A Lenda do Exílio escrita por Lunéler


Capítulo 6
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Notas iniciais do capítulo

Era difícil frear as intensas pulsões do Criador.



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As correntes de pensamento de Ru não se restringiam aos seus aspectos internos. Uma parte de sua mente era extremamente destrutiva e canalizava enormes descargas de energia sobre o mundo. Algumas vezes isso o perturbava, outras... o satisfazia. O Criador era, a seu modo, um pouco inerte, mas ainda assim pretensioso demais para deixar o mundo tomar seu próprio rumo. De alguma forma, tudo tinha que ter seu habitual modo. E aquilo que não tinha sua interferência, ainda que indireta, ele tratava de modificar e impor seus traços. A centralização fazia parte de seu eu.

Em um dia não muito bom para o humor de Ciorã, ele resolveu percorrer suas terras e fiscalizar o trabalho de seus operários. Sua intenção, embora conveniente para sua posição hierárquica, não se revestia exatamente das obrigações como chefe. Ele tratou de pegar seu chicote favorito, o que era feito de couro trançado, entalhado aos detalhes com pequenas ranhuras de ferro. No fundo, sua busca era fundamentada em um sentimento forte que o forçava a sair munido daquele objeto. Deliberadamente, buscaria motivos para imprimir violência em seus homens.

Naquele dia, ele estava mais arrogante do que o normal. E também mais exigente e observador. Enrolou o chicote na mão direita e o comprimiu com força, pois estava ansioso pelo que faria. Caminhou por entre as casas no bosque central e foi até a cozinha. Escancarou a porta e postou-se ali mesmo, parado, com o peito estufado e o queixo erguido, como se esperasse alguma atitude dos sete ou oito cozinheiros. Aos costumes, todos pararam seus afazeres e curvaram-se a ele. Satisfeito, Ciorã fez sinal para que voltassem a cozinhar e caminhou por entre os balcões. Percebeu que os homens trabalhavam mais rápidos e ficavam apreensivos quando ele se aproximava, desviando os olhares.

Ciorã esboçou desdém e monitorou com atenção cada atividade executada. Viu a carne ser cortada em pedaços.

⸺ Pedaços maiores!!! – Gritou.

O cozinheiro tremeu e se esforçou para cortar da forma como ele havia dito. Ciorã então olhou para um dos cozinheiros extremamente atrapalhado, agindo de forma descoordenada no corte de cebolas. Quanto mais próximo Ciorã chegava, mais ele cortava às pressas, esquecendo inclusive de tirar as cascas. O líder deu um forte tapa na mesa, que fez as cebolas e outros objetos caírem, e encarou o cozinheiro, que nessa hora já estava se tremendo e urinando nas próprias calças.

⸺ Des... desculpe senhor. – Gaguejou.

Houve um momento de silêncio em que Ciorã fixou seus olhos aos dele.

⸺ Essa não! Logo o gago! – Cochicharam os cozinheiros.

Ciorã sentia vontade de agredi-lo, mas não o fez. Viu que o cozinheiro cortara a ponta do dedo com a faca e tentava esconder o ferimento.

⸺ Limpe seu dedo e refaça o corte das cebolas. – E continuou seu caminho.

O cozinheiro deu um suspiro de alívio e foi logo lavar as mãos. Ciorã não queria apenas agredir alguém, não gratuitamente. Queria no fundo encontrar algo que justificasse a agressão e assim alimentasse seu senso de justiça e reforçasse sua postura como chefe. Era premeditado. Talvez isso tudo fosse para limpar sua consciência.

Continuou caminhando e viu outro cozinheiro trocando panelas da grande fornalha. Com rapidez, ele removia as panelas cujo alimento estava pronto, as colocava sobre o balcão e inseria outras no forno. Este parecia estar muito seguro de seu serviço e não demonstrou mudança de temperamento ao notar que estava insistentemente sendo observado. A forma acertada como ele trabalhava não deixava espaço para as críticas de Ciorã. Talvez tenha sido isso que fez escolhê-lo.

