The Kostroma Dynasty escrita por Mialee Aurestelar


Capítulo 33
Pesadelos Sazonais


Notas iniciais do capítulo

Oi, minha gente! Como estão?

Primeiro de tudo, desculpem o sumiço. O bloqueio criativo me atingiu em cheio, mas agora eu acho que os próximos capítulos vão fluir melhor, estou bem empolgada para escrevê-los ^^

Boa leitura!



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Shadows, all I see are shadows

Hiding where the wind blows

Hiding where my mind got torn

Bad Dreams — Faouzia

 

Catherina estava com sono. O sol do fim da tarde entrava morno pela janela do carro e ela, não tendo recusado um único doce que a avó de Isaach tinha feito e percorrido a propriedade inteira durante as brincadeiras com as outras crianças, sentia-se cheia e feliz. Claro, ela e Aleksei já eram um pouco velhos demais para jogos que envolviam correr e sujar a barra de suas roupas, mas Catherina não dava a mínima. Tinha energia demais para ficar sentada tomando chá, além de ser muito boa em convencer o irmão e seus amigos a se juntarem a ela. 

Aleksei, sentado ao seu lado, se encontrava no mesmo estado de espírito. Os dias em que podiam ir visitar seus amigos fora do palácio eram seus favoritos, pois podia passar mais tempo com o irmão e ele sempre parecia voltar um tanto mais alegre. Em dias especialmente bons, ela até conseguia evitar que ele se enterrasse em trabalho e treino assim que pisavam em casa. 

— Alek, quero ver um filme quando chegarmos em casa — anunciou, esperando que ele entendesse seu recado. Ele riu, desencostando a cabeça da janela para olhar para Catherina.

— E? Precisa da minha permissão? 

Catherina não achou graça, e fez um bico que só resultou em mais riso da parte de Aleksei. Como ela manteve a cara feia, ele se recompôs depressa.

— Desculpa, desculpa. O que você quer ver? — disse ele, descansando a cabeça no vidro no vidro de novo, à espera da lista que Catherina iria recitar. — Alguma coisa que a gente não viu três vezes já, por favor. 

Na empolgação de explicar o que ela tinha em mente, Catherina não percebeu quando Aleksei abandonou a postura relaxada em que estava, olhando para fora da janela com apreensão, procurando alguma coisa. Ela só se deu conta de que algo estava errado quando ele soltou o cinto de segurança e a puxou para perto dele com tanta firmeza que chegava a machucar.

— Alek, o que… 

O carro freou bruscamente e, antes que Catherina conseguisse assimilar o que tinha causado aquilo, os vidros do lado direito do carro, no qual ela estava sentada, estilhaçaram. Protegida pelo abraço de Aleksei, os cacos mal a tocaram, mas ela conseguia sentir o ardor de cortes nas pernas e em um dos braços. Desorientada e em pânico, ela não conseguia reter o que seu irmão estava discutindo com o motorista, que tentava religar o carro em vão. Isso não deveria estar acontecendo. Aquela era uma das regiões mais seguras da capital. E o carro com os guardas que deveria estar seguindo-os? Nada. Cercados de mata naquela estrada vazia, Catherina nem conseguia identificar o que tinha causado a pausa brusca, pois, além do desespero desorientador que estava consumindo-a, o lusco-fusco dificultava a visão do lado de fora. Era muito difícil ter certeza, mas ela achou ter escutado o som de passos no asfalto. 

Aleksei tinha cortes na lateral da cabeça e nos braços, mas parecia não notar isso, sem afrouxar o aperto ao redor da czarevna por um segundo sequer. Catherina conseguia ouvir o coração dele disparado, a respiração forte de quem tentava se acalmar e as mãos que a seguravam tremendo, mas ainda era o único conforto que tinha. Era a única coisa a impedindo de chorar alto e mesmo isso ela perdeu quando uma escuridão anormal cercou o carro.

