A Lenda do Exílio escrita por Lunéler


Capítulo 4
Asfixia


Notas iniciais do capítulo

A cadela come seus filhotes!



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Ciorã passou por um novo momento de inconsciência. Acordar à beira de um grande lago, com o olhar extraviado por qualquer árvore no horizonte, era uma forma muito peculiar de despertar. Aquilo já havia ocorrido outras vezes desde o desabar do mundo... e a sensação de descontinuidade temporal martelava em sua cabeça uma mescla de lembranças confusas e desconexas.

⸺ Está viajando? ⸺ Surgia a voz grave de Ru, sugerindo a distração do nômade.

O líder rapidamente resgatou sua atenção e virou-se para encontra-lo, mas não havia ninguém à sua volta.

⸺ Onde está você? - Disse.

⸺ Não se preocupe!  Você não pode me ver ainda porque estou preservando minha imagem. Se pode me ouvir podemos manter um diálogo. Fico feliz que possa entender o que eu digo.

Ru havia indiscriminadamente embutido uma inteligência capaz de fazê-lo absorver qualquer informação dita por ele.

⸺ Não se preocupe. Sei que deve estar pensando em quão confuso é tramitar do dia para noite para a racionalidade. O que faz você poder me ouvir é que agora você detém uma parte de mim muito peculiar. Estamos conversando através da mente, uma linguagem que criei para tentar traduzir em som verbal o que desejo expressar. Pode chamar esse idioma pioneiro de linguagem expansiva, pois ela vem de dentro para fora, emana de seu potencial em produzir correntes de pensamentos lógicas e profundas.

Estranhamente, Ciorã entendia cada palavra que ouvia, conseguia refletir sobre isso de uma maneira que nenhum ser humano podia naquele tempo remoto. Isso ocorreu porque Ru bombardeou a cabeça do líder com sua inteligência. Fez isso porque precisava dialogar com alguém, alguém que pudesse entende-lo em sua plenitude.

⸺ O que estou fazendo aqui?

⸺ Bom... se você, que é dono de seu próprio corpo, não sabe concluir sobre isso, o que espera que eu esclareça?

⸺ Você me trouxe aqui!

⸺ Está enganado, Ciorã. Você veio por sua vontade. Eu o segui para tentar resgatá-lo desta ruína em que está se metendo.

⸺ Do que está falando?

⸺ Sua mente já se conformou com o estado inerte de seu corpo e agora está buscando um rota de fuga para se livrar da bagagem física que carrega. Mas não se preocupe, o desejo pelo suicídio será diluído na ânsia pela vida. A razão que plantei em você o salvará de si mesmo.

Ciorã estava ainda muito desconfiado e arredio, não aprovava aquela forma de comunicação. Era estranho poder entender as frases de Ru, pois elas pareciam vir de um todo esparso e ecoante. Às vezes ele tinha a impressão de que a voz estava dentro de sua cabeça. Para acalmar seus ânimos e entender tudo aquilo, sentou-se à beira do lago e olhou para as próprias mãos na tentativa de constatar sua lucidez.

⸺ Não se acanhe, meu amigo. Você também pode falar e eu o entenderei. A linguagem expansiva é plena. Permita-me ajudar a entender o que ocorreu em seus últimos dias. Lembra-se da proposta de que te falei? Ela já foi aceita por você.

⸺ Como assim? Eu não aceitei nada!

⸺ Há dias você estava arrastando sua vida pelos cantos, viajando por este teatro de destruição. Você deve concordar que seu tempo aqui já devia ter encerrado... Entretanto, o observando sentado à beira daquele precipício, prestes a se jogar, percebi que havia algo de útil dentro de você.

⸺ Dentro de mim? Como assim? Do que está falando?

