A Lenda do Exílio escrita por Lunéler


Capítulo 7
Azuis-turquesa


Notas iniciais do capítulo

A sensação de vazio era persistente e incômoda.



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Não em poucas ocasiões Ru navegava para seu próprio “eu”, buscando, desesperadamente, algo que o trouxesse fôlego para respirar. Ele sabia que grandes eventos eram sempre precedidos de um silêncio traumático. Na quietude que anunciava o caos, ele encontrou uma parte de si há muito tempo perdida. A essência daquele sentimento fazia parte do princípio, da concepção de sua confusa mente. Ciorã estava prestes a experimentar essa distinta parte de seu Criador.

Em um dos dias bem humorados de Ciorã, ao cair da noite, ele resolveu dar uma volta por sua propriedade. Caminhou por entre os locais de trabalho de cada setor, acompanhando o serviço daqueles que ainda tinham operários. Depois foi até um grande galpão que fora construído como local de pernoite. Duan o projetou para ser um abrigo coletivo e provisório, enquanto as casas individuais não eram concluídas. Porém, a obra atrasou e as pessoas acabaram gostando de dormir lá.

Ciorã se aproximou sorrateiro para observar como eram as pessoas quando não estavam sendo vigiadas em seus locais de trabalho. A vários metros do galpão já se ouvia uma tremenda algazarra. Gritos, risadas e pancadas nas paredes de madeira deixaram o líder intrigado. Ele espiou pela brecha entre dois bambus e viu uma cena que o deixou feliz: as pessoas faziam uma grande orgia. Desde a primeira formação do grupo, homens e mulheres praticavam sexo em grupo de várias formas, trocando os participantes frequentemente. Havia tanta gente lá dentro que era difícil distinguir os homens das mulheres. No meio do alvoroço, havia alguns grupos que contavam piadas e soltavam gargalhadas histéricas. Muitos dançavam ao som das cornetas dos músicos. 

Ele não quis interromper. Aquilo não lhe deixava chocado ou nervoso, pois os homens ainda não eram limitados por conceitos como o da monogamia ou controle sexual; viviam com total liberdade. Com desinteresse, saiu de sua posição e foi ao vilarejo visitar a morada de seus chefes de setores. Na casa de Lió bateu à porta, mas ninguém atendeu. Ele então abriu e entrou, encontrando Lió dormindo e roncando. Resolveu então ir à casa de Duan. Bateu à porta e ninguém atendeu. Ele podia ouvir gritos e gemidos. Com curiosidade, empurrou a porta com as pontas dos dedos e presenciou seu companheiro tendo relações sexuais com uma mulher. Na casa de Shur, Ciorã ouvia também altos gemidos. Ao bater, Shur o atendeu, completamente nu.

⸺ Boa noite, chefe!

⸺ Boa noite. – Disse o líder espiando três ou quatro mulheres nuas em sua casa.

⸺ Quer participar, chefe?

⸺ Não, obrigado.

Ciorã já tinha participado diversas vezes de orgias e bacanais, isso era normal em seu grupo. Entretanto, fazia algum tempo que não praticava o ato sexual, talvez por certo desinteresse. Sua cabeça costumava estar ocupada demais com seus projetos e afazeres. A essa altura, ele sentia essas relações como algo mecânico e desprovido de um sentido maior.

⸺ Olá, chefe! – Disse Querri sentado em uma banqueta à frente de sua morada.

⸺ Olá! O que faz sozinho nessa noite? A festa está muito boa nos galpões.

⸺ Acho que estou ficando velho pra essas coisas, Chefe. Sabe, agora estou preferindo sexo apenas com uma mulher.

⸺ Por quê? Não se diverte tendo relações múltiplas?

⸺ Com o tempo parece que as coisas vão perdendo o sentido, sabe? Acho que são hábitos de velho. – Querri tinha algo próximo de cinquenta anos.

⸺ Não seja tolo, Querri! Não temos velhos no grupo.