Ciorã tomou o espaço entre o cozinheiro e o forno, atrapalhando seu deslocamento. O trabalhador teve de desviar dele para prosseguir, mas, determinado instante, tropeçou e caiu, derrubando uma panela com comida quente. Com o rosto no chão, notou que Ciorã recolhia o pé que o fez cair. Em seguida, ouviu:

⸺ Hoje é você!!!

E repentinamente o chicote se desenrolou da mão do doutrinador e cantou nas costas do operário. A primeira chicotada rasgou a roupa e fez o sangue manchá-la. As chibatadas seguintes estalaram com força enquanto a vítima tentava se levantar. Acuado no canto, o operário foi recuando e se encolhendo e Ciorã fez o chicote comer-lhe o couro. Depois da décima chibatada era impossível não gritar. Mas Ciorã não quis parar e desferiu mais de trinta golpes, até que o indivíduo estivesse quase desmaiado.

Depois de saciada sua vontade de agredir, ele limpou o chicote com um pano da cozinha e o enrolou novamente na mão, saindo do recinto sem dizer nada. No lado externo do local, apoiado na parede, estava Taraã, com os braços cruzados.

⸺ O que está olhando? Não tem mais tarefas a fazer? – Questionou o líder.

Taraã não desviou seu olhar nem mudou sua postura. Encarou-o por alguns segundos, depois cuspiu no chão e deu as costas. Ciorã teve receio em prolongar aquela conversa ou cobrar-lhe que se retratasse. Seu íntimo estava carregado de um sentimento novo, a tendência descontrolada à violência. E Taraã não apenas percebia isso, mas cobiçava aquela posição.

*  *  *

Fazia tempo que Ru não conversava com o líder. Quando ele estava sozinho na madrugada, à beira da praia, sentindo as ondas do mar nos pés, ouviu:

⸺ Imagino que alguém que se aproximou tanto do suicídio traga com frequência traços de melancolia, mas não é só isso que vejo.

A voz parecia surgir do alto.

⸺ O que está querendo dizer?

⸺ Vamos, bote para fora! Diga o que pensa sobre ele.

⸺ Do que você está falando? – Sua expressão não conseguia esconder seu receio por Taraã.

⸺ Não se faça de idiota. Sabemos que ele é uma pedra no seu sapato.

⸺ Está nos vigiando?

⸺ Ora Ciorã, não seja rancoroso. Não existe nada que passe despercebido a meus olhos. Não esqueça que eu estou em todos os lugares ao mesmo tempo. Além disso, coexisto em você! Sou e estou no princípio da concepção.

Ciorã coçou a cabeça e olhou para cima.

⸺ Se é tão poderoso e sábio, porque ainda me faz perguntas?

⸺ Tudo isso faz parte de nosso projeto. A simbiose precisa ser ainda muito trabalhada. Afinal de contas, precisamos confiar um no outro.

O líder refletiu por um instante, tentando organizar o misto de medo e raiva que alimentava por seu subalterno, articulando as palavras.

⸺ Taraã tem dado sinais... – titubeou – sinais de que está tramando alguma coisa?

⸺ Que tipo de sinais?

⸺ Muito tem observado o que faço. Me olha com desdém e desaprovação. Às vezes desaparece e afronta minhas ordens. Acho que ele me inveja.

⸺ Já o castigou?

⸺ Sim, inúmeras vezes. Mas me parece que não surte efeito.

⸺ Veja bem! Infelizmente, essa sede por poder pode contagiar não apenas você, mas muitos de seus homens. Agora isso faz parte do ser humano. No entanto, tenha consciência de que nem todos foram afetados por esse impulso. Imagine os homens como um grande rebanho. Existem aqueles que jamais questionarão suas ordens ou ousarão enfrenta-lo, apenas seguirão o bando. Entretanto, outros poderão desenvolver grande cobiça por sua posição e passar a conduzir o bando com naturalidade. É prudente sustar esses desejos.

