A Lenda do Exílio escrita por Lunéler


Capítulo 3
Coito


Notas iniciais do capítulo

A ironia do Criador tornava o coito ainda mais traumático.



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Ciorã agora estava enxergando um infinito profundo que se chocava ao céu extenso. O mar, com todo seu volume inquieto se perdia onde os olhos não alcançavam e trazia até a praia os sedimentos decorrentes dos distúrbios de Ru, impostos sobre a terra em jatos pulsantes e caóticos. Em algum momento deste holocausto todo uma parte de Ciorã havia se perdido. Talvez a morte de seu pai tenha sido o verdadeiro motivo, associado ao desejo inescrupuloso de destruição... parte dele estava morta.

Aquele entardecer não era como os outros, pois o que se aproximava estava muito além do sofrimento costumeiro. Ciorã levantou-se e vagou para dentro da floresta, pois estava inerte, entorpecido. Andou sem rumo, induzido pelo zumbido estranho que parasitava seu cérebro, como aquele que fora impregnado em sua mente.

Como tudo que tinha origem naquele mundo desolado, deu-se o tempo adequado para que a solidão e o absoluto silêncio tornassem traumático cada segundo que antecedia o caos. “O colapso estava ali!” Ciorã queria se perder no abismo da loucura. Em um instante qualquer, seu corpo se tornou inoperante, estático em meio à folhagem densa. Ele estava distante de todos os outros membros do grupo. Não havia sinal de que alguém o havia seguido, entretanto, era impossível não sentir aquela presença. Um indivíduo se conservava atrás dele, também imóvel. O líder sentia a respiração atingir sua nuca.

Em um ato brusco, o agressor encheu a mão esquerda com o cabelo de Ciorã e tracionou sua cabeça para traz enquanto torcia um de seus braços com a outra mão. O líder ouviu um som grave e distorcido. Em seguida, foi forçado a se ajoelhar e reclinar a cabeça ao solo.

Agora, com as duas mãos torcidas para trás do tronco, o rosto enfiado na terra e o quadril suspenso, sentiu dedos fortes apertarem seus punhos, enquanto a outra mão do atacante apanhava um punhado de terra bem à frente de seus olhos. Sentiu seu pescoço ser retesado para trás novamente enquanto era mantido imóvel. Sem cerimônias, a porção de terra foi enfiada em sua boca por uma compressão abafada.

Forçado a abrir os olhos e se debater para tentar tomar algum fôlego, Ciorã percebera que estava sendo vítima de um ato nefasto de um indivíduo, do qual não pode ver a face. Logo suas mãos foram amarradas atrás do corpo, assim como os pés, que se uniram às mesmas amarras das mãos. Com brutalidade, ele foi arrastado pelo chão alguns metros, até ficar à beira de um chiqueiro.

Como não tinha apoio, caiu logo com o rosto na lama e tentou se mexer para que não fosse asfixiado. O terreno era inclinado e impossibilitava que ele pudesse tomar sustentação para tirar a cabeça da lama. Em poucos minutos, ficou sem fôlego e achou que morreria. Quando já estava suficientemente desesperado, sentiu seu cabelo ser puxado para trás, trazendo-o de volta para o ar livre, liberando suas vias aéreas. Por alguns segundos, Ciorã buscou afoito o ar, entre tosses para expelir a lama que cobria sua boca e nariz.

O seu agressor encostou seus lábios na sua orelha direita e pronunciou algumas frases, porém, tudo o que Ciorã conseguiu ouvir foram zumbidos graves, como se estivessem distorcidos. Alguns minutos de silencio antecederam o novo sufocamento. A cabeça do líder foi novamente colocada no lamaçal, porém, seu agressor decidiu segurá-la, para que não houvesse chance de conseguir curvar o tronco para respirar.

Em doses melancólicas de pavor, Ciorã foi aguçando seus sentidos, enquanto seu coração batia descompassado. Finalmente, ele foi libertado mais uma vez. O ar entrou com violência em sua garganta, arrastando farelos de terra que o fizeram engasgar. Novamente entre tosses desesperadoras, ele retomou o fôlego. O seu agressor, dessa vez, aproximou-se da orelha esquerda e disse novas frases, que, agora, tomaram um tom agudo e estridente, capaz de enlouquecer, embora ainda não pudessem ser entendidas.