⸺ Talvez não agora, mas em breve teremos. O tempo corre depressa! – Querri olhou para as estrelas com expressão serena e sábia. – E você, chefe? Por que anda sozinho pela vila? Também enjoou de repetir o sexo todos os dias?

⸺ Ainda não pensei sobre isso, mas acredito que esteja desanimado com essas coisas. Minha cabeça anda preocupada com os afazeres de líder.

⸺ Chefe, você tem de arrumar uma mulher, uma única, apenas para você. A solidão faz mal, principalmente quando se está no comando de um grupo tão grande como esse.

Ciorã passou mais alguns minutos na companhia de Querri enquanto olhava o céu estrelado, depois foi para casa. Viu no canto da parede seu cajado apoiado e, pendurado em um gancho, sua capa verde de viagem. Por um motivo qualquer apanhou os objetos e resolveu caminhar pelo terreno à noite, como fazia às vezes. Subiu uma colina de grama e observou o horizonte. Ao longo, relâmpagos riscavam o firmamento.

⸺ Quando isso vai acabar, Ru? – Disse consigo mesmo.

Então resolveu se aventurar no lado externo do Largo das Campinas. Caminhou pelas encostas dos morros durante algumas horas, aproveitando a brisa da noite. Pelo caminho, se deparou com alguns cadáveres já em decomposição dos viajantes que não conseguiram chegar ao Morro Verde. Determinado instante, ele adentrou uma área de mata densa. Esgueirou-se por entre a vegetação, abrindo caminho com o cajado. De repente, ouviu um som que lhe era familiar.

Eram engasgos salivares pastosos, como aqueles que produziu quando passava pelo coito, afogado na lama. Seguiu o som com curiosidade e encontrou um enorme pântano. Dentro dele, uma pessoa tentava se mexer. Era lama movediça, extremamente densa e pegajosa. O indivíduo parecia estar em seus últimos instantes de vida, movimentando-se morbidamente.

Com frieza e rapidez, Ciorã estendeu a mão para tentar resgatá-lo, mas não alcançou. Resolveu então avançar seu corpo, sentindo logo afundar na lama e ser sugado por ela. Sem pensar, agarrou a pessoa pelos braços e a trouxe para a margem com esforço. Colocou-a no chão e limpou o rosto para que pudesse respirar. Em uma inspiração súbita e desesperada, o sujeito trouxe para dentro o ar puro, tossindo muito, enquanto resgatava a consciência.

Ciorã utilizou as mãos para limpar o rosto da vítima e liberar sua visão. Aos poucos foi descobrindo que não era um homem e sim uma mulher. E quando ela abriu os olhos, ele sentiu seu corpo todo ser tomado por um formigamento passageiro, como ondas invadindo sua pele. Aqueles eram os olhos mais lindos que ele já havia visto. Íris de um todo turquesa cercado por uma coroa negra, que abarcava também um tom esverdeado. Um brilho singular que causava arrepios.

Muito entusiasmado, ele carregou a moça no colo para longe dali. Rasgou trilhas e passagens até chegar a um riacho. Ali, ele a colocou no chão e com as mãos lavou o corpo dela. Ela estava muito fraca e debilitada, ainda desatenta pelos minutos que passara sem ar. Ciorã ficou um bom tempo dando banho nela. A observava completamente estarrecido. Jamais fora atingido por um sentimento daqueles. Seu coração batia descompassado ao ver tamanha beleza. A moça tinha um belo rosto, cabelos enrolados que lhe cobriam as orelhas. O corpo era magro, porém, com curvas que o deixaram admirado. Ela estava completamente nua.

De forma atrapalhada, Ciorã a enrolou em sua capa para aquecê-la. Com as palmas das mãos apanhou um pouco de água cristalina do riacho e a deu para beber. Também tirou uma fruta de sua bagagem e a deu para comer. Aos poucos, ela foi apresentando maior lucidez, ficando inquieta.

