A Lenda do Exílio escrita por Lunéler


Capítulo 8
Canibalismo


Notas iniciais do capítulo

Não cochile!



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As rajadas de ódio emanadas por Ru pareciam ficar distantes. Seria lógico dizer que seus ânimos se acalmaram quando ele encontrou Ciorã. Aquela relação era sua válvula de escape para a solidão. Mas os atos do Criador eram imprevisíveis, não era possível determinar se o Largo das Campinas existiria no dia seguinte.

Longos anos correram no Morro Verde. O grupo de Ciorã havia sido integralmente afetado pelo sétimo grau, e isso motivou alguns dos homens a adotarem a monogamia. O nascimento de bebês, que antes era desordenado e numeroso, ficou restrito aos grupos familiares que se formaram. O líder tomou Doma para si como sua esposa, assim como Taraã escolheu Lidne. Os outros chefes do grupo base também passaram a se relacionar com apenas uma parceira, exceto Shur, que continuava tendo várias companheiras e gerando muitos filhos.

Os dias tomaram contornos calmos, especialmente na disputa de poder do passado entre comandante e subcomandante. Taraã parecia ter aceitado seu papel secundário naquele grupo. As festas na fagulha cresciam e a violência imposta pelo doutrinador foi atenuada naturalmente, embora ela já estivesse consolidada como costume do povo.

De toda tranquilidade que germinou dos dias estáticos no Largo, veio o nascimento dos filhos de Ciorã: Cioden e Domilis. O primeiro, dois anos mais velho que o segundo, tinha cinco anos. Eram tratados como príncipes no grupo, desfrutando de hierarquia desde cedo, principalmente em relação às outras crianças, até mesmo entre eles e os filhos de Taraã, Lidnésio e a recém nascida Lesnícia. Com o tempo, a organização do grupo se tornou mais estratificada, com precedências de alguns sobre outros. As desigualdades aconteciam cedo e se estendiam a quase todas as atividades do grupo.

Doma desfrutava de muito luxo, embora sua personalidade fosse simples e serena. Era uma mulher responsável, sensata e com valores como honestidade e justiça bem consolidados. Muitas vezes, as decisões de Ciorã tinham origem nos conselhos dela. Talvez todas essas características fossem, em termos, suplantadas por uma única que despontava sobre as demais: a bondade. Doma era de um coração bondoso e amoroso, mas não inocente. Apenas sua presença já trazia paz a quem estava por perto, pois a serenidade adoçava os olhos. Seus gestos eram sutis. Porém, isso não a fazia ser menos cobiçada, desejada principalmente pelos homens.

Ciorã havia se tornado um homem de poder incontestável. Ele não era apenas respeitado, mas também admirado. Ru lhe ensinou a ser justo e honesto, e não havia nada que os homens desejassem mais do que a justiça. Foi necessário que se construísse um complexo de prisão. Levaram meses para colocar de pé o enorme galpão, com trinta celas reforçadas com barras de aço, vigiadas dia e noite por soldados. Os que cometiam delitos permaneciam lá. De forma análoga, foi criado um sistema de recompensas aos que desempenhavam bem suas tarefas, concedendo maiores quantidades de comida, roupas de melhor acabamento, porções de terra para cultivar, além de outras pequenas vantagens.

Um dia Ciorã decidiu acompanhar uma das patrulhas de reconhecimento dos caçadores, que ia para as encostas dos morros na porção leste do Largo. Compunham o grupo seis homens, além do líder, e todos estavam armados com lanças. O objetivo era atingir uma porção do território ainda inexplorada, além do primeiro paredão de pedras. Para chegar à localidade, eles teriam de percorrer uma trilha bastante acidentada, às margens do oceano.

A jornada começou no amanhecer e, por volta da metade do dia, ainda não tinham chegado onde queriam. Como o terreno era extremamente pedregoso e de difícil acesso, tiveram de fazer várias paradas. Em uma delas, Ciorã observava os homens ao seu redor, sentados em descanso.

A maioria deles, assim como a maioria dos que compunham as equipes de Shur, tinham preparo físico bom e não se demoravam a escalar as encostas dos morros. Entretanto, um deles tinha o corpo muito mais pesado e tinha ficado para trás. Era alto e bruto como um grande gorila. Tinha ossos largos e era mais forte que os demais. Ciorã lembrou-se do rosto dele, o reconheceu como aquele que matara dois de seus homens por asfixia, anos atrás. Ele não sabia seu nome, mas sabia que todos os chamavam de Quebra-Pedra, uma referência a sua força.