⸺ Entendi. – Ciorã cerrou o punho.

⸺ Porém, não se aborreça com Taraã. Trate-o como uma exceção. Ele será muito importante para o desenvolvimento do grupo. Afinal, muitas vezes temos de adotar a “política do chicote”. Aproveite o que ele tem de melhor. Não suje suas mãos se existe alguém que possa fazer isso por você.

⸺ Está dizendo que não devo repreender meus homens?

⸺ Estou dizendo que Taraã é o executor perfeito. Dê-lhe a autonomia que desejar para colocar seu grupo no eixo. A conquista pela força funciona, mas não é duradoura. Conquistar pela admiração o colocará em outro patamar de comando. Acredite, a gestão por delegação lhe será mais útil!

⸺ Como vou fazer isto?

⸺ Não espera que eu faça tudo por você, espera? Apesar de termos muito em comum nas nossas origens, não vou resolver seus problemas. Quem tem que fazer isso é você. – ficou quieto – Lembre-se que a violência é inerente ao homem. Não pude controlar isso, veio junto do acervo que compunha o quinto grau. Verá que para alguns indivíduos, apenas a violência pode saciar. Cada um reage de uma forma aos graus de lucidez. Talvez a propensão à violência seja a mais donosa dessas hereditariedades.

Ciorã ainda não se sentia à vontade em conversar com Ru.

⸺ Por que insiste em manter comigo estas conversas?

E o diálogo cessou ali, sem novas respostas. Os raros encontros ocorriam dessa forma: confusos e breves.

*  *  *

Em uma manhã qualquer, Ciorã foi caminhar por sua propriedade. Sua postura ereta e expressão arrogante tentavam arrancar de seus homens o medo, medido quando desviavam o olhar para não serem açoitados. Taraã coordenava um grupo de coleta de mandiocas e viu o líder se aproximar. De imediato agachou e começou a puxar as raízes, a fim de tentar disfarçar seu ócio. Ciorã parou ao lado dele, de pé, com as mãos na cintura.

Taraã desviou o rosto, como se não quisesse olhá-lo.

⸺ Fique de pé! – Ordenou.

Seu subalterno levantou-se vagarosamente, com ares de enfrentamento. Ciorã pousou sua mão no ombro dele e o conduziu a uma região afastada para ter uma conversa em particular. Os dois sentados nas pedras, se entreolhando, o silêncio se alimentando da seriedade... Ciorã tomava coragem para fazer o que foi fazer. Olhou para sua mão, apertou o olhar e conteve a vontade de açoitá-lo até a morte. Quase como quem se sente vencido por si mesmo, suspirou pela derrota e estendeu-lhe a vara que costumava carregar. Afoito, Taraã veio busca-la com a mão, ao que o líder tomou-a de volta para si.

⸺ Não seja apressado! A arte de comandar está na elegância, na maneira cautelosa de agir. – Ciorã sentiu como se as palavras de Ru saíssem de sua boca. E deu-lhe novamente a vara.

Taraã sentiu orgulho e esboçou um sorriso de satisfação, acochando a vara em suas mãos. “Tomara que você esteja certo, Ru!” Pensou Ciorã.

⸺ Estou te promovendo! Vejo que tem capacidade suficiente para estar acima do bando.

Taraã levantou-se, fez sua reverência e saiu. Nos dias seguintes, o líder não fez nada além de monitorar o comportamento de Taraã. Esteve em seu encalço o tempo todo, estudando sua postura como doutrinador. E a principal característica dele era a impaciência. Seu temperamento era explosivo. Pouca pena sentia de seus homens.

Um dia, ele viu Taraã trazer uma mulher, arrastando-a pelo cabelo enquanto gritava. Com brutalidade, ele a agredia.

⸺ O que está havendo? – Ciorã interrompeu.