Ciorã estava mergulhado em completa obsessão por aquela mulher. Por mais que ela estivesse fraca e em iminente desmaio, ele tentava dialogar com ela. Depois de algumas tentativas, resolveu leva-la para o Largo das Campinas. Horas de caminhada o trouxeram à entrada do local, no amanhecer, com a moça inconsciente nos braços.

Seus homens já trabalhavam e pararam seus afazeres para observar o líder chegar, curvando-se. À esquerda havia algumas pessoas do setor da agricultura. Mais à frente, no lado direito, um numeroso grupo do setor da construção carregava pedras extraídas do paredão. Por algum motivo, aquela cena chamou atenção de todos, de forma que ficaram parados, acompanhando o andar lento de Ciorã. No caminho para sua casa encontrou Berió acompanhado de uma equipe de músicos para iniciar as cantorias. Seu subordinado parou sorridente.

⸺ O que o senhor está carregando? − Disse o músico, curioso, tentando levantar o pano que cobria a moça.

⸺ Nada! – Ciorã se afastou para que ele não a tocasse.

Berió estranhou a atitude, depois seguiu seu caminho. Ciorã ficou inquieto e andou mais depressa para sua casa. Por onde passava, encontrava trabalhadores o saudando. Desconfiado e afoito, ignorava cada um deles, apertando mais ainda seus passos. Adentrando a região da vila, foi contornando as casas para chegar à sua, no centro. Em uma das curvas, esbarrou em Shur, que estava de costas, com as mãos na cintura, saindo de sua casa.

Shur virou-se e logo atirou seus olhos no que o líder carregava. Ciorã o encarou com a expressão arredia, sem dizer nada.

⸺ O que tem ai em baixo dessa capa, Chefe?

⸺ Nada! Saia do caminho.

Shur observou discretamente os pés da moça descobertos, deu um sorriso malicioso e abriu caminho. Ciorã atravessou o corredor com rapidez e se deslocou até sua casa. Quando entrou, colocou-a sobre sua cama de palha com delicadeza, permanecendo algum tempo ajoelhado no chão, observando-a ainda desmaiada. Em alguns minutos, surgiu à porta Taraã.

⸺ Chefe, precisa de alguma coisa? Esteve fora... – Taraã interrompeu sua fala ao ver que havia uma mulher ali.

Percebendo que seu subcomandante a observava, Ciorã tentou se colocar ligeiramente na frente, a fim de impedir a visão.

⸺ Saia daqui!

Taraã esteve por alguns segundos em silêncio, na tentativa de entender o motivo da agressividade. Percebendo que ele estava visivelmente nervoso, apenas se retirou, encostando a porta. Assim que ele se foi, o líder levantou-se com rapidez e bateu a porta com força, colocando, em seguida, um tronco de madeira para trancá-la por dentro.

O que estava acontecendo com Ciorã não era apenas um emaranhado de sentimentos bons tomados pela confusão. Algo bem maior e curioso estava germinando daquele contato estranho. E tudo tinha uma íntima relação com aqueles olhos azuis e brilhantes. A sensação era de que ele descobrira algo em seu “eu” interior, tal qual Ru um dia fizera.

Ciorã passou várias horas cuidando da moça. Em um momento, foi até a porta, desbloqueou-a e pediu a uma de suas operárias que trouxesse comida e roupas limpas. Depois trancou novamente. Minutos após, o líder ouvia um murmurinho insistente, de várias pessoas cochichando no lado de fora de sua morada. Bateram à porta e ele foi atender, encontrando no chão os itens que havia pedido. Com receio, ele recolheu tudo e trancou novamente a entrada.

Alimentada e aquecida, a mulher tomou os primeiros momentos de paz em meio a seus dias de fuga. Sentou-se na cama em que estava, se cobrindo com o roupão que Ciorã lhe deu.

⸺ Olá. Você está bem?

A moça ficou calada, com medo, olhando com desconfiança para o líder.

⸺ Não precisa falar se não quiser. Pode relaxar, vou cuidar de você.