A terceira vez que Ciorã teve seu rosto afundado na lama fora o mais intenso. Sentiu não apenas que alguém segurava sua cabeça, forçando-a para baixo, mas que também a esfregava com força, pressionando o mais firme que podia. Aquele mergulho parecia ser o primeiro divisor de águas daquela relação atípica entre agressor e agredido. Nesse estágio, Ciorã já estava à beira da desistência e tudo passou a fortalecer sua ânsia pela inexistência. Inevitavelmente, a mudez o atingiria. Seu tronco parou de se esgueirar como uma cobra e seus músculos afrouxaram. O silêncio veio dançando por entre as árvores até roubar o espaço que o som pastoso dos engasgos produzia submerso na lama.

Não havendo mais reações claras de sobrevivência, o agressor o puxou novamente para fora. Desacordado e flácido, Ciorã parecia não precisar de mais nenhuma desculpa para deixar aquele lugar. Mas o indivíduo que o estava controlando não quis deixa-lo partir e resolveu limpar seu rosto. O excesso de lama foi removido de sua face, em seguida, recebeu um grande sopro de ar pela boca. Por instantes, sentiu um mar de vida inundar seu corpo e trazer de volta a lucidez. Novos engasgos e tosses puseram pra fora um pouco de lama para que o ar entrasse.

— Pode me escutar? – Perguntou o agressor.

De uma forma muito estranha Ciorã conseguia entendê-lo, muito embora ainda não se tivesse desenvolvido nenhum idioma ou forma de comunicação verbal. E mais estranho ainda foi Ciorã conseguir responder àquilo, sem que raciocinasse sobre o ato em si.

— Sim!

— Parabéns, você chegou onde ninguém mais chegará.

— Onde cheguei? Quem é você?

— A pergunta mais conveniente não é quem e sim o que? Você está falando Ru, o Criador.

— O que está acontecendo?

— Não se assuste! Você já chegou ao terceiro grau, certamente suportará sentir os outros. Você vai gostar do quarto!

— O que?

E, lentamente, Ru forçou a cabeça de Ciorã para a direção da lama. Nesse estágio, o líder fora envolvido por um misto de apatia e conformismo, o que coibiu por completo qualquer reação. Repentinamente um jato pulsante de formigamento tomou conta de seu corpo, enquanto ele era sufocado. Quando sua cabeça foi retirada da lama, ele não enxergava mais lama e sim uma límpida poça de água.

— Nem tudo precisa vir com minha aspereza habitual.

— O que é isso?

— Isso?! Pode chama-lo do que quiser, eu o chamo de coito forçado! Preparado para o quinto grau?

E então a cabeça de Ciorã foi mergulhada na água e aquela fora a pior sensação que já sentira em toda sua vida. Sentiu uma forte pressão na cabeça, a ponto de pensar que ela explodiria. Seu coração inchou e transmitiu a sensação a todo corpo. Suas entranhas começaram a se contrair. Os fatos inevitavelmente recaiam sobre a violência gratuita. Não poderia ser diferente com a emblemática relação entre Ru e Ciorã.

Quando ele emergiu, entrou em completo desespero, chorando, gritando como um louco enfurecido. Ainda com espasmos musculares, começou a expelir pelos ouvidos uma pasta preta, viscosa. Logo o fluido denso também saiu de seus olhos, de seu nariz e de sua boca. Um quantidade generosa de vômito foi necessária para amenizar o insuportável enjoo. Depois de dar conta de que ainda estava vivo, viu que a pasta negra saiu também de seu ânus e da uretra de seu pênis.

— Inseri em você um pouco de mim. Espero que saiba aproveitar isto... Acha que suportará o sexto grau? Vou deixa-lo para uma ocasião especial, pois este não sei se você suportará.

E então o agressor deixou Ciorã livre, mas ele queria apenas descansar, traumatizado, chocado, com os olhos esbugalhados, e por isso não o olhou.  A noite despencou sobre o cenário e o líder adormeceu profundamente.

Horas depois ele acordou à beira da lama e se pôs sentado. O sereno o fez sentir frio, ainda era madrugada... A primeira coisa que veio à cabeça de Ciorã foram as memórias recentes que bombardeavam sua mente. Ru havia inserido na cabeça dele a capacidade de entender! E isso era sublime.


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Notas finais do capítulo

Fechar os olhos não era suficiente para conter o sofrimento.



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