Ela sentiu o que Aleksei ia fazer um segundo antes de acontecer, quando o aperto ao redor dela ficou mais brando. Ele nem ao menos olhou para ela antes de abrir a porta e sair, rápido demais para que ela ou o motorista pudessem impedir. 

Daí em diante era tudo caos. Nenhum dos dois conseguia abrir as portas, bloqueadas por alguma coisa. Poderiam, claro, sair pelas janelas quebradas, mas havia algo profundamente errado na escuridão que os engolfava. Não era como se a noite tivesse caído de repente. Era um escuro denso, impenetrável, vivo. Parecia sibilar uma promessa venenosa, muito efetiva em paralisar ambos dentro do carro, com medo de se mexer, de respirar alto demais. 

Encolhida no banco, Catherina tentava abafar o choro tampando a boca com as mãos. Um silêncio espectral tinha se instalado ao redor deles, mas ela sabia que havia algo de fora que poderia ouvi-la, fosse o que causara a parada do carro ou aquela escuridão tenebrosa.  

E Aleksei? Nem tinha conseguido olhá-lo direito antes de ele ir. A realidade de que talvez nunca mais fosse vê-lo lançou uma onda nova de horror sobre ela, arrancando um soluço mais forte de seu peito. O som ecoou alto demais, chamativo demais, e ela se encolheu mais no banco, desejando desaparecer. Como que em resposta, um grito de pavor do tipo mais puro rasgou o ar. E outro. E outro. Eram de Aleksei? O que estavam fazendo com ele? Os gritos continuavam e aquela escuridão parecia abraçá-los, devorá-los como se fossem um alimento que cobiçava a anos. 

Catherina acordou com o som de seu próprio coração martelando em seu peito e ouvidos com tanta força que quase doía. Bom, pensou enquanto se forçava a respirar fundo várias e várias vezes, pelo menos dessa vez eu não gritei. Mesmo se sentindo trêmula da cabeça aos pés, a caçadora saiu da cama, necessitada de um banho para livrá-la do suor e afastá-la das garras daquele pesadelo.

Naquela época do ano, Catherina costumava ter aquele sonho específico por uma ou duas semanas. Toda vez ela tinha a esperança frágil de passar sem aquilo e sempre se decepcionava. Era perturbador. O esperado seria que já estivesse acostumada àquela altura, dessensibilizada ao seu pesadelo sazonal. A realidade era que ela tinha reações piores a cada início de primavera. Seu único consolo era que essa devia ser uma das últimas vezes daquele ano. Conseguiria dormir noites inteiras e não estar acabada no aniversário de Alek.

Ah, Aleksei… Ela tinha que admitir que seu maior conforto dos pesadelos estava sendo a realidade e como o czareviche estava se portando nela. Pela primeira vez em muitos anos, Aleksei estava em movimento. Era o melhor jeito de descrever como seu irmão estava saindo de sua área de conforto a passos miúdos. Na promessa de que ele estava se encaminhando para uma existência mais feliz, ela conseguia se afastar do horror que suas noites traziam. 

Era muito cedo, percebeu ao sair do banheiro e ser recebida pela luz fria que antecedia o nascer do sol. Olhou para a cama, que geralmente era seu lugar favorito, com desgosto e dirigiu-se para o sofá em sua sala de estar. Não arriscaria dormir de novo e acordar ainda pior. 

Sem forças para fazer qualquer coisa que não fosse olhar para o teto e divagar, Catherina deixou os pensamentos irem para a direção que queriam, os dedos instintivamente tracejando as cicatrizes que tinham ficado em seu braço direito como lembrança do acidente.