Talvez ela ainda não soubesse falar. Ciorã deitou-se no chão, ao lado dela, e a observou dormir, admirado com a aparência da mulher. Logo, ouviu mais um batuque na porta e foi atender. Quando abriu, viu que havia algumas cestas com frutas, pratos de comida refinados, água e roupas limpas. Seus subordinados estavam trazendo oferendas. Novamente, ele pegou os itens e se trancou lá dentro para cuidar dela.

No amanhecer do próximo dia, Ciorã ouviu uma nova batida à porta. Com cautela, abriu-a e viu seus homens espalhados a frente de sua morada, observando-o histéricos, como se esperassem um grande evento. Berió estava à frente.

⸺ Chefe! Como ela está? Estamos todos ansiosos para conhecê-la. – Disse empolgado, sorridente.

⸺ Ainda não é o momento! – E bateu a porta.

O líder pensava consigo o que levou os homens aquele estado de histeria. Não apenas os homens, mas também as mulheres começaram a se amontar na frente de sua casa e ao redor dela. A conversa e os boatos tomaram conta do entorno e Ciorã podia ouvi-los. Todos esperavam ansiosos o momento em que ela seria apresentada. Durante todo esse período, a mulher permanecia calada, até que houve o primeiro diálogo.

⸺ Como é seu nome? – Ela disse.

Nesse momento, Ciorã estava de costas, preparando uma sopa, e foi tomado por um choque interno que o fez se arrepiar da nuca até as costas. Jamais ouvira um timbre de voz tão perfeito, tão doce. Para ele, aquela voz era como uma melodia, que caminhava pelo seu cérebro em um efeito anestésico. Quando se virou, a viu sentada, cobrindo-se com uma manta.

⸺ Olá, meu nome... – gaguejou – meu nome é Ciorã. E você, como se chama?

⸺ Ainda não ter um nomeno. Não sei direito como veio parar aqui. Estava em um grupo de mulheres, mas elas foram atacados por leões. Acho que apenas eu sobrevivi.

Ciorã sentiu o estômago embrulhar. Aquela voz o seduzia como o canto de uma sereia e a dificuldade de pronúncia e de acerto das palavras não a deixava menos bonita.

⸺ Não se preocupe. Aqui você está segura. Pode confiar em mim.

Ela então esboçou um sorriso muito natural, provocado autenticamente pelo conforto que sentiu ao ouvir aquelas palavras de cuidado.

⸺ Bom... você precisa de um nome. Vou te chamar de...

Ciorã pensou em que nome representaria tamanho sentimento, surgido de mero olhar turquesa. Sentia-se de alguma forma domado por ela, como se fosse qualquer cavalo de sua propriedade. E vendo a íris de seus olhos, contornadas pelo cinturão negro, disse.

⸺Vou te chamar de Doma, Doma Coroa Negra.

Ela sorriu novamente, como se tivesse sido tomada por um misto de timidez e simpatia. Ciorã também sorriu e continuou os cuidados. Durante mais um dia, os dois permaneceram trancados na casa. Pouco se conversava... Doma tinha um sotaque diferente, com consoantes arrastadas e isso dificultava um pouco a comunicação. Depois que ela já estava suficientemente recuperada, Ciorã disse que a apresentaria para seus comandados.

Ele a cobriu com uma manta e puxou lentamente a porta. Percebeu que todos estavam ali, apenas esperando que eles aparecessem. Houve um momento de silêncio, todos estavam boquiabertos, admiravam a imagem dela impressionados. As pessoas mantinham a expectativa, como se aguardassem um pronunciamento importante.

⸺ Senhores! – Ciorã começou a discursar - Está é Doma Coroa Negra. Agora ela faz parte do grupo.

Houve um murmurinho.

⸺ Chefe! – Gritou um dos operários – Posso ser o primeiro? Depois do senhor, é claro.

Nesse momento, Ciorã sentiu seu sangue ferver. Sabia do que se tratava.

⸺ Ninguém vai tocá-la! Ela é propriedade minha!

Houve um grande alvoroço, particularmente entre os homens, que contestaram com indignação.

