A Lenda do Exílio escrita por Lunéler


Capítulo 10
Abuso


Notas iniciais do capítulo

Esconda o rosto.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/763527/chapter/10

A solidão é um veneno! O Criador, expurgado no infinito, atordoado pela sensação de não ter um pai para lhe afagar a cabeça, encolhido na amargura de seus pensamentos e afogado na mágoa de ser quem ele era, decidiu, um dia, levantar-se. Nem o ser humano mais sensitivo seria capaz de sentir o chácara de Ru, pois aquela dor pertencia somente a ele e não podia, ou não deveria, ser compartilhada com ninguém.

Talvez fosse injusto dividir este fardo, ainda mais com alguém tão frágil quanto Ciorã. Mas ele estava cansado! Extremamente cansado... Carregar aquele peso nas costas durante a eternidade o desgastava demais. Ele não suportava mais ser o cativeiro do pior sentimento que poderia existir. A solidão sempre esteve ali, hospedada nas entranhas de Ru, alimentando-se de sua esperança, de seu conforto.

⸺ Escute Ciorã, o que vou te mostrar agora está muito além do que pode entender.

A esta altura, o líder já não se sentia à vontade em dialogar com Ru.

⸺ Acontece que você precisa sentir como eu sinto! Eu preciso dividir algo com você.

⸺ E o que é? – Ciorã estava desconfiado.

⸺ Algo que eu não posso expressar em palavras. Apenas feche os olhos.

Ciorã por uma fração de segundos cogitou o risco que aquilo envolvia, mas decidiu fechar brevemente os olhos. Quando os abriu, sentiu seu corpo girar até se alinhar com um cenário terrível que via. Á sua volta havia um local extremamente frio e pedregoso, tingindo de um todo roxo que aumentava o contraste de suas cores. Seus lábios pareciam escuros, se destacavam na pele. Era o reflexo de um céu violeta que se remoía em um grande buraco, um redemoinho nas nuvens que engolia o firmamento.

O vento tornava quase inaudível o som de milhares de vozes que pediam socorro. Quando Ciorã olhou para o chão viu que estava sobre um amontoado de pessoas raquíticas rastejando como vermes, apodrecendo como horríveis criaturas definhadas. Ele andou pelo terreno desolado, analisando o que via. Chegou à beira de um grande penhasco e olhou para baixo. Não havia solo, e sim escuridão completa. E subitamente um estalo o tirou do sonho.

*  *  *

Ciorã estava em sua morada. Tomar seu lugar novamente o trazia uma sensação de poder indescritível, uma prazer imenso, sustentado não só pela soberania que o sondava, mas também pela sensação extasiante de ver o sofrimento alheio. Mais uma vez os traços de Ru o atingiram e ele se lembrou de um conceito que lhe foi ensinado. Algo sobre a propensão do homem à violência. Algo sobre impor a dor e colher a satisfação. E surgiram lembranças de quando ele costumava usar o chicote para açoitar seu próprio povo de maneira deliberada e injustificável.

A sensação de mutilar Taraã publicamente o deixou, em termos, aliviado, pois suprira sua necessidade momentânea de vingança. No fundo, ele sabia que devia tudo aquilo à Ru, o único que foi capaz de libertá-lo daquela caverna. O mentor dos planos, seu amigo e confidente. Por mais que não aprovasse a maneira desonesta do Criador, admirava todo seu poder, sua inteligência e sua capacidade de realizar desejos. Agora, mais do que nunca, sentia-se profundamente agradecido, feliz o suficiente para considerar que estava em débito com ele.

⸺ Como se sente, Ciorã?

⸺ Aliviado! Não sei como posso demonstrar minha gratidão. – Ele havia voltado para a beira do lago, buscando um novo contato com Ru.

⸺ Bom, se me permite, tenho uma sugestão. – Houve uma pausa, como se Ru esperasse ele perguntar.

⸺ Qual sua sugestão?

⸺ Ciorã, nós nos conhecemos a considerável tempo. Desde o momento em que te resgatei daquele suicídio, estabelecemos fortes relações de amizade e confidência. Com você compartilhei segredos que não dividiria com ninguém. Da mesma forma, percebi que também encontrou em mim confiança suficiente para me dizer o que pensava. Em outras palavras somos confidentes. – Houve uma nova pausa.

⸺ Certo. O que quer dizer com isso?

⸺ Tenho revelado minhas fraquezas e desejos a você desde muito cedo. É natural que a simbiose tenha nos aproximado tanto. Entretanto, existe uma coisa que gostaria de experimentar.

⸺ Do que exatamente está falando?

⸺ Já te disse uma vez o que eu sou?

⸺ Sim, você é Ru, o Criador!

⸺ Exato. Sou origem, sou o princípio. Embora eu tenha criado tudo o que está a sua volta, creio que já deve ter percebido que uma generosa porção do que existe foi consequência direta de um amontado difuso e expansivo de sentimentos. Dessa forma, não conheço por completo os rincões de minha obra. Como a criação se deu de maneira tão abrupta, é plausível que se tenham criado profundos corredores que recortam minha vasta mente. E você sabe... existem coisas que eu jamais experimentei.

⸺ Onde está querendo chegar? – Ciorã já não se sentia confortável com aquela conversa.

⸺ Existe um sentimento que difundi que ainda me é muito nebuloso e confuso. Algo relacionado às relações interpessoais entre o homem e a mulher.

⸺ Está se referindo ao amor?

⸺ Não, este está na concepção da coisa. Refiro-me aos seus desdobramentos, com suas nuâncias descontroladas, ensandecidas pelo desejo puramente carnal. A forma mais instintiva e pejorativa possível de um homem se relacionar com uma mulher. Aquele êxtase desprovido do sentimentalismo, movido apenas pela paixão e pelo prazer incontido.