Aos treze anos a czarevna tinha começado a sonhar com aquele incidente. Depois de cinco noites mal dormidas e com ela acordando aos prantos, seus pais a convenceram a finalmente relatar que pesadelos eram aqueles. Difícil dizer qual dos dois tinha ficado mais chocado e preocupado com o que ela tinha descrito. Ambos falaram da possibilidade de um trauma, mas Catherina tinha visto a expressão que ocupara o rosto de sua mãe por um instante minúsculo. Até hoje ela não sabia o que era exatamente, mas parecia culpa. Na época não tinha condições de questionar isso de fato e a dúvida tinha sumido de sua mente com o tempo. 

Sessões de terapia depois, Catherina tinha convencido o terapeuta e os pais de que os sonhos tinham sumido. Não era uma mentira total; se antes ela tinha aquele pesadelo quase todas as noites, agora tinham se restringido a um único período do ano, o que era ainda mais inquietante, claro. Não havia o que fazer, ela achava, e pelo menos podia fingir que nada estava acontecendo pelo resto dos meses. Assim, apesar de não estar tudo bem, havia alguma sensação de controle.

A grande questão era que o evento que alimentava o sonho de Catherina não tinha acontecido, pelo menos não do jeito que sua mente adormecida lhe mostrava. Um acidente de carro tinha ocorrido de fato, mas por causa de um cervo que pulara no meio da estrada de repente, fazendo o motorista desviar e perder o controle da direção, batendo no acostamento. Não havia um motivo misterioso, uma escuridão senciente. Aleksei nem ao menos saíra do carro, uma vez que a escolta deles tinha os alcançado poucos minutos depois e resolvido a situação. 

Catherina já tinha revirado os registros do acidente e não havia furo algum na história. O motorista, os guardas e Aleksei tinham recontado o mesmo caso e, em todas as vezes, Catherina teria desmaiado logo depois da colisão. Fazia sentido que os sonhos fossem a mente da czarevna modificando a situação em uma resposta traumática. Tudo era muito lógico, muito bem documentado. E, mesmo assim, Catherina ainda não acreditava por completo. 

Isso porque, depois da data do acidente, alguma coisa tinha mudado em Aleksei. Desde muito nova Catherina conseguia perceber o irmão se fechando, ganhando uma seriedade que não cabia em uma criança. Mesmo assim, era uma mudança gradual, acontecia devagar o suficiente para que Cat a percebesse e pudesse arrumar um jeito de encontrar as aberturas que o irmão deixava, mantendo a relação dos dois fluindo. Ela não aceitava que ele a afastasse, e Alek nunca reclamou disso, fazendo Catherina acreditar que ele não queria o distanciamento, não de verdade. 

Daquela vez foi diferente. De um dia para o outro havia uma muralha entre os dois e a czarevna não conseguia encontrar abertura alguma, por mais que procurasse. Não havia agressividade ou raiva quando ele se afastava, o que era pior. Se tivessem discutido, gritado um com o outro, talvez ele tivesse admitido o que tinha causado aquela ruptura. Nas fissuras do muro, Catherina conseguira captar melancolia e culpa. Mas por quê? A falta de uma resposta estava corroendo-a por dentro, acabando com as poucas horas de sono que lhe restavam.

Ainda assim, era difícil odiar Aleksei ou mesmo sentir que ele a odiava na maior parte do tempo. Porque todas as noites sua criada pessoal lhe trazia um chá diferente para insônia e, depois de muito perguntar, soube que eram ideia do czareviche. Porque ele não conseguia se recusar a falar com ela, não completamente, cedendo em pequenas conversações. Porque nas noites em que ela acordava aos gritos, ele era o primeiro a ouvir e a avisar os pais dos dois, como se não dormisse. 

Catherina não sabia onde estaria se tivessem continuado desse jeito para sempre. Nunca tinha se sentido tão sozinha, com cada vez menos coragem de fazer uso de sua insistência usual para passar um tempo com Aleksei. Parecia um pouco infantil, talvez, ser tão apegada a ele, mas era uma presença que fazia falta. Ele era seu primeiro amigo, e, aos treze anos, lhe entristecia demais ter que abrir mão de sua amizade mais antiga.