⸺ Notei que você emanava um sentimento forte demais para ser desperdiçado em um punhado de carniça apodrecendo. A dor que sentiu ao se deparar com a morte de seu pai mostrou que você estava muito próximo de atingir o patamar da razão. Seu instinto já estava na eminência de travar contato com a lógica, mas precisava apenas de um iniciador, uma fagulha para atinar a mente, incendiar os ânimos, trazer a tona um motivo para mergulhar no emblema da morte. O falecimento de um ente querido era o fator final.

⸺ Está dizendo que a morte de meu pai provocou meu entendimento?

⸺ Em linhas grosseiras, sim! Quando o ser humano cogita seu futuro, questionando qual será seu caminho, alimenta a razão.

⸺ É por isso que entendo o que está falando?

⸺ Não exatamente. Acha que seria capaz de atingir a razão sozinho? Eu o ajudei, o ajudei da forma mais eficaz: através da inserção de graus de lucidez!

⸺ Graus de lucidez?

⸺ Sim. Neste exato momento, sua mente deve estar criando mecanismos para ocupar o lugar dessas memórias tão intensas. É normal o corpo querer proteger sua consciência abafando as lembranças da noite passada, que podem ter gerado algum desconforto ou trauma. Mas não leve isso muito a sério.

⸺Imediatamente, Ciorã lembrou-se de pequenos flashs de sua noite anterior, quando fora agredido à beira do chiqueiro. Seu coração começou a palpitar.

⸺ Não chore, pobre Ciorã ⸺ disse Ru com um tom irônico ⸺ Enxugue as lágrimas desses olhos perdidos. Afinal de contas, não foi tão ruim assim, foi?

Ciorã permanecia calado, com seu corpo estático, perplexo pelas cenas que foram descobertas em sua memória.

⸺ Veja bem, meu amigo. Ignore o ato da agressão em si. Não havia outro jeito, esse é o protocolo, o ritual. O trauma vai fazer com que você jamais esqueça o que aconteceu. Fique feliz, pois se está me ouvindo, é porque passou pelo coito e demais atos interligados.

Nesse momento, tomado por uma sensação que lhe provocava arrepios, levantou-se e caminhou para a parte rasa do lago, onde a água cobria seus pés.

⸺ Escute, meu amigo. Existem doze graus de lucidez. O primeiro deles, representado pela porção de terra que inseri em sua boca, trouxe o sentido do eu. Você agora é capaz de separar a racionalidade da irracionalidade. E também de distinguir-se como alguém notável e constatar por si só premissa inicial de que nós existimos a partir do momento em que entendemos que existimos. O conceito deste grau é o alicerce sobre o qual todos os outros serão construídos. É o confronto consigo mesmo.

Ciorã virou-se para trás. Insistia em encontrar a origem daquela voz. Olhando para seu reflexo no espelho d’água, percebera a grandiosidade do que estava acontecendo. Aquela era a primeira vez que ele se deparava com sua imagem sob a perspectiva da razão. Seus cabelos volumosos e sua espessa barba o faziam parecer mais velho do que realmente era. Seu corpo era forte e musculoso, esculpido em dias de caminhada árdua. Seus olhos castanhos não tinham nada de especial ou belo, traziam apenas certa melancolia.

⸺ Como se sente enxergando a si mesmo pela primeira vez? Retorça cada detalhe seu! Você é este que enxerga e deve conhecer a si mesmo.

Houve um riso de deboche.

⸺ O segundo grau libera as amarras e limites físicos de sua mente, faz você compreender a matéria. É através dele que inseri o avivamento de uma energia que costumo chamar de Biostere, um fluido estático que dá solidez a tudo o que é matéria, tudo o que pode ser visto, sentido e tocado. Aquele som grave e distorcido que ouvira na noite anterior, que disse em seu ouvido direito, consolidou o ato.

Ciorã teve dificuldades para “digerir”, expressando confusão. Mas o fundamento daquela conversa era irreversível... as informações entravam na sua mente e não saiam. Um dia cada detalhe seria revirado, expandido e difundido.