⸺ Ela estava escondendo alimentos! Não quis repartir a produção. É desonesta!

Ciorã pensou em repreendê-lo para melhor analisar o fato, mas decidiu deixar acontecer. Ele queria avaliar o comportamento de seu imediato. Monitorando, viu Taraã atingir a mulher com sucessivos golpes de vara. Ela, por sua vez, tentou se defender colocando os punhos sobre o rosto, mas ele a golpeava com voracidade. Determinado momento, ela se levantou e tentou enfrenta-lo, empurrando-o no chão, depois cuspindo em seu rosto. Aquilo levou Taraã a um estado de fúria descontrolado. Ele se ergueu e esmurrou o rosto dela até fazê-la perder o equilíbrio e cair. Tornou a puxá-la pelo cabelo.

⸺ Quer me enfrentar, sua idiota? Vou te ensinar os bons modos!

Enquanto eles andavam, Ciorã acompanhava com olhar. Viu outros operários pararem de trabalhar para presenciar a cena. Os gritos ficaram mais altos a ponto de chamar a atenção de todos. Com rapidez, Taraã a levou para um posto de derretimento e soldagem de metais. Jogou a mulher no chão, de costas para cima, e pisou sobre o pescoço dela para que não se mexesse. Tirou da fornalha uma haste de ferro quente que estava em processo de derretimento para modelagem de ferramentas. Sem pensar, pressionou a extremidade incandescente sobre as costas dela.

Os gritos ecoaram por todo largo enquanto a pele crepitava abaixo do ferro em brasa. Ela se debatia com desespero, gritando tão alto quanto era possível.

⸺ Está doendo? Espero que pense nisso antes de cuspir novamente em seu chefe!

Ciorã, que presenciava tudo de perto, de braços cruzados, sentiu o cheiro de pele queimada e viu a fumaça sair das costas dela até que ela entrasse em choque e desmaiasse. Só então Taraã resolver parar e colocar a haste de ferro na fogueira novamente. Antes de sair, cuspiu sobre ela para consolidar sua vingança e saciar sua sede por violência. 

*  *  *

Episódios como esse se repetiam rotineiramente. Cada ato de crueldade e agressão de Taraã estava sendo observado pelos operários... e também por Ciorã. Ao final de quarenta dias sob seu chicote, quase todos do Largo já tinham suas cicatrizes nas costas. Os que tentavam enfrenta-lo ou cometiam atos que ele julgava inapropriados, acabavam sendo marcados com ferro quente. O algoz tratou de mandar que os ferreiros entalhassem uma peça de ferro para marcar com um símbolo do alfabeto, um caractere que significava indigno.

Taraã agredia-os mais que Ciorã e com tamanha sede ao pote que não podia se controlar. Imprimiu um ritmo de trabalho frenético. Frequentemente ele trazia seus homens à exaustão e limitava os horários de descanso e refeições. Os operários logo voltaram a ser magros como da primeira vez em que pisaram no Largo.

Quando alguém se recusava a obedecer, era castigado, sofria sessões de espancamento em público. As horas de trabalho foram aumentadas para todos e os descansos foram praticamente suspensos. Tudo era feito à custa dos gritos autoritários de Taraã. E ele sentia transbordar-se de satisfação.

Apesar de todo descontentamento do povo com a pressão de Taraã, poucos se rebelavam a ponto de tentar matá-lo, unicamente porque por trás de cada atitude agressiva, havia o aval do verdadeiro e autêntico líder: Ciorã. Por mais que o pioneiro também os tivesse agredido no passado, era evidente que os açoites de Taraã excediam em muito os aplicados pelo líder. E isso tudo era reforçado por um conceito que estava se formando na cabeça dos operários. Ru havia lhe dito sobre isso um dia, em tom irônico. “Quando o malvado é substituído pelo cruel, ele se torna bonzinho”.