⸺ Como está, Quebra-Pedra? Perguntou Ciorã, vendo-o ofegante terminando a subida.

⸺ Estou bem, chefe! Mas estou com fome.

Outro dos homens o olhou por cima dos ombros e disse:

⸺ De novo? Você já comeu três vezes desde que saímos.

⸺ Sou maior, como mais! Seu idiota! Se não vai me dar sua comida, cale a boca!

⸺ Calma, companheiros. – Ciorã interviu – Ninguém vai morrer de fome. Certo, Quebra-Pedra? Deixe para comer no caminho de volta. A propósito, qual é seu nome?

⸺ Sou o Bujoel, chefe!

E o grande Quebra- Pedra sentou-se de maneira desengonçada no chão. A visão que se podia ver das alturas onde eles estavam era algo sublime. O sol refletia forte no oceano e decorava a água de um dourado límpido. As ondas do mar, cerca de cinquenta metros ladeira abaixo, quebravam com violência. No horizonte, ao lado esquerdo, era possível ver uma tempestade acima do mar, com muitos relâmpagos e chuva.

⸺ Vejam, meus amigos. Estamos sendo poupados da morte. – Comentou Ciorã.

⸺ Chefe, acha que um dia a destruição vai voltar para nos pegar?

⸺ Bom, Bujoel. Na verdade ela nunca se foi. O caos sempre esteve no mundo, mas alguém está nos protegendo. O Largo das Campinas é um lugar seguro... ainda.

⸺ Com certeza, chefe! Se um dia o Largo for destruído, fugiremos para outro lugar. E eu vou levar muita comida!

⸺ Você só pensa em comer, seu gordo! – Disse um dos viajantes.

⸺ Vamos, rapazes! Está na hora de retomar a viagem. – Ciorã interrompeu a discussão.

A caminhada continuou. Em um trecho da trilha, porém, havia alguns troncos velhos caídos, impedindo a passagem.

⸺ Deixa comigo, chefe! – Quebra-Pedra se adiantou à frente de todos e removeu tronco a tronco com facilidade, atirando-os no precipício à esquerda.

Ciorã avaliava o comportamento dele, notando que era disciplinado e leal. Frequentemente se perguntava se não o deveria colocar como responsável pelo setor de construção, dada sua força física. Mas não! Apesar de ser bem intencionado e respeitador, Bujoel não era muito inteligente. Geralmente levava mais tempo para aprender do que os outros. Sua inocência e ignorância não permitiria tomar as rédeas de um setor e obrigar os homens a trabalhar. De qualquer forma, o líder sentia-se bem por saber que podia confiar nele.

Mais algum tempo de viagem os levou a um local extremamente perigoso, em que precisaram escalar as encostas da montanha, agarrando as pedras com as pontas dos dedos, um após o outro. Logo, uma nuvem grande começou a se formar sobre eles e os obrigou a interromper o deslocamento. Em pouco tempo a chuva ficou forte e deixou as pedras molhadas o suficiente para tornar o retorno muito arriscado. Assim, foram forçados a buscar abrigo em uma caverna.

Adentraram por corredores estreitos e apertados até encontrarem um salão um pouco maior onde puderam se acomodar. A pausa forçada os reuniu amontoados nas pedras. Á água escorria para dentro da caverna com rapidez.

⸺ Vamos ficar aqui o tempo todo? – Questionou Bujoel.

⸺ Calma, grandão! A chuva vai passar. – Ciorã não tinha muita certeza disso.

⸺ Estou com fome!

⸺ Quebra-Pedra, esqueça sua fome! Você tem de economizar comida agora. – Ciorã mantinha sua postura serena.

O grandalhão resmungou algumas palavras mal pronunciadas, cruzou os braços e fechou sua expressão. Com o tempo, ao invés de passar, a chuva aumentou de intensidade, fazendo com que a água entrasse mais rápida pelos corredores da caverna, forçando os homens a ficarem sobre as pedras para não molharem as canelas.

⸺ Chefe. Temos que tentar alguma coisa, ou vamos nos afogar. – Disse um de seus homens.

⸺ Fique calmo, se sairmos agora seremos atirados ao mar.

⸺ Mas chefe...