⸺ Mas... Chefe! – Berió se pronunciou – Não vai dividir com a gente?

Novamente os ânimos se exaltaram e começaram as discussões. Ciorã ouviu Duan falar em meio às gargalhadas, em tom irônico:

⸺ Tem que repartir a mercadoria, chefe. Vai querer trepar sozinho?

Ciorã tentou gritar novamente, mas sua voz foi abafada pelo grande falatório que se instaurou. Todos começaram a gritar e argumentar, indignados, aproximando-se deles. Logo se amontaram em volta, até que começaram a estender os braços para tocá-la. O líder deu tapas nas mãos dos que tentavam encosta-la, mas eles continuaram se aproximando, até que o controle foi perdido e todos amontaram-se ao redor dela e começaram a puxar a manta que a cobria, rindo, ansiosos por agarrá-la.

No meio da confusão, Ciorã esmurrou dois ou três, depois sacou seu fação, que estava preso na cintura, e executou uma sequência rápida de golpes, decepando a mão de um dos operários mais próximos e os dedos de outro. De imediato, todos afastaram-se com espanto, enquanto os atingidos  agonizavam. Ciorã se colocou à frente dela, protegendo-a enquanto ela se cobria novamente.

⸺ Que fique claro! Doma pertence somente à mim! Aquele que se aproximar dela será esquartejado! – Gritou. – Agora saiam todos daqui!

Ainda aos resmungos e críticas, as pessoas foram, pouco a pouco, se retirando do entorno da casa de Ciorã. Depois de algumas horas, todos já tinham voltado ao trabalho, cada qual em seu grupo. A natureza de Doma despertara de imediato o desejo sexual incontrolado, ainda decorrente dos resquícios de irracionalidade do homem em estágio de evolução.

Depois desse dia, o ritmo no Largo das Campinas mudou consideravelmente. Ciorã, obcecado por Doma, tratou de dar-lhe tudo do bom e do melhor. Exigia da cozinha de Lió os melhores alimentos, as frutas mais frescas, as peças de carne mais nobres, tudo com luxo e fartura. Os gêneros passaram a ser servidos em tigelas de metal polido e taças de vidro.

O líder mandou que o grupo de produção têxtil lhe confeccionassem roupas de cores nobres, feitas às minúcias. Mandou que os projetos voltassem aos produtores diversas vezes, para refazerem o trabalho até que as peças ficassem perfeitas. As cores prediletas eram o azul e o verde. O vermelho era usado em ocasiões especiais.

O grupo dos construtores, chefiado por Duan, foi obrigado a construir um pequeno palácio, afastado do habitual vilarejo. Ciorã queria ter privacidade com sua esposa. A obra levou poucas semanas para se erguer, pois ele exigia velocidade e perfeição. Por fim, a nova morada foi edificada ao pé dos paredões de pedra, depois do Rio do Recorte. A área verde dos bosques traziam um aspecto bucólico. Ciorã mandou que levassem para lá as melhores cabras, porcos e galinhas, para comporem uma pequena fazenda particular.

Depois do período de isolamento no interior de sua morada, Ciorã exigiu tudo o que tinha de melhor para dar a ela.  Os chapéus e sandálias mais valiosos, os lenços e luvas mais delicados, todo luxo que era possível. Mandou que o grupo de artes, em conjunto com o de forja de metais, lhe confeccionassem uma tiara metálica, com pedras preciosas azuis turquesa. Toda regalia possível foi feita para produzir melhorias na casa dele, a fim de dar o máximo conforto à Doma.

O líder ensinou pessoalmente o idioma orquedra, convocando, às vezes, as mulheres mais experientes na escrituração para ensiná-la também a escrever. Trazia os melhores músicos para sua casa e os fazia tocar por horas à fio as mais belas cantigas. Tudo o que era destinado à Doma tomava extrema importância, pois Ciorã determinava prioridade total a esses objetos. Muitos dos artesanatos e esculturas foram parar nas estantes do líder. 