⸺ O que está sugerindo? – Havia medo em sua voz.

⸺ Não se faça de inocente, Ciorã. Eu, enquanto Criador, jamais tive o prazer de desfrutar de uma bela mulher, como sua preciosa Doma.

Em segundos, o ódio incendiou os pensamentos de Ciorã e ele sentiu um frio repentino na barriga, como uma forte despressurização.

⸺ Está louco??? Jamais permitirei que faça isso.

⸺ Seja sensato, meu amigo. Isso tudo é reflexo de sua mente tomada pelo ciúme, pelo sentimento de propriedade. Ciorã, lamento dizer, mas isso não é uma questão de escolha. Ora, não me diga que ainda acredita que nossa relação é uma manifestação puramente unilateral. Eu te ajudei, logo, você está em débito comigo. E não há nada que me deixe mais satisfeito do que ter relações com Doma Coroa Negra. É uma maneira muito simples de saldar sua dívida. Você tem que aprender a dividir a mercadoria.

⸺ Você está louco? Jamais permitirei que abuse dela!!!

⸺ Calma, meu amigo. Tente enxergar de outra forma. Lembre-se que posso assumir a forma que quiser. Garanto-te que ela nem mesmo desconfiará que sou eu. Vou tomar sua forma e usá-la da maneira que quiser. E isso não é negociável.

⸺ Não! Deixe ela em paz. – Ciorã levantou-se e tomou sua lança, numa tentativa inútil de amedrontar o Criador.

⸺ Você não tem escolha, Ciorã! Se quiser pode vir assistir, será nesta noite, na sua casa, quando seus filhos estiverem dormindo! Ou pode ficar por ai, chorando.

Ru não disse mais nada. Ciorã sabia que aquilo era irreversível. Seria impossível impedir que ocorresse. Sua mente não suportou ver tudo de perto. Inconscientemente, ele não queria enfrentar Ru, pois aquilo era estranho, soava como autodestruição, falta de amor próprio. No mais, decidiu ficar por ali, não teve coragem de enxergar a cena.

*  *  *

Ru entrou em casa!

⸺ Onde estão as crianças? – Perguntou ele.

⸺ Estão dormindo agora... – Ru não a deixou terminar a frase, apanhou-a com força pelos braços e começou a lambê-la no pescoço.

Desconcertada, ela perdeu a reação, pois o ato foi inesperado. Ele a apalpava nas nádegas e seios com voracidade. Ela tentava corresponder, mas estava constrangida. Ele a conduziu para o quarto e bateu a porta com força, trancando-a com o tronco atravessado. Ela se virou para ele assustada, mas não houve tempo para dizer nada, pois Ru a atacara novamente, com tamanha sede que rasgou as roupas dela com brutalidade.

⸺ Ciorã. O que está havendo? Você está diferente!

⸺ Cale a boca e ajoelhe!

Com medo, ela ajoelhou-se lentamente e logo foi forçada a abrir a boca para que ele inserisse seu membro. Ele agarrou seu cabelo com força, conduzindo os movimentos. A esta altura, ela já estava extremamente assustada e não reconhecia as atitudes de Ciorã. Porém, ela não esperava que receberia um tapa no rosto.

O golpe a levou ao chão com o nariz sangrando. Ru ergueu-a com força pelo pescoço e a fez ficar de quatro na cama, enquanto ela gritava. Com truculência, ele inseriu seu membro no ânus dela, fazendo-a sangrar. Em meio aos soluços abafados do choro, ele a agredia com as mãos, fazendo com que ela se desesperasse. Em poucos minutos, ele ejaculou dentro dela e chutou-a nas costelas. Com indiferença, vestiu-se e saiu da casa, se perdendo na mata.

Horas depois, Ciorã chegou em sua casa. Suas mãos tremiam esperando não ver o pior. E quando adentrou o quarto, viu que Doma estava chorando, no canto, ao pé da cama, com as mãos cobrindo o rosto. Sua cara estava inchada e os ferimentos ainda derramavam sangue. Ele imediatamente foi socorrê-la e começou a chorar quando a viu. “Não seria possível”. E a abraçou forte, acolhendo-a. Ela o olhou com tremendo pavor, com os olhos arregalados, esperando não ser agredida novamente. O medo boicotou sua reação.

⸺ Saia daqui!!! – Gritou Doma em choro incontido, com toda raiva que podia externar.

⸺ Mas o que houve?

⸺ Saia daqui!!! – E Doma atirou um vaso de porcelana na porta, tentando atingí-lo.

⸺ Doma! Eu...

Antes que ele pudesse continuar falando, ela atirou outro objeto sobre ele, fazendo-o se desequilibrar e furar o pé com um caco do vaso. Com ódio incontrolável, saiu de casa e foi até o logo, rapidamente, com a lança em punhos.

⸺ Onde está você agora, covarde? Apareça aqui agora e vamos resolver isso de homem para homem!

O silêncio tomou conta do ambiente. Ciorã evocou o nome de Ru durante a noite toda, praguejando-o. As ameaças e o tom de voz alto não o fizeram aparecer, tampouco resolveram o problema. Depois de incansáveis gritos e xingamentos, o líder cansou e parou para perceber o quão cruel o Criador fora. Ele não havia apenas estuprado Doma, e sim feito ela o odiar. Isso o deixou arrasado. Com o tempo, o ódio deu lugar à tristeza, pois só então se deparou de fato com a crueza do que tinha acontecido. Ser rejeitado pela pessoa que mais amava era excruciante. E não pode controlar seu choro.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Solte a respiração.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Lenda do Exílio" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.