⸺ Eu dito as regras aqui! – Ciorã tomou postura severa. – Confiem em mim!

Nesse momento, todos se calaram e aguardaram a chuva passar. Mas não havia trégua e, determinado momento, houve um grande sacolejo nas paredes da caverna. Todos se assustaram, observando o entorno pouco iluminado. De repente, o teto da caverna desabou e muitas pedras vieram abaixo sobre eles. O estrondo foi grande e, com sorte, nenhum membro foi esmagado pelos escombros.

Quando a poeira do desabamento se assentou sobre a água, Ciorã percebera que ficara preso em um dos lados da caverna, junto de Quebra-Pedra. A outra parte do grupo foi separada deles. As rochas bloquearam a passagem.

⸺ Chefe, você está ai? – Perguntou um dos homens no outro lado, em meio às tosses por causa da poeira.

⸺ Sim. Eu e Bujoel estamos bem.

⸺ Vamos resgatar vocês.

Com pressa, os outros cinco homens tentaram mover as pedras. Porém, elas eram extremamente pesadas, impossíveis de remover com os braços. Quebra-Pedra tentou mexe-las, mas também não conseguiu, mesmo sendo dotado de enorme massa muscular. Após inúmeras tentativas a chuva passou e a água foi pouco a pouco sendo drenada pelo terreno.

⸺ Chefe, vamos retornar para o Largo e traremos mais gente para ajudar com essas pedras.

Ciorã concordou e sentou-se em um canto. Não lhe restavam mais alternativas senão esperar. O local era apertado e úmido, a altura do teto impedia que eles pudessem ficar de pé. A escuridão era completa, de modo que apenas o tato lhes servia para reconhecer o local. Os dois passaram um bom tempo analisando a câmara em que estavam, mas não havia nenhuma saída e as pedras eram muito pesadas, estavam tão bem assentadas que não era possível movê-las um centímetro sequer. Em breve o tédio os atingiu e os fez sentar para esperar.

⸺ Como se sente Quebra-Pedra?

⸺ Estou bem chefe! É uma honra ficar preso na caverna com o senhor.

⸺ Também é uma honra ter você aqui, Bujoel. Você é um dos meus homens mais leais.

⸺ Sim, Chefe, O que o senhor desejar eu farei.

Ali dentro as horas pareciam ser dias. Ciorã não soube dizer quanto tempo havia se passado quando uma equipe retornou ao local.

⸺ Chefe, chegamos!

Os passos e ruídos indicava que havia pelo menos quinze membros de seu grupo do outro lado do paredão de pedras.

⸺ Vamos tirá-lo daí, senhor. Não se preocupe, trouxemos troncos e ferramentas. - Disseram.

Logo começaram as batidas e gemidos de esforço. Eles utilizaram os troncos para tentar alavancar as rochas, mas não tiveram êxito. Com marretas e picaretas, eles atingiam as pedras. Horas de trabalho foram desperdiçadas contra as rochas inutilmente, pois eram muito duras. Aos poucos as batidas foram cessando, demonstrando que os trabalhadores estavam cansados e desistiam do serviço.

⸺ Chefe, não está funcionando. Poucas pedras foram quebradas. Vamos retornar para revezar a equipe.

⸺ Não demorem! Estamos ficando com pouco ar aqui.

⸺ Não esqueçam de trazer comida. – complementou Quebra-Pedra - Estamos com fome e não tem o que comer.

⸺ Não se preocupem, retornaremos em breve. Não vamos desistir até libertá-los. Vamos trazer Duan, já que ele entende de destruir pedras. Ele deve conseguir algo para perfura-las.

Então aquele grupo saiu e horas se passaram na escuridão da caverna. Ciorã pensava em métodos que pudessem salvá-lo, mas naquele momento sua sobrevivência estava condicionada à lealdade e inteligência de seu grupo. Tempos depois, um novo grupamento chegou ao local, trazendo novas ferramentas. Já não parecia tão numeroso como o primeiro.

⸺ Chefe, aqui é o Duan.

⸺ Duan, preciso que você crie algo para perfurar as pedras, estamos ficando sem ar e não temos comida.

⸺ É pra já, Chefe.

Horas de conversa e planejamento permitiram que eles estudassem os locais mais frágeis do paredão e, utilizando um pesado soquete de madeira e ferro, desferiram fortes pancadas. Depois de muitas batidas, algumas rochas trincaram até fazer uma pequena abertura entre os dois salões. Quebra-Pedra veio com desespero e colocou o rosto na abertura para respirar. Em seguida, Ciorã fez o mesmo. Os dois já sentiam os sintomas da falta de ar.

