorã lembrou-se sobre a conversa com Ru em que ele explicou sobre ser ovelha ou lobo. “Ninguém quer pensar, quer que pensem por eles. É por isso que em qualquer grupo social, a maioria dos membros toma suas decisões baseado na decisão dos lobos. São apenas ovelhas.”

⸺ Vejam! Este homem nos traiu! Abandonou seu grupo para ficar falando sozinho pelos cantos.

“Estaria ele me vigiando?” Pensou Ciorã.

⸺ Mas agora, vocês terão a chance de vê-lo admitir o seu erro e ser punido. – Houve uma pausa. – Quinze chibatadas? O que acham?

E então Ciorã viu que Ru estava certo ao dizer que a violência é inerente ao homem. Apenas isso, violência por violência. As pessoas canalizavam seus ódios pessoais para a primeira válvula de escape que surgisse. Projetavam o ódio em quem quer que fosse, apenas para sentir o sangue ferver, a vibração da coletividade. A multidão se inflamou quando Taraã sugeriu as chicotadas. E poucos segundos, todos foram à loucura. O líder ouviu um grito “quinze é pouco!”.

E então Taraã sorriu satisfeito e mandou que tirassem a camisa de Ciorã, colocando sua cabeça contra o chão, para que ficasse com o dorso à mostra. Sem cerimônias, desenrolou das mãos o chicote com ranhuras de ferro, o mesmo que o líder usava nos tempos de açoite, e desferiu o primeiro golpe. Ciorã soltou um grito abafado e contraiu os músculos.

As pessoas foram a loucura quando viram o sangue espirrar contra a luz o sol da manhã. E Taraã deu mais um golpe. E mais um. E novamente. Ciorã suportava cada chicotada sem desespero, apenas de olhos fechados, balbuciando: “Vamos Ru! Não demore!”

Depois da décima chibatada, Taraã parou para descansar, tomando fôlego, sorrindo perante a multidão em delírio. E quando levantou a mão novamente e executou o golpe, o chicote se incendiou repentinamente, desintegrando-se, assim como a mão do agressor, até a altura do punho. Nesse instante, todos ficaram boquiabertos e emitiram um som de espanto coletivo.

Ciorã sentiu as correntes que prendiam suas mãos se esfarelarem em chamas e se pôs de pé. Um pouco ofegante, o corpo ainda curvado para frente, encarou as pessoas a sua frente, espantadas. Olhou para o lado e viu Taraã gritar com desespero, segurando seu punho carbonizado. Era a primeira vez que as pessoas viam uma atuação autêntica de Ru. Ciorã foi com espontaneidade para o alto-falante e disse:

⸺ Eu tenho um segredo para contar! – Todos ficaram em silêncio, atônitos. Os gritos de Taraã se destacaram. – Eu não falo sozinho... Falo com Ru, nosso criador! Sou o porta voz dele.

De início as pessoas ficaram confusas, sem entender do que se tratava. Ciorã apontou para as cinzas do chicote e disse:

⸺ Ru foi o responsável por isso! Isso é justiça! Todos sabem que enquanto estive preso naquela caverna, Taraã disseminou mentiras contra mim. Mas cá estou, de novo a meu posto de líder. E trago as mensagens de nosso Criador.

Ciorã esperou as pessoas diluírem aquelas informações, por mais que fossem de certo modo imprecisas para um grupo incipiente como aquele.

⸺ Aqueles que ainda forem leais a mim, levantem a mão. Com Ru, teremos uma fase próspera e feliz no Largo das Campinas.

E como a onda do mar, as pessoas ergueram a mão. A admiração por Ciorã estava adormecida em cada um deles, pois fora construída de maneira sólida e duradoura.

Nos dias subsequentes, as coisas ganharam contornos positivos no Largo. Querri, Lió, Berió, Shur e Duan, foram novamente alocados como chefes de setores. Taraã foi destituído do cargo de subcomandante e preso nos galpões carcerários. Ciorã se encarregou pessoalmente de cuidar de Lili e dos filhos de Taraã, mantendo os confortos deles, pois os considerava apenas vítimas da conduta desviada dele.

Em um momento oportuno, Ciorã contou a verdade sobre Bujoel e promoveu um velório simbólico para ele. Apesar dele ter sido sempre ridicularizado por seu biótipo e sua personalidade, havia conquistado o carinho e admiração de seus pares.

Ciorã tratou de trazer ao Largo das Campinas o ritmo que havia antes de Taraã usurpar o poder. Nesse ponto, os operários não precisavam mais ser agredidos para renderem no trabalho. As colheitas, a pesca, a culinária, tecelagem, criação de animais e a música voltaram a se expandir para o bem coletivo.

Durante meses, Ciorã viu sua vila crescer e prosperar. Nesse período, não teve conversas com Ru, nem mesmo o procurou. Entretanto, era impossível não constatar que a ajuda do Criador o tornou um homem mais poderoso. Ele havia se apoiado no nome de Ru, consentido em arquitetar o plano para se promover. Isso não apenas fez Ciorã ser mais respeitado, mas depositou esperanças no povo, pois sendo ele o único capaz de falar com Ru, era especial e distinto. A magia de ter o chicote e a mão de Taraã carbonizados legitimaram o novo cargo de Ciorã: o porta-voz e representante de deus.

Todavia, a relação entre o Criador e Ciorã não se resumia em benefícios unilaterais, pois o oportunismo era impossível de ser freado. Para Ru, nada era de graça.


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Notas finais do capítulo

Nada era de graça.



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