Um dia, Ciorã chamou Berió em sua residência e, ao cochicho, no jardim, disse-lhe:

⸺ Berió, creio que o que vou te pedir não possa ser delegado. Apenas o mais afinado dos músicos é capaz de conceber isto.

Berió o olhou com expressão confusa.

⸺ Quero que componha uma melodia para Doma.

⸺ Ah. É pra já meu Chefe! Com esse suspense todo, pensei que fosse uma tarefa difícil! – Disse, animado.

⸺ Berió, você não entendeu! – houve uma pausa mergulhada na seriedade – Não quero que componha apenas uma bonita canção. Essa melodia será o mais belo som que os homens conhecerão. Este será meu presente para ela. – o olhou no fundo dos olhos –  Não me desaponte!

Berió engoliu a saliva, que naquele momento parecia uma pedra descendo sua garganta. Era impossível não perceber o estado obcecado de Ciorã. Ele estava diferente, impulsivo, exigente. Todo a sua atenção fora arrecada para o conforto de Doma. Ciorã estava, aos poucos, se afastando de suas obrigações de comandante do Largo, deixando suas tarefas em segundo plano para atender à sua paixão. Enquanto ele se ocupava com o amor, alguém se ocupava em liderar.

*  *  *

Fazia semanas que ele não conversava com Ru. Sentindo que adormecera durante muito tempo, alucinado por sua paixão, resolveu buscar o Criador. Não para reconhecer sua falha como líder, mas para contar a novidade a ele, dividir seu entusiasmo com alguém. Sua desconfiança por parte de seus homens o impedia de encontrar um confidente válido. Queria contar para alguém plenamente confiável, que o entendesse e o respeitasse. Empolgado na descrição de como a encontrou, relatando enquanto afiava sua lança próximo de uma cascata, ouviu Ru lhe dizer.

⸺ Sabe Ciora, fico feliz em perceber que encontrou alguém a quem verdadeiramente se apegou. Mas tenho uma pergunta... você por acaso sabe definir esse sentimento?

⸺ Claro que sim! O nome disso é amor! Já existem letras para registrar essa palavra no vocabulário orquedra.

⸺ Bom, essa palavra apenas categoriza o sentimento em seu dialeto, mas não o define com precisão. Na verdade, ele é uma das grandezas mais difíceis de entender. Como você bem sabe, os graus de lucidez transmitem minhas características para o ser humano, muitas vezes descarregando aspectos que eu não gostaria que recaíssem sobre o homem. Entretanto, tomei o especial cuidado de preservar alguns dos mais belos e cristalinos sentimentos, privando-os de recebê-los. O amor se enquadra em um desses.

⸺ Está dizendo que não podemos amar? Não nos deu essa capacidade?

⸺ Guardei-a para uma ocasião especial. Concedê-la junto com o quinto grau seria um desperdício, seria como lançar pérolas aos porcos, pois vocês não saberiam aproveitá-la. Ela acabaria sendo sufocada pelos instintos animalescos e traduzida no ato sexual.

Ciorã lembrou-se de todo sofrimento associado ao coito, o ato que hoje lhe permitia ser inteligente e forte.

⸺ Meu caro amigo, você sabe que tem sido observado durante considerável tempo, assim como outros de seu grupo. Venho tomando-os como amostra para despejar os graus de lucidez. Acho que já estão prontos para efetivamente receberem o sétimo grau.

Ciorã parou de manusear sua faca contra a madeira e olhou para o céu, como se buscasse ser melhor entendido por Ru.

⸺ Sétimo? Não havíamos parado no quinto? O próximo não seria o sexto?

⸺ Faço questão de manter segredo quanto ao sexto grau. Não posso correr o risco de sabotar meu próprio projeto. Esse vamos deixar para uma ocasião especial.

Ciorã se perguntava a que projeto Ru se referia. Seria a simbiose de uma maneira ampla? Ou ele estaria com um plano maior para extinguir a tal solidão de que tanto se queixava? Antes que pudesse questionar sobre isso, sentiu um cheiro doce.