Ciorã olhou pela abertura e conversou com Duan. Via alguns de seus homens sentados, exaustos. Por mais algumas horas eles trabalharam tentando criar uma abertura maior, mas foi inútil, as pedras que limitavam o buraco eram muito duras. A abertura era pequena demais para se transferir qualquer tipo de alimento.

⸺ Chefe, precisamos trocar a equipe!

⸺ Tudo bem, Duan. Vocês vão conseguir. Apenas não nos abandonem.

⸺ De jeito nenhum, Chefe! Somos leais ao senhor.

E novamente a solidão se fez presente. Pelo pequeno buraco, Ciorã conseguia espiar e ver a luminosidade do dia refletir nas pedras. Sem a escuridão absoluta e o completo confinamento, a dimensão do tempo parecia menos dilatada. Ele deduziu que estavam ali há apenas dois dias, o que era desesperador. Quando a noite caiu, Ciorã foi tomado pelo sono.

⸺ Psiu!

Ciorã acordou assustado.

⸺ O que houve, Quebra-Pedra?

Ninguém respondeu. Bujoel roncava como um enorme porco.

⸺ Quebra-Pedras, você está acordado? – Perguntou ele em completa penumbra.

Novamente não houve resposta. Ciorã teve alguns segundos de espera, depois se deitou novamente.

⸺ Psiu! Aqui do outro lado!

Era uma voz meio rouca, cochichando.

⸺ Quem está ai? – Ciorã espiou pelo buraco e viu precariamente um olho castanho observá-lo do outro lado.

⸺ Sou eu... Ru! – Disse ainda em cochicho.

⸺ Ru? O que está fazendo aqui?

⸺ Shhhhh! Não acorde o porcalhão! – Eu vim aqui visita-lo.

⸺ Quem é você? Como sabe da existência de Ru? – Ciorã jamais contara sobre seus contatos com o Criador.

⸺ Não seja idiota, Ciorã. Esqueceu que posso assumir a forma que eu quiser?

Ciorã refletiu sobre qual seria a atual aparência de Ru.

⸺ Você pode me tirar daqui?

⸺ Ciorã, isso está fora do meu alcance!

⸺ Como assim? Você é o Criador! Pode fazer o que quiser. Como você mesmo disse, foi responsável por criar tudo que existe. Por que seria difícil destruir algumas pedras?

⸺ Não é tão simples como parece, Ciorã. Tenho menos controle sobre minha obra do que imagina! Se eu tentar destruir essas pedras você e seu amigo grandalhão serão mortos. Não consigo controlar a intensidade de minha força.

⸺ Não há nada que possa fazer?

⸺ Bom... posso ao menos alertá-lo.

⸺ Sobre o que?

⸺ Sobre sua expectativa em seus subordinados! Não confie neles, meu amigo! O ser humano apenas é leal até o ponto que seus interesses são afetados. Mesmo aquelas cuja confiança é irrefutável, quando submetidas a situações extremas de sobrevivência e privação, são capazes de abandonar seus conceitos.

⸺ O que está querendo dizer?

⸺ Em primeiro lugar estou querendo dizer que seus homens já não tem a mesma vontade de tirá-lo daí. Com o passar do tempo, se não está presente, passa a ser abandonado. A lealdade se baseia na convivência moderada. Aos poucos, os liderados esquecerão você e o deixarão apodrecer nessa caverna. Quem não é visto, não é lembrado. E quem não é lembrado, padece nas trevas.

⸺ Isso é impossível. Meus homens são extremamente leais! Não me abandonarão. Eles precisam de mim, pois sou o líder. Eles não conseguirão sobreviver sem mim.

⸺ Ora, não seja tão prepotente! Acredite, após os graus de lucidez, qualquer ser humano é capaz de se adaptar. Se não há um líder, alguém assumirá com naturalidade esse posto. – Ru deixou escapar um riso de ironia.

O sangue de Ciorã subiu à cabeça fazendo-a latejar em ódio. O nome de Taraã surgia como um intruso em sua mente.

⸺ Não é possível! Não vou permitir que isso aconteça.