Meses depois, Aberash chegou ao palácio e, de novo, alguma coisa mudou. Dessa vez não foi repentino, nem muito menos ruim. Aleksei nunca chegou a explicar ou se desculpar pelo comportamento distante, mas, aos poucos, foram retomando uma relação mais normal. E isso não só com ela, tinha percebido, mas com Isaach e Andrey. Aleksei ainda estava diferente, coisa que ficava muito evidente em qualquer reunião social, mas não estava tentando se isolar mais quando se tratava de sua família e amigos.

Nunca tinha perguntado a Aberash que milagre ela tinha performado em seu irmão, justificando para si mesma que, se tinha funcionado, era o suficiente. Agora, porém, ela se via imaginando se não tinha fugido da resposta por medo. O mesmo medo que a fazia encarar seus pais e os amigos em comum com o irmão às vezes, com uma dúvida tão recorrente quanto ignorada se formando em sua cabeça: eles sentiam que conheciam Aleksei de fato?

Não conseguia decidir o que seria pior, se uma resposta positiva ou uma negativa. O que doeria mais, a existência de um segredo ou a confirmação de que o afastamento dos dois deixara marcas que não tinham se apagado com os anos?

Catherina não gostava da direção que seus pensamentos tinham escolhido, percebeu, com uma sensação esquisita de pesar e sonolência avolumando-se sobre si. O sol tinha saído e, um tantinho incentivada pelo calor suave que entrava pela janela, decidiu que já era tempo de sair daquele quarto. Algumas horas de treinamento deveriam ser o suficiente para limpar sua cabeça e tornar a convivência consigo mesma um pouco mais suportável.

***

O mundo inteiro parecia se aquietar no instante em que o maestro erguia as mãos, comandando não só os musicistas, mas também a plateia, ao silêncio mais absoluto. Às vezes o momento se arrastava longamente, mesmo que, de verdade, fossem segundos voláteis. Então o condutor movia as mãos novamente, e o silêncio se quebrava em um milhão de pedacinhos, inundando o teatro com música. 

Essa era a parte preferida de Aleksei, ver orquestra respirando. Pelo menos era assim que tinha explicado para seu pai na primeira vez que assistira uma performance. Não tinha muita certeza de onde a definição tinha vindo, mas agora, vendo Katherine prendendo o fôlego antes da apresentação começar, a lembrança veio fácil. A empolgação e maravilhamento de respirar junto com a orquestra. Uma inspiração silenciosa e uma expiração vibrante em som.

Fazia um tempo que ele não ia até a cidade e mais tempo ainda que não assistia um concerto, mas o principal fator para seu contentamento era ver a animação de Katherine. Tinha se esforçado, e conseguido, para manter uma conversa com ela no caminho até ali e, por mais que estivesse determinado a compensá-la pelo desastre que tinha sido o encontro anterior, não era capaz de puxar algum assunto entre as peças, como costumava fazer com sua família. Afinal, os olhos dela estavam fixados no palco, reluzindo num encanto genuíno demais para ser interrompido. Era uma expressão linda. Como será que era, se maravilhar com as coisas que para ele já eram familiares demais para gerar tal reação? Mesmo que aquela emoção ele não conseguisse experimentar de novo, ainda havia uma graça a mais em tentar lembrar, em fechar os olhos e, durante uns minutos que fossem, só ouvir e deixar a mente ser puxada para os cantos aos quais a música convidava.

 Um pouco mais de uma hora se passou até o fim do concerto, e Aleksei tinha gostado de cada minuto. Tinha sido bom o suficiente para que ele se esquecesse das câmeras que tinham acompanhado todos os passos dos dois até ali - o que era um feito, porque esse era o único aspecto da Seleção com o qual ele nem queria se acostumar. Nos bailes o foco da filmagem saía dele de tempos em tempos e nos encontros no palácio era mais fácil delimitar onde a gravação começava e terminava, afinal tinha sido acordado desde o princípio que as conversas entre o czareviche e as selecionadas não seriam gravadas, e há um limite de quanto se pode filmar os corredores e jardins do palácio e ainda manter um espectador interessado no que está vendo. Sair da morada real, porém, era algo raro demais para não ser acompanhado em detalhes.