⸺ Não se apresse, com o tempo este termo será comum para seus ouvidos. O terceiro grau, cedido por meio do som agudo do ouvido esquerdo, trouxe aspectos sobre a Eustase, a forma de energia dinâmica que dá sentido aos sentimentos, as grandezas e demais objetos abstratos.

Ru agora discorria com absoluta seriedade

⸺ O quarto grau é o que traz os filtros mentais. Estes filtros proporcionam nitidez às correntes de pensamento e permitem que você entenda, por exemplo, a linguagem expansiva, aquela que te faz me entender e também ser entendido por mim. E o quinto grau... bem, o quinto grau foi o responsável por inserir uma porção de meus pensamentos que será necessário, embora seja um tanto quanto dolorido. Este te trouxe uma coletânea de sentimentos meus, entre eles o ódio, que o manterá vivo durante a execução do projeto.

Ciorã afastou-se da beira do lago e desdenhou de tudo o que lhe fora dito. Sua mente relutava em acreditar naquelas palavras, despejadas em um curto espaço de tempo. Era difícil assimilar a grande quantidade de informação, especialmente para um cérebro que acabava de tocar à razão. O silêncio dele não indicava uma postura firme e decidida, era sim prova clara de que ele estava inseguro e ainda traumatizado com o que ocorrera na inserção dos graus de lucidez.

⸺ De uma forma ou de outra você aceitou a proposta de que te falei. A simbiose já está acontecendo. Mas não se apresse, pois é um processo gradativo, deve ser feito com cautela.

⸺ Como assim? O que é simbiose? ⸺ Perguntou Ciorã, com certa arrogância.

⸺ É o que está fazendo nos unirmos em um só ente. Eu preciso de coisas que você tem e você precisa de coisas sem as quais não pode viver.

⸺ Espere, está dizendo que estamos nos transformando em uma só pessoa?

⸺ Não propriamente. É mais como uma forma de mutualismo intenso. Eu te protejo e você me protege. Com o tempo nossas personalidades entram em fusão e tudo ficará mais fácil.

Ru impôs seu ser em Ciorã, sem piedade, tal qual coito forçado, como um bruto estupro. Não aquele motivado pelo desejo sexual descontrolado, mas aquele que empurra para dentro do cérebro coisas que não são essencialmente desejáveis. Aquilo funcionou mais como um abuso emocional do que físico. Não era sobre satisfação, como no sexo. Era sobre propriedade, como no domínio!

⸺ Vai ver como isto será bom para nós dois!

No fundo Ciorã sentia-se violado de todos os modos... E não havia como reverter o processo! Cada segundo que se passava, deixava mais claro que a relação entre ele e Ru não era de mutualismo, e sim de imposição. E o mais desesperador era que havia certo consentimento naquela inserção, como naqueles casos em que a vítima é obrigada a tomar iniciativas contrárias a sua vontade para não ser violentado de forma mais agressiva.

⸺ Agora escute, Ciorã. Você não é mais um nômade qualquer. Sobreviventes o seguiram, queriam se salvar do caos. As pessoas que compõe o seu grupo penduram-se inconscientemente em suas atitudes. Você é o líder deles, mesmo que não o queira. O mais fraco sempre precisa se agarrar ao mais forte. Você é como uma âncora para eles.

O líder enrugou sua testa em uma expressão de dúvida, pois não imaginava o que poderia ter levado aquelas pessoas a seguirem-no.

⸺ Experimente observá-los por um tempo. Verá que seu grupo carece de um comandante.

E não houve mais palavras de Ru. Ciorã, percebendo que estava sozinho novamente, resolveu voltar a seu vilarejo e encarar o que chamaria de subordinados. O poder nunca viera a sua cabeça para alimentar o domínio, porém, neste momento, ele era forçado a se comportar como um autêntico comandante. Os membros do grupo praticamente o haviam forçado a sê-lo.