⸺ Para que isso não aconteça você deve sair daí. Aí está a segunda coisa que quero dizer. – pausou sua fala – Veja bem, está trancado sem ar, luz ou comida com o mais gordo e faminto de seus homens! Acha mesmo que ele vai te poupar porque você é o líder?

Ciorã ouvia o ronco alto de Bujoel.

⸺ Quando ele entrar em desespero, não sobrará outra alternativa a não ser comê-lo! E não se espante com isso, pois você fará a mesma coisa! Aquele que sucumbir primeiro vai atacar seu parceiro às dentadas! Vai mesmo esperar que o esfomeado do seu lado o ataque? Não existe outro jeito, você terá de sujar as  mãos.

Ciorã ouvia aquilo assustado, mas não acreditava que ocorreria. Tinha esperança que seu grupo viesse resgatá-lo.

⸺ Não vou mata-lo! Tenho certeza que sairemos inteiros daqui. – Rebateu Ciorã.

⸺ Bom, isso depende da fome de Quebra-Pedra. Eu não teria tanta certeza. Faça o que achar melhor, tenho que ir. Até logo.

⸺ Não, não, espere!

Não havia mais ninguém ali. Ciorã sentia que as coisas estavam caminhando para um lado sombrio. Ele perdeu o sono e passou em claro o resto da madrugada. Quando amanheceu, um facho de luz penetrou pelo buraco e trouxe considerável visibilidade ao local. Quebra-Pedra ainda dormia como um grande animal, roncando enquanto era observado pelo líder. Minutos depois, ele despertou.

⸺ Bom dia, Chefe. – Bocejou.

⸺ Bom dia.

⸺ Estou morto de fome! Comeria uma capivara inteira.

Ciorã o olhava com atenção. O enorme Bujoel começou a levantar as pedras pequenas em busca de algum inseto ou minhoca. Mas não havia nada, apenas a agua da chuva acumulada em poças.

⸺ Não se preocupe, Quebra-Pedra! Logo os outros homens chegarão e você vai comer o que quiser.

⸺ Sabe, Chefe. Acho que não vou resistir mais muito tempo. Deve fazer cinco dias que não como.

⸺ Não seja idiota. Este é o terceiro dia.

Quebra-Pedra expressou decepção. Ele não era apenas gordo, mas também muito forte, com estrutura óssea avantajada e grande massa muscular. Aquela cabeça pequena ficava estranha em um corpo tão grande. Horas se passaram em diálogos vazios sobre comida e planos para quando estivessem livres, até que alguém entrou na câmara do lado.

Logo Ciorã espiou pelo buraco e viu que desta vez era um grupo pequeno. Deviam ser três ou quatro subordinados desconhecidos. O chefe não se lembrou dos rostos e nomes deles.

⸺ Quem está ai do outro lado?

⸺ Somos nós, Chefes! Dili, Otu e Coborê.

Ciorã realmente não se lembrava dos nomes. Nesta época seu grupo era grande demais para memorizar todos.

⸺ Ah sim! Fico feliz que tenham vindo. Algum chefe de setor está com vocês?

⸺ Não senhor! Taraã mandou que eles ficassem. Disse que não podia desperdiçar membros com função chave em uma missão arriscada e sem garantias de sucesso. Por isso ele nos mandou.

Ciorã sentira a dor de uma agulha perfurando sua garganta, pois se remoía em inveja e raiva.

⸺ A que setor vocês pertencem?

⸺ Somos da construção!

Ciorã lembrou-se que este era o grupo mais numeroso e menos qualificado. Seus componentes eram, em geral, fortes e burros.

⸺ Está bem, meus amigos! O que pretendem fazer?

⸺ Trouxemos marretas e picaretas - Ciorã sentia a missão voltar à estaca zero . – Vamos quebrar as pedras para salvá-lo, senhor!

Ciorã não respondeu, apenas sentou-se à pedra com as mãos na cabeça. Enquanto segurava dois tufos de seu volumoso cabelo, ouviu-os dizer:

⸺ Senhor? Ainda está ai?

⸺ Sim, meus amigos, estou aqui. Podem iniciar o trabalho.

Horas de trabalho não surtiram nenhum efeito.

⸺ Senhor, estamos muito cansados! Vamos retornar para que um novo grupo continue o serviço.

⸺ Tudo bem, podem ir. – Disse Ciorã sem surpresa alguma.