 — E então — perguntou, virando-se para Katherine enquanto esperavam o teatro esvaziar um pouco para saírem — o que achou?

— Foi fantástico! — ela respondeu com um sorriso largo que fez Aleksei, não pela primeira vez na noite, ficar agradecido por ter tido a ideia de convidá-la até ali. — Para ser sincera, não sabia que gostaria tanto de ouvir música clássica, mas mal percebi o tempo passando… E o som! É tão diferente ao vivo, tão mais… cheio, acho.

— Fico feliz que tenha gostado, foi bom ter voltado aqui depois de tanto tempo com companhia — disse, achando um pouco de graça de não ser o único a inventar termos para descrever a experiência de ouvir uma orquestra. — O diretor do teatro nos deu permissão para andar pelo palco e bastidores, gostaria de ir até lá? 

— Sim, por favor! — A expressão de puro interesse dela foi substituída por algo mais preocupado logo em seguida, o que fez Aleksei redobrar a atenção para o que ela diria, após lançar um olhar discreto para as câmeras atrás dos dois. — Na verdade, preciso conversar com vossa alteza… 

Aleksei entendeu depressa o que ela estava implicando, conseguindo convencer a equipe de filmagem a gravar um pouco do “passeio” dos dois de longe e irem esperá-los do lado de fora do teatro. Apesar da prontidão em tomar todas essas precauções, Aleksei estava nervoso. Não esperava pela súbita seriedade de Katherine. Tinha feito algo errado? Ou será que tinha algo acontecendo no palácio e só fora de lá ela se sentia confortável para falar? Se obrigou a respirar fundo e não pensar demais enquanto desciam da galeria até o palco, em um silêncio tenso. Ele conseguia sentir a mão dela, pousada levemente no braço esquerdo de Aleksei, tremendo um pouco. 

— Sobre o que gostaria de falar? A senhorita está bem? — perguntou, quando achou que já estavam longe o suficiente.

— Ah, sim! Me desculpe, vossa alteza, não quis implicar que tem alguma coisa errada… Quer dizer, tem, mas não é uma questão de vida ou morte nem nada do tipo! — disse ela, corando ao tentar se justificar. De um jeito estranho, isso fez Aleksei se acalmar um pouco, lembrando a si mesmo de manter a compostura. Dos dois, era ela quem estava mais vulnerável na situação, e ele devia tentar facilitar a conversa, não se desesperar. 

— Confesso que é bom saber disso — acabou respondendo, com um sorriso fraco. — Mas, de qualquer forma, parece importante. Sou todo ouvidos a qualquer que seja o assunto.

Foi a vez dela de respirar fundo, parando a caminhada dos dois no centro do palco. Precisou de uns bons segundos para que ela o encarasse, mas, quando o fez, seus olhos estavam firmes, decididos.

— Quero deixar a Seleção. 

Não estava esperando por isso. Aleksei tentou não expressar o quão chocado estava, mas não conseguiu se impedir de franzir as sobrancelhas. Não sabia muito bem o que estava sentindo. A lembrança de seu último encontro com Leonor veio antes que ele pudesse impedi-la, e ainda tinha um gosto muito amargo, percebeu. 

— Eu… Por quê? 

— Venho duvidando se deveria estar aqui desde que anunciaram as selecionadas. Não é como se as coisas estivessem ruins, não estão. Gosto da companhia das outras garotas e sair hoje com vossa alteza foi ótimo. — Ela abriu um sorriso um tanto melancólico, o que esfriou a rejeição que Aleksei estava sentindo. Katherine era uma pessoa inteiramente diferente de Leonor, e merecia uma resposta diferente por parte dele. — Mas, mesmo assim, ainda acho que é a melhor decisão que eu posso tomar.