⸺ Está preparado para o sétimo grau?

Ciorã não teve tempo de responder. Viu pequenos vagalumes pairarem a sua frente e tocarem lentamente o chão. Depois se apagavam e se transformavam em uma efêmera fumaça branca. O odor doce avivava seus sentidos e o deixava entorpecido.

Em segundos, viu sua visão escurecer ao ponto que os vagalumes se destacavam mais ainda com o brilho amarelo. Ouviu um estalo seco de dedos e de repente, acordou em um cenário horrivelmente sombrio. Estava em um emaranhado de galhos secos e espinhosos, que envolviam não apenas seu corpo, mas todo o seu redor por distância indefinível.

⸺ Escute, Ciorã! – a voz de Ru tinha um eco longo e sonolento – O que tenho para te mostrar talvez seja a última parcela existente desse sentimento. Considere-se presenteado por poder tocá-lo. Jamais traria outra pessoa aqui, pois confio apenas em você.

Ciorã mexeu seus braços, mas sentiu os espinhos arranharem-no.

⸺ Como isso pode ser o amor?

⸺ Pobre Ciorã. Entendo suas limitações. Não se esqueça que eu sou um conglomerado de joias e lama. Em mim encontra-se o bom e o ruim, o digno e o indigno, a luz e a sombra, o ódio e o amor. É perturbador perceber que os maus sentimentos estão corroendo os bons e se espalhando como um pútrido câncer. Esse cenário de espinhos é uma metáfora minha, indispensável para que você entenda meu estado. Apesar de o meu todo ser tomado por esta cólera, os espinhos, ainda existe luz em mim.

Ciorã forçou a vista por entre os galhos e viu, muito ao longe, uma luz rosada, emanando no horizonte, em meio à escuridão.

⸺ Quer que eu atravesse isso tudo? – Ciorã acabara de se furar em um espinho.

⸺ A escolha é sua. Conhecer o amor não vai fazer você se apaixonar mais por Doma ou lhe dar a dávida do sentir. Apenas lhe trará a dimensão do que é esse sentimento. Verá que o caminho da obsessão é perigoso. Será apresentado à parte mais límpida de mim.

Ciorã não aprovou a ideia de atravessar os galhos, ainda mais considerando que aquilo tudo era uma mera alucinação declinada por Ru. Porém, o tal cheiro doce surgiu com mais intensidade e ele foi afetado por um súbito desejo de chegar até aquela luz. Não era uma simples vontade, mas sim um anseio descontrolado, como o de um cão no cio em regime de abstinência. Sem pensar muito, avançou seu corpo sobre os espinhos, cortando-se, colocando os antebraços à frente para abrir caminho. Apenas nesse momento, ele notou que estava nu.

A distância até a luz era grande, mas foi vencida com tamanho desespero que Ciorã logo se viu a três ou quatro metros dela, já com os membros cortados e sangrando em frangalhos. Seu rosto estava dolorosamente arranhado. O cheiro doce então penetrou mais fundo em seu olfato, causando um efeito anestésico indescritível. Fechou os olhos e forçou o rosto sobre a última camada de galhos secos, sentindo as pontas rasgarem a pele de sua face. E finalmente estendeu as mãos para tocar aquela luz.

De imediato, um formigamento generalizado tomou conta de seu corpo. Uma sensação vertiginosa o fez delirar, enquanto sentia seus órgãos internos aquecerem. Naquela posição, o tempo parecia se dilatar a tal ponto que poucos segundos eram aproveitados como meses. Ciorã se perdeu nesse mundo e não queria mais voltar.

⸺ Estava pensando que poderia ficar lá para sempre? – A voz irônica de Ru surgia.

Ciorã acordara, estava deitado no chão, ouvindo o som da cascata, já de madrugada.

⸺ O que aconteceu? Perguntou, confuso.

⸺ Está na hora de ir para casa, Ciorã. Aproveite os reflexos do sétimo grau.


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Notas finais do capítulo

Entre a quietude e o sorriso, um verme se preparava para emergir.



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