Mais tempo foi jogado fora na espera entediante. Por vezes, Ciorã e Bujoel tentavam junto remover as pedras, mas não houve sucesso. Tentaram também gritar pedindo por socorro, na esperança que o próximo grupo não estivesse encontrando a entrada da caverna. Mas tudo era uma leda ilusão, não havia ninguém nas imediações.

Logo a noite despencou. Ciorã balançava a perna com impaciência, monitorando os sons e atitudes de seu companheiro.

⸺ Chefe, estou ficando fraco. O que vamos fazer?

⸺ Durma, Quebra-Pedra! Ajuda a enganar a fome. Amanhã terá uma refeição e tanto.

Resmungando, Bujoel deitou e se encolheu de lado no chão, com o rosto virado para a parede. Poucos minutos foram necessários para que o brutamonte começasse a roncar. Ciorã se consumia em desespero, sem conseguir dormir, perdendo as esperanças.

⸺ Ciorã? – Surgiu uma voz ao lado.

O líder levantou com rapidez e foi ao buraco.

⸺ Ru? É você? – Inconscientemente, suas esperanças recaiam sobre a figura soberba do Criador.

⸺ O que? Somos nós! Querri e Lió.

⸺ Quem mais está com vocês?

⸺ Apenas nós dois, chefe! Viemos às escondidas.

⸺ Como assim? O que está acontecendo?

⸺ Chefe... – Querri titubeou – Taraã está no controle do grupo e... bem, ele está mudando algumas regras. Frequentemente diz que esse resgate é uma missão falha e arriscada. Proibiu novos grupos de virem.

⸺ O que??? – Ciorã estava furioso – Quem ele pensa que é. Vou coloca-lo no lugar dele!

⸺ Chefe. Viemos apenas para lhe dizer que não poderemos mais vir aqui. Ele está nos ameaçando! – Disse Lió, como se contasse um segredo.

Ciorã ficou calado, remoendo seu ódio.

⸺ Tudo bem meus amigos. Ao menos posso confiar em vocês. Sou grato pela lealdade.

⸺ Seremos sempre leais à você, Chefe! Você tem que sair daí! Taraã não tem conduzido bem o grupo. Ele é desorganizado e pensa sempre em si primeiro.

⸺ Não se preocupem. Vou sair daqui e resolver o problema!

Dito isso, os dois foram embora. O tempo corria e Ciorã resistia ao sono, com medo de seu algoz em potencial.

⸺ Psiuu!

⸺ Ru?

⸺ Sim, sou eu. Como está?

⸺ Estou faminto e cansado!

⸺ Ciorã, está na hora de fazer o que te falei! Acredite, será a única saída. Você tem de matá-lo.

⸺ Matá-lo não vai me tirar daqui.

⸺ Não matá-lo também não resolverá. A diferença é que ao invés de morrer comido por um de seus homens sem chances, morrerá à posteriori com alguma esperança. Vamos! Não é tão difícil assim. Acerte-o com uma pedra na cabeça, ele não vai sentir. Ou pode fazer como ele fez com aqueles dois que sucumbiram no início: por asfixia!

Ciorã pensava a respeito, mas não tinha coragem. Ru não disse mais nada e se foi. No próximo dia, ninguém surgiu nas proximidades. Eles estavam completamente abandonados.

⸺ Chefe... – Bujoel murmurava apático, tentando mastigar pequenas pedrinhas.

⸺ Diga.

O grandalhão não disse nada. A expressão dele estava assustadoramente frágil, como se ele estivesse anêmico. A fome já o deixava em estado mórbido, abatido, onde não havia reações completamente lúcidas. A esta altura eles não tinham mais força para tentar mover as pedras ou gritar, apenas ficavam sentados, agonizando, tentando encontrar uma solução.

À noite Ciorã não resistiu e se recolheu em um canto escondido. O sono veio tomando conta dele, lentamente. A vertigem o transportou para locais distantes, enquanto ele se perdia nos pensamentos e no tempo.

⸺ Chefe!

Ciorã acordou em um pulo. Seu companheiro estava sentado ao seu lado, com a face a poucos centímetros dele.

⸺ Estou com muita fome, Chefe!

Ciorã apavorou-se, pois em seguida, Bujoel apanhou seu braço e o lambeu com vontade, depois abriu a boca como se quisesse mordê-lo. Imediatamente o líder o empurrou e deu um soco na cara dele, mas o grandalhão nem mesmo esboçou dor, apenas virou-se e voltou a sentar na pedra mais distante. Dessa vez, sentava de frente para ele. Ciorã esteve acordado a noite toda, tendo algumas recaídas em que piscava os olhos por um intervalo de tempo um pouco maior.