— Agradeço pela honestidade — disse, e era verdade. Ainda que fosse uma situação desconfortável, Aleksei estava percebendo depressa que era melhor jogar às claras. — É claro que você pode deixar a Seleção, mas poderia me contar quando decidiu isso?

Katherine balançou a cabeça, concordando. Parecia mais tranquila agora que a parte mais difícil da conversa tinha passado.

— Um ou dois dias atrás a decisão ficou certa na minha cabeça. Não aconteceu nada de especial, eu só… Estar no palácio foi um choque para alguém como eu, que levou uma vida tão pequena. Não acho que vivi o suficiente para saber lidar com a corte. Também não sei se conseguiria crescer do jeito que acho que preciso dentro do palácio… — Ela parou por um segundo, parecendo pensar em algo de repente. — O que vossa alteza acha? 

Aleksei precisou de um momento para analisar o que ela estava lhe perguntando. Seu primeiro impulso era afirmar que qualquer um poderia aprender a lidar com a corte, que era uma questão de tempo e paciência. Mas ele tinha nascido naquele ambiente. Teve a sorte de caber, o suficiente, no molde que lhe fora dado como governante. Mas sabia de outros que não tinham tido a mesma sorte e se lembrava de algumas transições desconfortáveis pelas quais tivera que passar na infância e na adolescência.

Além disso tudo, olhou para Katherine, olhou de verdade, sem tentar enxergar mais ou menos do que estava ali, e a resposta começou a se formar em sua cabeça. Ela estava no grupo das selecionadas mais novas, mas não era só isso. Outras selecionadas, mesmo que mais jovens, tinham um peso ao redor delas que não existia em Katherine. A sombra que ele via com mais ou menos frequência nos olhos das outras também passava pela expressão dela de vez em quando, mas Katherine… Ela parecia estar começando a descobrir que caminhos gostaria de seguir e Aleksei não conseguia afirmar que estar no palácio facilitaria essa jornada. 

— Ser parte da realeza pode abrir um milhão de portas, mas não é o melhor lugar para descobrir quem se quer ser, acho. “Crescer”, nesse caso, tem propósitos muito fixos. Alguns cabem entre as paredes do palácio, mas a maioria não. — Aleksei se viu sorrindo antes de continuar, preferindo bem mais a tranquilidade do que iria dizer do que a angústia que tinha sentido antes. — Com tantas oportunidades, costuma ser difícil perceber que nenhuma delas serve e procurar outras saídas se torna doloroso. Acho que é um bom sinal que tenha conseguido perceber isso tão cedo.

Aleksei viu um pouco daquela felicidade de antes voltar ao rosto de Katherine, o que era um bom sinal. Era melhor assim, terminar as coisas com uma conversa madura, com um fechamento de verdade. Não sabia se deveria esperar outras desistências no futuro, mas, agora que Katherine tinha aberto essa possibilidade, seria sábio se preparar para lidar com elas com mais honestidade e menos animosidade, diferente de como fora com Leonor. Não era o único a ditar as regras do jogo complicado que era a Seleção, no final das contas. 

— Espero que sim… Não acho que vai ser fácil manter a certeza dessa decisão quando eu voltar para minha vida lá fora — confessou ela, retomando a caminhada dos dois a passos lentos. Riu um pouco, antes de continuar. — Nunca fui a pessoa mais corajosa do mundo, então tenho que admitir que estou um pouco apavorada com o que virá.