Ciorã percebeu que ele era muito astuto e inteligente, apesar de descontrolado. Taraã era como o acelerador de processos, conduzia com mão de ferro e gerava aumento nos rendimentos em todas as áreas. Em algumas semanas, as coletas dobraram e os trabalhos nas construções de abrigos progrediram sobremaneira. O grupo tinha ordem e as equipes ganharam velocidade e sistematização. Agora, havia homens designados para cortar e separar, outros para transportar e outros para contar e descascar.

As casas eram edificadas com muito mais velocidade. Os estoques de peixes e carnes acabavam estragando pelo excesso de quantidade coletada e pelas restrições no consumo. Os operários do grupo dos construtores foram obrigados a extrair enormes quantidades de rochas dos paredões para atender ao projeto de calçamento do Largo. Foram construídos caminhos de pedras por toda a área habitável, ligando as casas, depósitos e outras edificações.

Ciorã observava tudo isso sem interferir, apenas monitorando. Longe de ser um ato de indiferença, ele estava estudando cada passo de seu subcomandante. Fizera como Ru lhe ensinara, não sujava mais as mãos. Sentado em um tronco de madeira na floresta, ele ouviu:

⸺ Ei Ciorã! O que está fazendo?

Ele rapidamente olhou para trás para encontrar quem conversava com ele.

⸺ Aqui, bem atrás de você!

⸺ Quem está falando?

⸺ Sou eu: Ru.

E uma raposa saiu de trás da folhagem. Ciorã levantou-se e empunhou sua lança para se defender.

⸺ Não precisa se assustar. Sou eu. – A raposa falava.

Ciorã enrugou sua testa e esfregou os olhos para ter certeza do que via. Houve um riso de deboche.

⸺ O que foi? Nunca conversou com uma raposa antes?

O líder permaneceu calado.

⸺ Não se preocupe. Posso assumir a forma que quiser. Frequentemente tomo as características de minha criação para experimentar suas peculiaridades.

Ciorã já não estava surpreso.

⸺ O que você quer?

⸺ Poderia ser mais gentil, Ciorã. Não vai agradecer por seu novo estilo de comando?

⸺ Porque deveria?

⸺ Ora. Acha mesmo que seria capaz de concluir aquilo sozinho? Se eu não tivesse te dito, ainda estaria sendo odiado por seus homens. Agora eles odeiam a Taraã.

⸺ Sim. Taraã tem feito um ótimo trabalho. Os redimentos...

⸺ Sim eu sei, estou vendo tudo – interrompeu Ru – Mas vamos ao que interessa! Não acha que deve aliviar um pouco seu grupo?

⸺ Porque eu faria isso? Quanto mais são chicoteados, mais rápido trabalham.

⸺ Aconselho a ter certa cautela. Todo grupo em regime de obediência é como um vulcão prestes a entrar em erupção. Se não houver válvulas de escape que aliviem a pressão esporadicamente, tudo pode explodir.

Ciorã virou-se ao ouvir gritos de um grupo próximo. Um subordinado tentava agredir Taraã, mas foi por ele imobilizado e espancado.

⸺ Está vendo? – A raposa olhava para a confusão – Eles podem estourar a qualquer momento.

⸺ E o que me sugere?

⸺ Manter seres humanos em escala máxima de proveito exige que o ritmo flutue como as ondas do mar! Seja bom e ruim. Arranque-lhes o couro, mas deixe que tenham um momento de alívio. Talvez seu papel seja trazer regalias a eles, já que Taraã é o responsável por administrar a violência. - Disse Ru, vendo Taraã atingir o transgressor com sucessivas chibatadas e chutar-lhe as costelas.

⸺ Mas como vou fazer isso?

⸺ Seja criativo!