Os indivíduos, inconscientemente, o selecionaram para leva-los àquelas montanhas. Isso fazia com que o peso da responsabilidade caísse sobre seus ombros. Naturalmente, ele estava sendo destacado por seu grupo. Os homens não queriam pensar, queriam que pensassem por ele e lhes dissessem o que fazer, tal qual um servo perante seu senhor.

Com o braço esquerdo apoiado em uma árvore da floresta, de uma posição alta e camuflada, Ciorã mantinha-se observando seu bando. Estranhamente, as pessoas pareciam enfrentar sensações próximas às que havia sentido. Todos estavam atônitos, apalpando as faces uns dos outros, em um ato inegável de reconhecimento próprio.

⸺ Está vendo, Ciorã? Você não é o único, embora seja o primeiro. Eles estão sendo gradativamente afetados pelos graus. Neste exato momento, se confrontam com suas próprias imagens por terem sido contemplados pelo primeiro grau de lucidez. Não demorará muito para que atinjam os outros.

Ciorã sentiu vontade de gritar.

⸺ Tenha cautela, meu amigo. Os graus virão de forma gradativa e contagiarão todos os seres humanos. Entretanto, devo alertá-lo que alguns serão mais afetados, outros menos. Alguns terão grande desempenho, outros poderão ter dificuldades e não suportar os graus, entrarem em colapso. Esteja preparado para isso!

Neste momento, Ciorã percebeu que dois de seus homens permaneciam no chão, contorcendo-se como minhocas. Apurou a visão e notou que eles cuspiam sangue e se tremiam, como se estivessem passando por um ataque convulsivo. De imediato, esboçou a descida de sua posição para socorrê-los.

⸺ Não faça isso, Ciorã! Ainda não é hora de você reaparecer para seus subordinados. Não se preocupe! Já existe alguém para solucionar este problema.

E de repente, um de seus homens se aproximou dos que estavam se debatendo e os avaliou. Sem delongas, acenou para outro de seus homens, o mais forte e alto, e este agachou e os asfixiou com as palmas grandes das mãos. Poucos minutos foram necessários para leva-los à morte. Por instinto, Ciorã tentou sair de sua posição, mas escorregou em alguns galhos e caiu, ficando por algum instante imóvel.

⸺ Não se preocupe, Ciorã. Isso faz parte do processo. Seu grupo está eliminando aqueles que não suportaram o primeiro grau. Os homens estão sendo selecionados. É como em uma ninhada de cães, a cadela mata e come seus filhotes doentes. Aquele de cabelos ruivos, que emitiu a ordem, está no controle agora.

Como um raio, um pensamento rasgou sua percepção. Apesar de ser uma ideia intrusa, que não pertencia a ele, deixou visivelmente atordoado, com raiva. Tratava-se de uma notória inveja, inveja por alguém estar no comando de seus homens.

⸺ Calma, Ciorã! Isso que você está sentindo faz parte de alguns efeitos colaterais do quinto grau. Como disse, você está absorvendo minhas características e uma delas é que sou um tanto quanto ciumento com minha propriedade. É natural que você se sinta ameaçado ao ver outro homem gerenciar a vida de seu bando. Mas peço que seja razoável, pois ele não é seu inimigo. Considere-o como seu braço direito, seu homem mais confiável, pois ainda dependerá muito dele. Agora vá! Mostre quem está no comando.

Ciorã se desvencilhou dos galhos e desceu até o bosque onde via seu grupo. Quando ele chegou, enquanto caminhava entre os homens, pensou em de alguma forma reuni-los para lhes explicar o que havia acontecido e quem de fato ele era naquele momento. Mas isso não foi necessário. Enquanto circulava, as pessoas curvaram-se perante ele, pois reconheciam, de imediato, que ele era o responsável pelo patamar em que estavam.

O líder sentiu o mundo girar a sua volta, pois todas as atenções eram suas. E isso era extasiante!


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Notas finais do capítulo

Até onde a lucidez de Ciorã se sustentaria?



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