— Tomar decisões e se comprometer com elas sempre me pareceu bem difícil, acho que a senhorita se dará muito bem daqui para frente, mesmo que agora não pareça assim. — Ela assentiu, embora parecesse um tanto incerta ainda. Aleksei entendia, dúvidas sobre si mesmo não costumavam ser resolvidas com palavras gentis, muito menos de alguém que ela mal conhecia. Pensar nisso, porém, o lembrou que havia vários alguéns no palácio com quem ela tivera bem mais tempo de convivência. — Já contou às outras selecionadas sobre isso?

— Não achei que deveria falar antes de conversar com vossa alteza — respondeu, e o restante foi dito num tom de voz mais baixo e pesaroso. — Também gostaria de adiar despedidas chorosas o máximo que eu puder…

Naquele momento, Aleksei entendeu de onde vinha a tristeza de antes. Katherine não estava tomando aquela decisão sem perder algo, e isso não se referia só às chances de ascensão social, romance e as outras mil coisas que tinham vendido como atrativos da Seleção. De certa forma, era bom saber que as selecionadas estavam criando relações fortes umas com as outras, afinal Aleksei bem sabia quanto era solitário viver entre a corte sem uma boa rede de apoio.

— Entendo. A senhorita não precisa se apressar se não quiser… Digo, não precisa voltar para casa imediatamente, se quiser aproveitar o próximo baile, por exemplo, poderia ser uma boa despedida — arriscou ele, sem ter muita certeza se seria o tipo de coisa de que ela gostaria. A resposta, porém, veio mesmo antes de Katherine abrir a boca, naquele brilho de interesse genuíno que irradiava dela com tanta facilidade.

— Eu posso fazer isso?

— Claro que sim. — Aleksei não resistiu e acabou rindo um pouco, contagiado pela felicidade dela.

Entre agradecimentos e discussões sobre a organização do baile, o resto da noite foi passando. Apesar da desistência de Katherine, Aleksei ainda encarava o encontro como uma vitória, em primeiro lugar porque teve uma conversa inteira com a garota, e uma muito boa, inclusive. Era uma pena que tivesse sido a última, mas talvez tivesse funcionado justamente por isso. Enfim. 

A única coisa que não fora capaz de dizer a Katherine era que ele andava tendo a sensação de voltar a “crescer” novamente nos últimos meses. Que, logo, talvez ele mesmo começasse a questionar se cabia entre as paredes do palácio em que tinha sido criado. Eram sentimentos estranhos demais para admitir, tão estranhos que Aleksei preferia ignorá-los até que murchassem e morressem como antes. A questão era que estavam na primavera. E, mesmo que ele ainda não soubesse, todo tipo de coisas tendia a florescer nessa época, mesmo as mais estranhas.

***

Assim que a última pessoa sumiu de seu campo de visão, as pernas de Luka cederam, e ele se viu entre respirações curtas, tentando fazer o mundo ao seu redor parar de girar.

Ele acreditara que ficaria mais fácil com o passar do tempo. Era o lógico, não? Fazer a mesma coisa várias vezes a tornaria mais familiar e menos difícil. Ali, contudo, era o contrário. A diferença era que Luka sabia, ou melhor, tinha aprendido, que dá para se acostumar com qualquer situação, mesmo as ruins. Assim, comandou que ar entrasse em seus pulmões, lhe dando um segundo de clareza mental para esticar as mãos trêmulas e tocar no anel em seu dedo médio, murmurando as palavras do feitiço num sopro de voz.

O peso sobre seu corpo abrandou, lhe concedendo um alívio tão grande que ele quase caiu no sono ali mesmo, deitado no chão gelado e irregular da floresta.

Tsc, você está ficando fraco.

O anel vibrou a cada palavra, num lembrete de que mal conseguia conter o poder que estava abrigando temporariamente. Era verdade. Não adiantava discutir, espernear, criar falsas esperanças. Seu tempo estava acabando. Restava descobrir se terminaria em glória ou em uma morte inútil.

— Logo teremos o hospedeiro certo — disse num sussurro de autoafirmação. Precisava dizer em voz alta para que ele mesmo reconquistasse um pouco de fé nas palavras. 