A raposa saltou por cima do tronco e fugiu mata adentro. Ciorã esteve algum tempo refletindo. À noite, mandou que chamassem Taraã e o levou até a Fagulha. Em sua maioria, os homens já dormiam, desgastados por mais um intenso dia de trabalho. Por um longo tempo, os dois conversaram sobre aspectos do grupo e da rotina no Largo das Campinas. Pouco a pouco, Ciorã expôs as ideias que Ru lhe dissera, sem, no entanto, revelar seu contato com o Criador.

⸺ Como teve essa ideia, Chefe?

⸺ Apenas confie no que estou dizendo! Isso vai trazer tranquilidade para nós e respeito para eles. – Relatava Ciorã.

Como verdadeiros estrategistas, os dois chegaram a um consenso final sobre a questão das válvulas de escape. Concluíram que, a cada quatro dias de trabalho, haveria uma reunião para aliviar as tensões. Aconteceria ali, na Fagulha. Eles acenderiam uma grande fogueira e assariam carne de carneiros, em quantidade farta. Ao cair da noite seguinte, colocaram o plano em prática. Os membros do grupo, cansados e abatidos, reuniram-se na Fagulha e desfrutaram de saborosa comida. No início, faziam tudo com extrema desconfiança, por medo de serem, a qualquer momento, açoitados por Taraã. Desconfiavam dos olhares vigilantes de Ciorã e seu subcomandante.

⸺ Está vendo, Taraã? Estão dóceis como as ovelhas que foram abatidas. – Dizia o líder, com tom de riso.

⸺ Sim, Ciorã. – Ele já estava se acostumando a chama-lo apenas pelo nome – Sua ideia foi genial.

Com o passar dos dias, as pessoas foram se despreocupando e aproveitando o consumo farto. O clima de desconfiança foi gradativamente sendo dissolvido pela regalia. Eles eram ainda agredidos quando cometiam falhas no trabalho, mas a cada quatro dias, aliviavam as tensões e esqueciam de seus rancores. O costume os trouxe a uma posição de subordinação controlada, capaz de se manter por prolongado tempo, sem que houvesse uma revolta.

O grupo dos músicos trouxe vida e alegria a esses momentos, compondo melodias animadas aos batuques. Lió aproveitou o pretexto e trouxe uma bebida que ele tinha desenvolvido e mantinha em segredo, feita com cogumelos alucinógenos, chamada mel do luar. Naquelas noites, a rotina era quebrada e os homens sentiam a pressão abrandar-se e os ânimos se acalmarem.

Em uma caminhada de supervisão durante o dia, Ciorã circulou entre os homens que levantavam os abrigos e observou suas reações. As pessoas pareciam ter mudado suas posturas. Pela primeira vez o olhavam nos olhos, sem receio ou pavor. Os subordinados estavam deixando-o de associá-lo à violência. Por fim, ele constatou que era muito mais prazeroso ser amado do que temido. O egocentrismo de Ru palpitava em sua mente.

No meio das reuniões, Taraã e Ciorã, recostados nas árvores, com a bebida nas mãos, discutiam.

⸺ Ciorã, tem certeza que isto tudo está dando certo?

⸺ Claro! Observe a sua volta. Tudo está em ordem e sossego. Os rendimentos estão disparando e nós nos cansamos menos.

Taraã balançava a cabeça concordando. Bebeu um gole de mel do luar e olhou com seriedade para as pessoas. Por mais que o raciocínio de Ciorã estivesse correto, ele questionava silenciosamente, desaprovando aquela decisão. Sua sede por controle e domínio não havia acabado. Ele sentia como se sua maior fonte de prazer estivesse sufocada por aquelas festas na Fagulha. A violência era sua aptidão e ele conseguia enxergar uma mudança de rumo do grupo apenas de uma maneira: assumindo o comando! Entretanto, guardou essa ideia na cabeça, em um cantinho onde pudesse resgatá-la quando fosse oportuno.

⸺ Vamos, Ciorã. Vamos curtir um pouco da boa música de Berió.


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Notas finais do capítulo

O propósito ia e vinha como o lúdico balançar de pêndulo.



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