Quando amanheceu, Ciorã pode ver a face escusa de seu companheiro. Ele estava fora de si, olhava fixamente para o líder enquanto espumava a boca como um cão com raiva. O suor escorria pelo rosto e a respiração estava ofegante e ritmada. Suas mãos entrelaçadas tremiam. Ciorã não podia dormir. O monstro o olhava como um cachorro no cio, cobiçando-o como se ele fosse um enorme pedaço de carne.

Entretanto, tantas horas sem sono o fizeram perder a lucidez por alguns segundos. Sua consciência ia e vinha em fisgadas repentinas. Inesperadamente, ele acordava, sem dar conta de que tinha cochilado. Por algum motivo, lembrou-se de quando Ru o afogava na lama, em espasmos desesperadores. Por fim, por um período indefinidamente longo, ele adormeceu!

Em meio a dentadas fortes e violentas, Ciorã acordou, perdendo pedaços de sua coxa direita. Com brutalidade, quebra-pedras o devorava, mastigando a carne com rapidez enquanto o sangue jorrava. Os gritos de Ciorã ecoavam pelos corredores da caverna e ele não conseguia se desvencilhar de seu agressor.

Ciorã desferia socos na cabeça dele, mas não surtia efeito. Determinado momento ele conseguiu se afastar cerca de um metro, contorcendo-se no chão. O agressor tentou novamente mordê-lo, mas foi atingido por uma sequência de chutes no queixo. Em um dos chutes, Quebra-Pedra agarrou o pé esquerdo de Ciorã com as mãos e trouxe para boca, preparando uma forte mordida. O líder, por reflexo, puxou sua perna o mais rápido possível, mas não conseguiu impedir que os dentes afiados de Bujoel apertassem seu dedo mendinho.

Ciorã berrou de dor e aplicou uma sequência forte de chutes com o outro pé, atingindo várias vezes o nariz de Quebra-Pedra, até que ele puxasse com força sua mandíbula, esticando parte do tendão, arrancando o dedo fora. Em desespero, o líder retraiu para trás, ainda no chão, até encostar as costas nas pedras. O monstro se debruçou sobre ele pronto para arrancar-lhe o nariz, mas ele conseguiu segurar tronco do atacante e impedir que ele o alcançasse.

Aos poucos, Ciorã foi perdendo força nos braços por conta do peso de Quebra-Pedra, vendo os dentes afiados aproximarem-se de seu rosto em dentadas involuntárias, até que conseguiu apanhar uma pedra com a mão e atingi-lo com força na têmpora. A pancada foi forte suficiente para Bujoel ficar desorientado, caindo sobre o corpo de Ciorã. Com esforço, o líder o empurrou para o lado, tirando-o de cima dele, levantou-se e buscou uma pedra grande e pesada, que pudesse esmagar a cabeça dele. Ao encontrar a pedra, observou uma última vez o rosto dele, com a boca ensanguentada.

Ru estava certo, não havia outro jeito. O líder jogou com força o pedregulho e a cabeça de Quebra-Pedra foi esmagada, fazendo com que seu olho esquerdo e parte da massa encefálica saltassem para fora do crânio. Ciorã, ainda atônito, viu que ele não estava morto, ainda tinha os últimos espasmos, se debatendo, tentando se mexer, então montou sobre o tronco dele e encaixou as mãos na boca dele, de forma que segurasse as arcadas dentárias superior e inferior. Com muita força, tremendo de raiva aos gritos, com as veias da testa saltadas, Ciorã separou as duas partes da boca dele com força, até quebrar o maxilar e desmembrá-lo do resto da cabeça, deixando à mostra a língua do animal.

Ciorã ainda permaneceu alguns minutos sobre o corpo de seu subordinado, tremendo as mãos devido à adrenalina. Parte de sua coxa direita estavam em carne viva e ardia muito. Seu pé com o dedo arrancado sangrava incessantemente, formando uma poça de sangue considerável no chão. O líder tentou se levantar, mas seu corpo logo sucumbiu em um desmaio, caindo sobre o cadáver de Quebra-Pedra.


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Notas finais do capítulo

A vingança contagiava a mente dele.



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