Já não tínhamos passado da fase das promessas vazias, garoto?

Luka não conseguiu conter um arrepio diante da ameaça velada ali, bem escondida no tom inflexível, mas bastante óbvia para quem convivia com a voz há tempos. Era difícil que uma presença que habitava dentro dele não fosse capaz de ler suas intenções, mas se via querendo discutir mesmo assim. Não tinha passado os últimos meses em ócio. Sabia o que estava fazendo, mesmo que tivesse momentos de dúvida aqui e ali. 

—  Não é vazia. É uma questão de dias até minha irmã se desesperar o suficiente ou o czareviche perder o controle de sua magia. Nos dois casos, terei minha chance. — Respirou fundo mais uma vez, averiguando se já estava bem o suficiente para se levantar. Não estava, e o resto da frase saiu ainda bem baixo. — Com sorte, será antes da próxima semana. 

Ele riu. Era sempre um som perturbador, não importava quantas vezes o bruxo tivesse ouvido. 

Ora, Luka, achei que fosse melhor que isso. Destino? Sorte? Se eu tivesse me largado aos caprichos da lua ou qualquer baboseira em que vocês e seus covens acreditam, não restaria nem memória da minha existência nesta época.

— Há limitações para o que eu posso fazer sem arruinar tudo — respondeu, cansado. Não estava em condições de ter aquela conversa em voz alta, mas continuou mesmo assim. Não era sábio convidá-lo a ouvir seus pensamentos, por mais exaurido que Luka estivesse. Não tinha construído barreiras tão sólidas ao redor de sua mente para baixá-las por um pouco de tontura. — Além disso, os “caprichos da lua” não são tão aleatórios assim, são úteis. Tudo indica que o czareviche terá mais uma expansão de poder no dia de seu aniversário. Não tem a menor chance de ele conseguir se conter quando acontecer.

Pode repetir essa ladainha o quanto quiser. Se não estivermos dentro do palácio na próxima semana, você sabe muito bem para quem de nós as consequências serão mais severas. 

Luka sabia. Sabia desde o primeiro momento. Talvez tivesse superestimado quanto da degradação de seu corpo poderia aguentar sem reclamar, mas não havia erros nas escolhas que tinha feito. O objetivo que tinha em mente era claro demais para que ele perdesse seu foco.

Um objetivo que compartilhava com a força com quem dividia a mente, o corpo e os poderes há anos, agora. Mesmo que se cansasse. Mesmo que o temesse. Mesmo que estivesse deteriorando dia após dia, o respeito por ele continuava intocado. Afinal, mais do que uma vida ou morte gloriosa, ele tinha oferecido a Luka a vingança mais plena, a recompensa pelo ódio que vinha alimentando com tanto esmero há décadas. 

E se tinha que sofrer um pouco no processo, que assim fosse. O que queria alcançar era bem maior que seu corpo, de qualquer maneira.

Assim, sem dizer mais nada, Luka se levantou devagar, se recompondo para retornar para casa após a reunião do coven que liderava. Esperou alguns minutos a mais, só para ter certeza de que parecia inteiro de novo, já que outra parte importante de sua situação era jamais deixar que aquele lado de sua vida encontrasse sua família. Luka podia estar irremediavelmente atado à ambição que ainda iria devorá-lo, mas ainda sabia que seu rancor era venenoso demais para tocar os únicos seres que o faziam acreditar que ele merecia amor, mesmo que pouco, mesmo que por algumas horas apenas. Mesmo que fosse mentira.

 

 


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Notas finais do capítulo

Muito que bem, os próximos três capítulos serão o baile de aniversário do Aleksei e eu tô bem animada para eles, hehe. Estou fazendo mistério mesmo, mas no próximo capítulo o Tumblr já vai estar atualizado com a estética da coisa toda e mais algumas surpresas ;)

Espero que estejam bem e se cuidando ♥



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